Vários textos das Escrituras Hebraicas, tanto os concernentes ao período mais antigo da história de Israel quanto os do Judaísmo do Segundo Templo, parecem revelar uma possível crença na ressurreição dos mortos. O mesmo ocorre com os apocalípticos judaicos extracanônicos do período intertestamentário. Entretanto, um exame mais auspicioso revela que há nuanças de significado mostrando uma mudança na compreensão do tema, a exemplo do que ocorreu com a ideia do pós-morte. A ideia da possível volta do indivíduo à vida corporal “só muito tarde se incorporou nas esperanças bíblicas de salvação, apesar do fato de Israel ter tido sempre a convicção de que o homem continua a existir depois da morte”.124 A crença na ressurreição é encontrada especialmente na literatura apocalíptica, tendo surgido em resposta a experiências de perseguição e martírio. A forma do corpo ressuscitado é uma questão controversa, sendo que, em alguns casos, tratava-se de um corpo modificado.
É certo que as Escrituras Hebraicas, desde o seu início, conheceram a pro- blemática da fragilidade e fugacidade da existência; entretanto, essa questão não foi resolvida pela supressão do “corpo”, e somente muito tardiamente se recorreu à fórmula da “libertação da alma” pela divisão da natureza humana. Assim, a ideia da ressurreição não se desenvolveu a partir de um impulso abstrato do saber ou de intuição, mas sim pela contínua meditação e experiência existencial. Nisto, com certeza, se deram os influxos com outras concepções, estrangeiras.
A partir da ideia de que Iahweh possuía poder também sobre o Sheol (con- forme destacado acima), surgiu a crença de que ele não somente faz o homem descer ao Mundo dos Mortos, mas pode também retirá-lo de lá. Assim, entende-se que Iahweh tem poder para arrancar os seus da garra da morte. No entanto, os tex- tos que apontam nessa direção merecem um exame mais acurado.
Em Dt 32,39 e 1Sm 2,6,125 essa ideia não supõe uma ressurreição corporal como fundamento, mas sim a cura de uma doença grave (como em Is 38,9-20; Sl 71,20)126 ou a salvação em uma situação perigosa (Sl 9,14; 30,4; 88,7; 107,17-
124 NELIS, J. Ressurreição. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). DEB, p. 1302-1308; aqui p. 1302.
125 Dt 32,39 registra: “E agora, vede bem: eu, sou eu, e fora de mim não há outro Deus! Sou eu que mato e faço reviver, sou eu que firo e torno a curar (e da minha mão ninguém se livra)”; 1Sm 2,6: “É Iahweh quem faz morrer e viver, faz descer ao Sheol e dele subir”.
126 Em Is 38,9-20 há o registro de um cântico atribuído ao Rei Ezequias em que o eu-lírico honra a Iahweh por tê-lo curado; já o Sl 71,20 registra: “Fizeste-me ver tantas angústias e males, tu volta-
22),127 situações que, na concepção de vida israelita, equivalia a um desfalecer das forças vitais, ou seja, um descer ao Mundo dos Mortos.128 Nos Sl 30,4 e 88,7 a “reanimação”, nessas locuções, “não é ressurreição, mas como hipérbole é idênti- ca a ‘conservar a vida’, ‘não morrer’”.129 Além disso, sabe-se que os Salmos refle- tem, muitas vezes, a condição de opressão ou antítese ante a um inimigo: por ve- zes um ímpio, uma situação adversa, ou a morte.
Outros Salmos onde a ideia da ressurreição poderia ser subentendida são o Sl 16,10 e o 17,15. Em 16,10, a fórmula “não deixar a alma no Sheol” não é sufi- cientemente clara para se deduzir a ideia da ressurreição corporal; em Sl 17,15, a expressão “despertar” não é associada à ideia de ressurreição. O que se pode afir- mar é que no Saltério há uma crescente confiança na comunhão com Iahweh, a qual pode levar a vencer a morte.
No livro da Sabedoria (16,13),130 o autor parece ter tomado a fórmula de 1Sm 2,6 em sentido restrito. Esse livro nunca menciona explicitamente a ressur- reição, mas parece supô-la pela imortalidade da alma. De qualquer forma, deve-se ressaltar que esse livro não faz parte da Escritura Hebraica (seu original é em gre- go). Trata-se de uma obra tardia (I século a.C., livro mais recente do AT cristão), revelando influência helenística (platônica).131
Os textos de 1Rs 17,17-24, 2Rs 4,18-37; 13,20-21 mostram que a ressurreição de um morto antes de seu sepultamento (ou decomposição), ou seja, antes de descer definitivamente ao Sheol era possível. Essas narrativas refletem a convicção do poder de Iahweh sobre a morte e o Mundo dos Mortos (citado acima), poder esse revelado através de milagres efetivados por seus profetas Elias e Eliseu. Além disso, elas não são entendidas ainda como narrativas de ressurreição, pois mostram somente a volta à vida terrena sem incluírem, em si mesmas, a ideia
rás para dar-me vida, voltarás para tirar-me dos abismos da terra”.
127 Sl 9,14 registra: “Piedade, Iahweh! Vê minha aflição! Levanta-me das portas da morte”; Sl 30,4: Iahweh, tiraste minha vida do Sheol, tu me reavivaste dentre os que descem à cova”; Sl 88,7: “Puseste-me no fundo da cova, em meio a trevas nos abismos”; Sl 107,18-20: “Rejeitavam qual- quer alimento e já batiam às portas da morte. E gritaram a Iahweh na sua aflição: ele os livrou de suas angústias. Enviou sua palavra para curá-los, e da cova arrancar a sua vida”.
128 NELIS, J. Ressurreição. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). Op. cit. p. 1303.
129 SCHILLING, O. Ressurreição. In: BAUER, J. B. DTB, p. 971-982. v. 2; aqui p. 973.
130 “Porque tu tens poder sobre a vida e a morte, fazes descer às portas do Hades e de lá subir”.
131 Cf. COLLINS, J. J. The Root of Immortality: Death in the Context of Jewish Wisdom. HTR 71.3-4 (1978), p. 177-192; o mesmo se pode dizer da obra Sabedoria de Salomão: “Tanto Sirácida quanto Sabedoria de Salomão tentam resolver o problema da morte por alguma concepção de vida transcendente – uma vida que não pode ser medida em termos biológicos ou temporal e que, por- tanto, está em um nível diferente da vida que é negada pela morte” (Ibidem, p. 192); republicado em Seers, Sybils and Sages in Hellenistic-Roman Judaism, p. 351-367.
de mudança definitiva do estado humano das pessoas envolvidas (elas continuam sendo mortais). O máximo que se pode é considerar “esses fatos como elos inter- mediários para o desenvolvimento da ideia de ressurreição, sobretudo como con- cretização da ideia do poder de Javé sobre vida e morte”.132
Outra ideia que poderia implicar a ressurreição era que a volta à vida seria uma retribuição a uma fé justa, pela correta observância da lei divina (Am 5,4.14), sendo essa retribuição esperada durante a vida na Terra. Na literatura sapiencial, os livros de Jó e Eclesiastes revelam uma decepção pela constatação de que nem sempre a retribuição na vida terrestre condiz com a conduta do indivíduo; o mes- mo ocorre em muitos Salmos. Assim, a justiça de Deus precisou ser considerada a partir das esperanças da nação de Israel, as quais desejavam uma manifestação da glória e do reino de Iahweh para extermínio de todo o mal e sofrimento. Dessa maneira, a volta à vida dos justos da nação seria garantida, a fim de receberem a recompensa pelas suas boas obras. Com o fim da certeza em um julgamento corre- to sobre a impiedade e o mal na vida terrestre, iniciou-se, então, a esperança de que tal julgamento teria efeito através de uma salvação escatológica.
Em Os 6,1-3 é bastante evidente a influência do mito cuja descida anual de uma divindade ao Mundo dos Mortos e sua subsequente ressurreição eram cele- bradas cultualmente como personificação vital da natureza.133 Trata-se de referên- cias a mitos de divindades antigas que morrem e ressuscitam, como Osíris (no Egito), Adônis e Tamuz (na Mesopotâmia) e Baal (cananeu); entretanto, os verbos “reviver” e “levantar” no v. 2 estão empregados em conjunto com a locução “de- pois de três dias... no terceiro dia” (como em Am 1,3: “por três crimes de Damasco, e por quatro”), designando um breve lapso de tempo (expressões de cunho sa- piencial): a salvação e a cura virão rapidamente.134
A partir de Tertuliano (início do III século d.C.), a tradição cristã aplicou esse texto de Oseias à ressurreição de Cristo, mas o NT nunca o utilizou. Assim, “a expressão ‘levantar ao terceiro dia’ não é prova da existência da ideia de ressurreição no Antigo Testamento nem, por conseguinte, da ressurreição de Cristo ao
132 SCHILLING, O. Loc. cit.
133 Os 6,1-3 registra: “Vinde, retornemos a Iahweh. Porque ele despedaçou, ele nos curará; ele fe- riu, ele nos ligará a ferida. Depois de dois dias nos fará reviver, no terceiro dia nos levantará, e nós viveremos em sua presença. Conheçamos, corramos atrás do conhecer a Iahweh; certa, como a aurora, é sua vinda, ele virá a nós como a chuva, como o aguaceiro que ensopa a terra”.
134 O uso dessa expressão aqui poderia levar a pensar em uma redação posterior, a exemplo da con- clusão sapiencial em 14,10. Entretanto, a argumentação e o consenso geral não favorecem essa suposição.
terceiro dia”.135
De qualquer forma, é possível que o profeta conhecesse esses mitos estrangeiros acerca de ressurreição, tendo deles recebido alguma influência. Especialmente o terceiro verso revela como o povo estava influenciado pelas ideias da religião cananeia.136 A comparação de Iahweh com a aurora e a chuva (elementos da natureza) remete a uma correlação de Iahweh com Baal. A preocupação do povo com o cultivo da terra remete à necessidade da chuva. Apesar de todo apelo e aparente comoção, não há, explicitamente, indicação de que o povo estivesse se voltando com sinceridade para Iahweh, percebendo sua diferença em relação aos baais. Daí a necessidade de “conhecer e perseguir o conhecimento de Iahweh” (v. 3).
O texto de Oseias é o único na Escritura Hebraica em que a associação de morte-retorno à vida com o misticismo da natureza é efetuada; em Jó 14,1-12, por exemplo, essa analogia é rejeitada. Para o autor de Jó, a volta do Sheol é apenas fruto do desejo e da imaginação do ser humano (Jó 7,9-21; 10,20-22; 14,18-20; 16,22).
Por fim, em relação à ressurreição, o “reviver” e o “levantar” em Os 6,2 revelam, na verdade, o quanto o povo estava distante de Iahweh. Antes de se tratar de uma ressurreição, esses verbos, relacionados ao v. 1, possuem não uma pers- pectiva de morte, mas sim de enfermidade; o povo não estava morto, mas ferido, necessitando de cura.137 Não há qualquer referência à ressurreição individual: essa canção cultual refere-se antes à restauração da nação, a qual estava ferida.138
Os 13,14 discorre sobre a morte e o Sheol como personificações de pode- res que ameaçam sobrepujar Israel.139 Este é um verso muito difícil de fazer sentido, devido a problemas textuais envolvidos na tentativa de alcançar tanto a coerência interna para o verso em si quanto para permitir-lhe um significado compatí-
135 SCHILLING, O. Loc. cit.
136 Cf. WOLFF, H. W. Hosea: A Commentary on the Book of the Prophet Hosea, p. 119; MAYS, James L. Hosea: A Commentary, p. 96.
137 WOLFF, H. W. Op. cit. p. 117.
138 Ibidem, p. 116-118; cf. também MAYS, James L. Op. cit. p. 93-96; ROWLEY, H. H. The Fu- ture Life in the Old Testament. CgQ 33 (1955), p. 116-132; aqui p. 123. Para uma posição contrá-
ria acerca dessa passagem, cf. ANDERSEN, Francis I.; FREEDMAN, David N. Hosea: A New Translation with Introduction and Commentary, p. 420-421; esses autores argumentam que é pres- suposta aqui uma crença na ressurreição pessoal e física, e que esta teria sido adaptada para aplica- ção metafórica na nação como um todo. Hasel também postula que se trata de uma ressurreição física, não-metafórica, mas desconsidera o problema textual do verso 19 (cf. HASEL, Gerhard F. Resurrection in the Theology of Old Testament Apocalyptic. ZAW 92.2 (1980), p. 267-284, aqui p. 275).
139 Os 13,14 relata: “Deveria eu livrá-los do poder do Sheol? Deveria eu resgatá-los da morte? On- de estão, ó morte, as tuas calamidades? Onde está, ó Sheol, o teu flagelo? A compaixão se esconde de meus olhos”.
vel com o contexto global. A despeito disso, considera-se o verso uma advertên- cia; o poder da morte e do Sheol são proclamados como estando sob a direção de Iahweh; não se trata de uma ressurreição dos mortos.140
Outro texto controverso em relação à ideia de ressurreição é o de Ez 37. A visão relatada pelo profeta em 37,1-14 retrata a restauração nacional de Israel co- mo uma ressurreição do sepulcro, numa alusão clara ao cativeiro babilônico (v. 11). À pergunta de Iahweh ao profeta sobre a possibilidade de os ossos secos vol- tarem a viver é respondida com bastante prudência, resposta essa equivalente a um “não sei” (“Senhor Iahweh, tu o sabes”, v. 3), o que mostra que a ressurreição não fazia parte ainda de sua escatologia.
Fica claro, pelo contexto, que se trata de uma visão cuja mensagem remete à volta à vida em termos de libertação do exílio para vida com Iahweh, tipificada num ressurgir de toda a nação para a adoração ao Deus de Israel. Não se dá na vi- são do profeta informação sobre ressurreição dos mortos: “a questão aqui é o povo de Deus e sua ressurreição da morte causada por seu pecado. (...) Deus promete que ele ainda está a trabalhar nele e despertá-lo para a vida do mesmo modo que já fizera uma vez no início, de acordo com Gênesis 2,7, formando o corpo como seu Criador e soprando o fôlego da vida no corpo morto”.141 Não se trata, pois, de uma ressurreição individual ou volta à vida corporal a partir do Mundo dos Mortos.
Além disso, logo em seguida (v. 24-25) Iahweh faz a promessa de que “Davi, o meu servo, será o seu príncipe para sempre”, e que Deus concluirá com o povo uma “aliança de paz, a qual será uma aliança eterna”. Segundo Collins, “em Ezequiel 34 e 37, nas previsões de um futuro governante, o termo ‘príncipe’ de- signa claramente uma posição de rei e refere-se a um membro da linhagem davídi- ca, admitindo-se que Ezequiel a imaginou como uma monarquia corrigida pelo castigo, podada de grande parte das ideologias reais tradicionais”.142
G. A. Cooke compartilha a opinião de Collins; segundo ele, o trecho de Ezequiel reafirma o ideal característico dos profetas de Israel: a espera de “uma era de paz sob o reinado de um governante justo”.143 As sepulturas em 37,12-13 são uma metáfora para a condição do povo exilado, pois os ossos se encontram num campo de batalha, e não em um cemitério. Para Cooke, esse texto não impli-
140 Cf. WOLFF, H. W. Op. cit. p. 228; MAYS, James L. Op. cit. p. 182-183.
141 ZIMMERLI, Walther. Man and His Hope in the Old Testament, p. 119.
142 COLLINS, J. J. The Scepter and the Star: The Messiahs of the Dead Sea Scrolls and Other An- cient Literature, p. 27.
143 COOKE, G. A. A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Ezekiel, p. 400.
ca uma ressurreição de fato;144 além disso, o linguajar do profeta pode ter influen- ciado os textos de Jó 14,11-14 e 19,25. O mesmo afirma Zimmerli: indubitavel- mente, o texto de Ez 37,1-14 não se refere a uma ressurreição individual, mas trata-se de duas imagens (a reanimação de ossos de mortos insepultos e a abertura de sepulcros com a condução dos que lá se encontram a uma nova vida) que expres- sam a restauração do Israel politicamente derrotado.145
O consenso geral é de que se trata, de fato, de uma simbologia para descre- ver a situação do povo: “os ossos significam o povo na ‘morte’ do Exílio e a revi- viscência deve ser compreendida como promessa de volta à pátria”.146
Em Is 26,19147 (dentro do trecho mais conhecido como Apocalipse de Isaías, Is 24-27, tardio), o escritor registra uma ressurreição coletiva. Entretanto, comparando com 26,11-14,148 o v. 19 parece sugerir uma ressurreição individual, hipó- tese que seria corroborada por 26,15,149 o qual pede o aumento do povo, ao que a ressurreição dos indivíduos parece ser a solução.
Nelis, por exemplo, afirma que “verdade é, entretanto, que a formulação de Is 26,19, bem como a de Ez, poderia sugerir a ressurreição individual”;150 Schil- ling adverte que o anúncio de 25,8 (“Iahweh dos Exércitos fez desaparecer a morte para sempre”), assim como “todo o contexto designam mais claramente uma res- surreição real”.151
No entanto, Is 25,8, onde o profeta afirma que Iahweh faz desaparecer a morte, enxugando as lágrimas do povo e removendo todo o opróbrio, está inserido na perícope do banquete escatológico (o que é reconhecido pelo próprio Schilling). Essas imagens fazem parte do quadro tradicional dos tempos messiânicos, com a salvação escatológica que viria ao povo de Israel, descrita especialmente no Trito-Isaías. Em suma, a situação descrita em Is 26,16-18 é semelhante à de Ez 37.
144 Ibidem.
145 ZIMMERLI, Walther. Ezekiel: A Commentary on the Book of the Prophet Ezekiel, p. 264. v. 2.
146 SCHILLING, O. Ressurreição. In: BAUER, J.B. DTB, p. 971-982. v. 2; aqui p. 973.
147 “Os teus mortos tornarão a viver, os teus cadáveres ressurgirão. Despertai e cantai, vós os que habitais o pó, porque o teu orvalho será orvalho luminoso, e a terra dará à luz sombras”.
148 Is 26,11-14 registra: “Iahweh, tua mão está levantada, mas eles não a veem! Eles verão o teu zelo pelo teu povo e se confundirão; sim, o fogo preparado para teus adversários os consumirá.
Iahweh, tu nos asseguras a paz; na verdade, todas as nossas obras tu as realizas para nós. Ó Iah- weh, nosso Deus, ao teu lado tivemos outros senhores, mas, apegados a ti, só ao teu nome invoca- mos. Os mortos não reviverão, as sombras não ressurgirão, porque tu as visitaste e as exterminaste, tu destruíste toda a sua memória”.
149 “Expandiste a nossa nação, Iahweh, expandiste a nossa nação e te cobriste de glória. Alargaste todas as fronteiras da terra”.
150 NELIS, J. Ressurreição. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). DEB, p. 1302-1308; aqui p. 1305.
151 SCHILLING, O. Ressurreição. In: Op. cit. p. 974. v. 2.
Trata-se, portanto, mais de uma restauração nacional, messiânica, do que de uma ressurreição individual, corporal.152
Em Jó 19,25-26 o personagem atesta sua esperança num go’el que “no fim se levantará sobre o pó”, quando também ele, Jó, “fora de sua carne verá a Deus”. Entretanto, o próprio Jó considera ser impossível alguém voltar do Sheol (7,9; 10,21; 14,7-22; 16,22). Convencido da proximidade de sua morte (23,13-17; 30,16-23), o personagem tem esperança de que Iahweh irá reabilitar publicamente seu bom nome. Como os versos de 19,25-26 possuem dificuldade exegética de todo tipo, não se sabe se a restauração esperada pelo personagem “no fim” se refere a um futuro escatológico ou a uma restauração ainda na vida terrestre, o que, dado a conjuntura do livro, é muito mais provável. O “levantar sobre o pó” de 19,25b tem, assim, uma conotação mais jurídica, de estabelecimento da justiça ao fim do processo (em 19,25a o personagem assevera que “eu sei que meu defensor [go’el] está vivo”). O trecho de 19,25-27 é o grito de Jó por uma justificação da parte de Iahweh. Em seu sofrimento, ele espera confiantemente ser inocentado. O texto declara a sua esperança por saúde e prosperidade, e não a ressurreição.153
Para Russell, os textos de Jó e Salmos não possibilitam deduzir uma crença em uma vida no pós-morte na presença de Deus. Essa conclusão só pode ser dedu- zida, nas Escrituras Hebraicas, “em dois textos apocalípticos que datam do período pós-exílico tardio, Isaías 24-27 e Daniel 12”.154 Porteus compartilha essa opinião: comentando os primeiros versos do capítulo 12 de Daniel, ele afirma serem uma “notável predição de uma ressurreição, dos quais [versos] o único e verdadeiro paralelo no Antigo Testamento há de ser encontrado em outra passagem tardia (Is 26,19)”.155
152 Existe ainda a forte possibilidade de Is 26,19 ser uma interpolação tardia; cf. KAISER, Otto. Isaiah 13-39: A Commentary, p. 218; PLÖGER, Otto. Theocracy and Eschatology, p. 66-68. H. H. Rowley afirma que Is 26,19 se refere ao renascimento da nação, bem como Ez 37,1-14; o contexto da seção como um todo (26,1-19) parece apoiar essa interpretação (cf. ROWLEY, H. H. The Futu- re Life in the Old Testament. CgQ 33 (1955), p. 116-132; aqui p. 125).
153 Para um breve relato acerca do tema da morte no livro de Jó, cf. MATHEWSON, Dan. A Brief History of the Interpretation of Death in Job. In: Death and Survival in the Book of Job, p. 14-20.
Mathewson adiante concluiu que no livro de Jó “conforme seus discursos avançam, Jó lentamente abandona sua convicção de que se encontra vida no Sheol, conforme 10,18-22, ao mesmo tempo em que ele deseja ainda que tivesse nascido morto; ele não vê esperança para a [existência da] vida no túmulo” (Ibidem, p. 96).
154 RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 356.
155 PORTEOUS, N. W. Daniel: A Commentary, p. 170. Rachel Hallote conclui que “as referências à ressurreição na Bíblia Hebraica demonstram que a ressurreição não era uma parte importante no sistema de crença israelita. Mesmo o que parece ser um exemplo claro não está de fato absoluta- mente claro” (cf. HALLOTE, R. S. Resurrection and Lack of Death in the Bible. In: Death, Burial, and Afterlife in the Biblical World, p. 136-149; aqui p. 139). A autora cita em seguida exemplos do
De fato, os livros apocalípticos judaicos intertestamentários e do I século
d.C. apresentam uma considerável diversidade de ideias sobre a ressurreição. Em muitos casos, a antiga concepção israelita de Sheol como um lugar onde todos os seres humanos terão alguma espécie de existência é, podemos dizer, aperfeiçoada. No L. Jub 23,31a o corpo é privado do estado de felicidade reservado para a al- ma.156 Em 4Mc 18,17, o autor cita Ez 37, mas não fica clara a sua interpretação desse texto; já em 18,19 ele repete Dt 32,39, mas também sem acrescentar nenhum dado interpretativo.157 Em O. Sal 3,8 o autor reserva a imortalidade somente aos que se achegarem a Iahweh.158 Outros não-canônicos relatam a ressurreição dos justos ou de determinadas pessoas individualmente (T. Jud 25,1; 1En 91,10; Sl Sal 3,11-12).159 Outros incluem justos e ímpios numa ressurreição universal (Ap Sy Br, ou 2Br 50,2-4);160 a fórmula de ressurreição “para a glória e para a desonra” é encontrada no T. Bj 10,8a.161
Nos textos de Qumran, não se menciona claramente a ressurreição. Entre- tanto, pode-se entender algumas expressões encontradas nos Hodayot (coletânea de hinos escritos, talvez, pelo Mestre da Justiça) como expressão de alguma noção acerca da ressurreição dos justos: “o despertar dos filhos da verdade” que “descan- sam no pó” (1QH 6,29-34) e “a exaltação dos mortos do pó dos vermes” (1QH 11,12); já acerca dos ímpios se afirma que “não mais existirão” (1QH 6,30).162
Em Dn 12,1-3, há indiscutivelmente a referência a uma ressurreição pesso-
Ciclo de Eliseu (2Rs).
156 L. Jub 23,31a: “Seus ossos repousarão na terra, mas seus espíritos terão muita alegria e saberão que o Senhor executa seus julgamentos”.
157 4Mc 18,17: “Ele confirmava a palavra de Ezequiel: Porventura voltarão a viver esses ossos? (Ez
37,3)”; em 18,19: “Ele mata e faz viver (Dt 32,39); isto é a tua vida e o prolongamento de teus dias”.
158 O. Sal 3,8: “Quem se unir ao imortal, tornar-se-á imortal também”.
159 T. Jud 25,1: “Depois disso, Abraão, Isaque e Jacó ressuscitarão e meus irmãos e eu seremos chefes das tribos de Israel: Levi, o primeiro, eu no segundo lugar, José no terceiro, Benjamim no quarto, Simeão no quinto, Issacar no sexto, e assim todos na ordem”; 1En 91,10: “Os justos levan- tar-se-ão de seu sono, e a sabedoria levantar-se-á e lhes será dada”; Sl Sal 3,11-12: “A destruição do pecador é irreversível; Iahweh não se lembrará dele quando visitar os justos. Tal é o lote dos pecadores para sempre, mas os que temem o Senhor ressuscitarão para a vida eterna; e sua vida, na luz do Senhor, nunca mais terá fim”.
160 2Br 50,2-4: “A terra restituirá certamente os mortos que agora recebe para os conservar. Não
haverá mudança na sua forma; pois do jeito como ela as recebeu, restituí-los-á. Assim como lhes entreguei, assim os devolverá. Pois será necessário mostrar aos que viverem naquele tempo que os mortos voltaram à vida e que aqueles que partiram voltaram. Depois que tiverem reconhecido os que agora conhecem, o julgamento começará, e aquilo que já ouviste acontecerá”.
161 T. Bj 10,8a: “Então todos os homens ressuscitarão, alguns para a glória, outros para a desonra”.
162 Cf. COLLINS, J. J. Conceptions of Afterlife in the Dead Sea Scrolls. In: LABAHN, M.; LANG, M. (Ed.). Lebendige Hoffnung – ewiger Tod?!: Jenseitsvorstellungen im Hellenismus, Judentum und Christentum, p. 103-125.
al, tanto de justos quanto de ímpios,163 possivelmente corporal. Existe, de fato, o consenso geral de que Dn 12 “é a única atestação clara de uma crença na ressur- reição na Bíblia Hebraica”.164 O livro apresenta uma transformação do antigo con- ceito de Messias.165 No pós-exílio, o tema da restauração de Israel por um descen- dente de Davi levou os judeus a elaborarem princípios que expressavam a espe- rança e a expectativa na volta do ungido de Deus (um filho de Davi) que restaura- ria o reino daquele rei.166 Diferentemente da expectativa messiânica de um rei jus- to da dinastia davídica, como expresso nos textos de Isaías e Ezequiel citados su- pra, o reino messiânico em Daniel passa a ser possível graças a interferência de uma figura misteriosa, “um como Filho de Homem” (Dn 7,13).
O termo Messias (hebraico ) adquiriu entre os judeus (e, posterior-
mente, entre os cristãos) um significado intenso, com muitas ideias concebidas dentro da escatologia judaica.167 Basicamente, o termo hebraico indicava alguém que era separado por Deus para um determinado serviço. Às vezes o Messias apa- rece como um sábio, às vezes como um profeta; também aparece como aquele que iria restaurar a Lei, não desfazê-la, mas transformá-la naquilo que ela deveria ser. Paralelos com o Egito, Babilônia e Canaã podem ser observados. Quanto a salvar o seu povo, a princípio o Messias tinha a ideia de “salvador” no sentido do papel desempenhado por um Rei, ou seja, “salvar” era “libertar”, “tornar livre” dos ini- migos. De qualquer forma, o papel de “Rei” é mais duradouro que o de “líder”; no livro de Juízes, por exemplo, há uma série de líderes, de “experimentos” relacionados à organização social do país. No judaísmo tardio, o adjetivo torna-se um termo técnico e indica um título ou mesmo um nome próprio que designa uma figura escatológica geralmente associada às expectativas dos últimos dias e à chegada do Reino de Deus.168
163 Cf. TABOR, James. The Future. In: SMITH, M.; HOFFMANN, R. J. (Ed.). What the Bible Really Says, p. 33-51; aqui p. 44.
164 COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 394 (grifo nosso). Consoante a esta ideia, cf. também, dentre outros, ALONSO-SCHÖKEL, L.; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II,
p. 1338; MONTGOMERY, J. A. ICC, p. 471; NICKELSBURG, G.W.E. Resurrection, Immortali- ty, and Eternal Life in Intertestamental Judaism and Early Christianity, p. 23; PORTEOUS, N. W. Daniel: A Commentary, p. 170; SEGAL, A. F. Life After Death, p. 263; ROWLEY, H. H. The Fu- ture Life in the Old Testament. CgQ 33 (1955), p. 116-132; aqui p. 125.
165 COLLINS, J. J. The Transformation of Messianism in Daniel. In: The Scepter and the Star: The Messiahs of the Dead Sea Scrolls and Other Ancient Literature, p. 34-38.
166 Cf. SCARDELAI, Donizete. Movimentos messiânicos no tempo de Jesus, p. 44-66.
167 Cf. DE JONG, Marinus. Messianic Ideas in Later Judaism. In: KITTEL, G. (Ed.). TDNT, p. 509-517. v. 9.
168 RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic, p. 304.
Assim, no judaísmo pós-exílico, especialmente no Período Helenístico, o termo sofreu um desenvolvimento que o distancia do sentido preconizado pelos antigos profetas.169 Esse desenvolvimento se deu por influências de concepções escatológicas bem diferentes do messianismo “original” do AT, adquirindo traços distintos no período conhecido como intertestamentário, certamente pelo contato dos judeus com a concepção dualista presente no zoroastrismo (a presente era má em contraposição à boa era vindoura). Segundo Emanuel Bouzon:
A perspectiva de um Reino de Deus escatológico e de um prêmio após a morte não faz parte da escatologia veterotestamentária pré-exílica. As novas concepções escatológicas começam a partir do livro de Daniel, cuja composição data, prova- velmente, da primeira metade do século II a.C., e de livros deuterocanônicos, como o livro da Sabedoria.170
Em Daniel, esse Filho do Homem possui um papel de Messias escatológico e é identificado com um sumo sacerdote em 9,26 e com Miguel, “o grande Príncipe” de Israel em 12,1.171 Todos os que compartilharão o reino escatológico são denominados de “santos do altíssimo” em Dn 7,18.27. Esses “santos do altís- simo” são normalmente identificados em grande parte da literatura hebraica e aramaica antigas como sendo os exércitos celestiais.172 Além disso, o nome de Mi-
guel aparece em Dn 12,1 relacionado ao verbo hebraico (“pôr-se em pé”,
“erguer-se”, “levantar-se”) o qual ocorre muitas vezes em contextos jurídicos.173 Miguel seria então o “grande anjo defensor, uma espécie de advogado que defende o povo do anjo acusador, que na literatura bíblica e extrabíblica é identificado com Satã (literalmente, acusador)”.174
Assim, o narrador de Daniel, a exemplo dos apocalípticos da tradição de Enoque, foca seu olhar para além deste mundo, para o triunfo final de Miguel e dos santos do altíssimo e, finalmente, para a ressurreição e exaltação dos justos (12,1-3).
Alguns estudiosos acreditam que a referência às estrelas trata-se apenas de
169 Cf. YARBRO COLLINS, A.; COLLINS, J. J. Messiah and Son of God in the Hellenistic Pe- riod. In: King and Messiah As Son of God: Divine, Human, and Angelic Messianic Figures in Bib- lical and Related Literature, p. 48-74.
170 BOUZON, Emanuel. As raízes judaicas da escatologia neotestamentária. In: MIRANDA, Mário de F. (Org.). A pessoa e a mensagem de Jesus, p. 97-108; aqui p. 97.
171 Nickelsburg afirma que, no judaísmo tardio, Miguel é considerado “poderoso sacerdote celesti- al” (cf. NICKELSBURG, G.W.E. Resurrection, Immortality and Eternal Life in Intertestamental Judaism and Early Christianity, p. 26).
172 Para uma informação detalhada da questão, com extensa bibliografia, cf. COLLINS, J. J. Dani- el: A Commentary on the Book of Daniel, p. 313-317.
173 Cf. BROWN, F. (Ed.). HELOT, p. 763-764.
174 SCHIAVO, Luigi. Anjos e messias: messianismos judaicos e origem da Cristologia, p. 47 (grifo do autor). Sobre isso, cf. adiante.
uma comparação, sem alcance mais profundo.175 Entretanto, como assinala Col- lins, existem reflexos ao longo das Escrituras Hebraicas que revelam uma tradição de batalha entre seres angelicais nas esferas celestiais, comum nas literaturas da Mesopotâmia e Canaã (como, por exemplo, Is 14).176 Essa luta, apesar de se dar nas esferas celestes, tem por objetivo inimigos terrenos. Somente no judaísmo tar- dio esse confronto se estabelece definitivamente nas esferas celestiais, como reve- la o livro de Daniel.
Esse retorno da ênfase nos céus como lugar da ação entre bem e mal reve- laria uma volta à estrutura cósmica relacionada às antigas mitologias ou, mais provavelmente, ele reflete influência do dualismo persa, influência que pode muito bem ter se dado também em um círculo muito afeiçoado aos escritos de Daniel, ou seja, a comunidade de Qumran (filhos da luz numa guerra contra os filhos das tre- vas).177
O livro de Daniel, portanto, traz à luz uma reinterpretação das antigas tra- dições judaicas, ao lado de outros escritos apocalípticos do período intertestamen- tário.
4.4. O livro de Daniel e a questão da ressurreição
4.4.1. Questões literárias e relativas ao contexto social
O livro de Daniel resiste a uma classificação fácil, pois contém duas for- mas literárias (narrativa e visão), duas línguas (hebraico e aramaico), e dois pontos de vista sobre como se deve viver sob a dominação estrangeira (em colaboração com governantes existentes ou com hostilidade em relação a tais governantes).178
O primeiro par de dicotomias (forma literária e língua) é facilmente obser-
175 Cf., por exemplo, BENTZEN, Aage. Daniel, p. 52.
176 COLLINS, J. J. Apocalyptic Eschatology As the Transcendence of Death. In: Seers, Sybils, and Sages in Hellenistic-Roman Judaism, p. 75-97; aqui p. 87 e 94 (publicado anteriormente em CBQ
36.1 (1974), p. 21-43). Retornaremos a esse tema adiante.
177 Cf. WINSTON, David. The Iranian Component in the Bible, Apocrypha and Qumran: A Re- view of the Evidence. HR 5.2 (1966), p. 183-216; COLLINS, J. J. The Expectation of the End in
the Dead Sea Scrolls. In: EVANS, C. A.; FLINT, P. W. (Ed.). Eschatology, Messianism, and the Dead Sea Scrolls, p. 74-90.
178 Cf. GOODING, David W. The Literary Structure of the Book of Daniel and Its Implications. TynBul 32 (1981), p. 43-79. Recentemente Portier-Young, usando uma abordagem sociolingüística não muito convincente, postulou que a estrutura bilíngue foi proposital: trata-se de uma estratégia retórica do redator para levar seus leitores de volta à aliança javista representada pela língua he- braica, ao passo que o aramaico representava as exigências do império (cf. PORTIER-YOUNG, A.
E. Languages of Identity and Obligation: Daniel As Bilingual Book. VT 60.1 (2010), p. 98-115).
vado, mas de difícil explicação. Geralmente, conforme assinalado supra, o livro é frequentemente identificado como o melhor exemplo de literatura apocalíptica presente na Bíblia Hebraica, devido às vigorosas visões da segunda metade do li- vro (capítulos 7-12). O argumento principal é que a literatura apocalíptica tem ge- ralmente uma estrutura narrativa, e Dn 1-6 forneceria a plataforma introdutória para as visões transcendentais presentes na segunda parte.179
Há um consenso entre os estudiosos de que o gênero literário de todo o li- vro pode ser classificado como “apocalíptico”, considerando-se que, conforme já apresentado neste trabalho, a apocalíptica quanto mentalidade pode ser expressa em diversas formas literárias, abrangendo, no caso da apocalíptica judaica, um es- paço de tempo de três séculos ou mais, com muitos paralelos mais antigos. Nesse grande período, incluem-se obras tão diversificadas que uma definição abrangendo características específicas será válida para umas obras, mas não para todas, con- forme já assinalado acima.
Há consenso também na divisão em dois grandes blocos (afora os acrésci- mos gregos), capítulos 1-6 e capítulos 7-12. O primeiro bloco traz tradições mais antigas e várias narrativas, as quais os autores nomeiam de “relatos da corte”; já o segundo é taxativamente caracterizado, sem dúvida, como apocalíptico, pois apre- senta várias características desse gênero, já assinaladas neste trabalho (pseudoní- mia, um visionário e um mediador, linguajar mítico e simbólico, profecia ex even- tu, determinismo histórico). Independentemente da discussão referente ao gênero da primeira parte, Collins assinala que:
Tomado como um todo, Daniel é um apocalipse, pela definição dada na discussão desse gênero acima. Mais especificamente, ele pertence ao subgênero apocalipse “histórico”, o qual não implica uma viagem a outro mundo, mas é caracterizado pela profecia ex eventu da história e pela escatologia que é cósmica no intuito e possui um foco político.180
Assim, os capítulos 7-12 apresentam as características da apocalíptica em forma e conteúdo, deixando pouca dúvida na classificação do gênero para esta parte do livro, ao passo que as narrativas de Dn 1-6 sempre suscitaram dúvidas na
179 Cf. GANE, R. Genre Awareness and Interpretation of the Book of Daniel. In: MERLING, D. (Ed.). To Understand the Scriptures: Essays in Honor of William H. Shea, p. 136-148. Esta é tam- bém a opinião de Collins: “No contexto do livro de Daniel como um todo, as narrativas nos capítu- los 1-6 servem como introdução para as revelações nos capítulos 7-12” (COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 52).
180 COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 33 (grifo do autor). A definição a que o autor se refere é a já citada neste trabalho, cuja publicação se deu primeiramente em Semeia 14 (1979), p. 9.
classificação do livro como pertencente ao gênero apocalíptico. Sendo assim, os acadêmicos sempre debateram as razões para essas diferenças entre as duas partes e também como interpretar as mudanças no gênero.
Os capítulos 7 a 12 constam de quatro visões que são apresentadas a Dani-el contendo profecias: os quatro animais (capítulo 7); o bode e o carneiro (capítulo 8); oração de Daniel e as 70 semanas (capítulo 9); e a grande visão do tempo da ira e do tempo do fim (capítulos 10-12). Essas visões apresentam datação nos reinados de Baltazar, de “Dario, o medo”, e de Ciro, rei da Pérsia.
O livro como um todo possui evidentes afinidades com os apocalipses do tipo “histórico” (seguindo a taxonomia de Collins), os quais se distinguem pelo uso da profecia ex eventu e a revelação em forma de visão simbólica. Outros gran- des exemplos são o Apocalipse dos Animais e o Apocalipse das Semanas em 1 Enoque e os livros de 4 Esdras e 2 Baruque. O Livro de Jubileus contém uma pro- fecia ex eventu no capítulo 23, mas que desempenha um papel muito pequeno no todo do livro (essa obra, segundo Collins, seria um exemplo de “caso-limite” para o gênero apocalíptico).181
As visões normalmente envolvem:182
1. Uma indicação das circunstâncias envolvidas; |
2. A descrição da visão, introduzida por um termo como “eis”; |
3. Um pedido para a interpretação, muitas vezes feito devido ao temor ocasiona- do por ela; |
4. A interpretação, geralmente fornecida por um anjo; |
5. Material conclusivo, o qual pode incluir a reação do visionário, instruções ou parênesis. |
Tabela 02: Estrutura frequente das visões nos apocalipses judaicos históricos
Vários estudos recentes têm deslocado a discussão do gênero em Daniel para novas direções. Settembrini analisa o livro especialmente sob o viés da “for- ma de sabedoria apocalíptica”; para ele, o gênero sapiencial permeia todo o livro e funciona como conexão entre as duas partes. Seu trabalho se concentra especial- mente na segunda parte, os capítulos 7-12; por meio desse tipo de sabedoria, os
181 Idem. The Apocalyptic Imagination, p. 83; a confusão acerca do gênero já se reflete nos vários títulos atribuídos a essa obra: além de Jubileus, foram usados Pequeno Gênesis e Apocalipse de Moisés (Ibidem).
182 Idem. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 54-55.
sábios alcançarão seu destino final glorioso. Assim, engrandecendo a dimensão sapiencial, esse autor considera Daniel mais literatura sapiencial do que apocalíp- tica.183 Goldingay e Van Deventer observam que a análise literária de Daniel suge- re possíveis caminhos de investigação sincrônica para complementar as questões diacrônicas que ainda permanecem.184 Smith-Christopher apresenta uma análise sociológica do livro de Daniel que identifica o livro como literatura de resistência e proporciona uma ligação temática entre as narrativas da corte (capítulos 1-6) e as visões (7-12), ligação essa que unifica a mensagem global do livro.185
A iniciativa de identificar os contos de Daniel como literatura de narrativas de sucesso em uma corte real (isto é, uma espécie de manual sobre como ser reli- giosamente fiel e ainda desfrutar o sucesso do mundo na corte do rei estrangei- ro)186 até o reconhecimento desse material como literatura de resistência abre o caminho para uma reconsideração de seu gênero. Essa mudança fornece uma liga- ção temática mais adequada entre os relatos da corte na primeira parte do livro e também deles com a visão mais negativa dos reis e impérios retratados pelas vi- sões da segunda parte. O artigo de Smith-Christopher mais recente analisa como orações e sonhos são politizados nas histórias para representar os anseios dos me- nos favorecidos e oprimidos, bem como a verdadeira natureza de poder em posse da divindade hebraica.187
Brenner identifica o motivo literário do governante estrangeiro obtuso e como ele funciona como um dispositivo de humor e sátira para ridicularizar o rei.188 Em sua análise, Chia explora como em Dn 1 a recusa em aceitar os novos nomes babilônicos e a alimentação da mesa real exemplifica resistência às preten-
183 SETTEMBRINI, Marco. Sapienza e storia in Dn 7-12, especialmente p. 67-215.
184 GOLDINGAY, J. Story, Vision, Interpretation: Literary Approaches to Daniel. In: VAN DER WOUDE, A. S. (Ed.). The Book of Daniel in the Light of New Findings, p. 295-313; VAN DE- VENTER, H.J.M. Struktuur en boodskap(pe) in die boek Daniël. HvTSt 59.1 (2003), p. 191-223. 185 SMITH-CHRISTOPHER, D. L. Daniel. In: KECK, Leander E. (Ed.). NIB, p. 17-152. v. 7. So-
bre o tema da resistência religiosa em Daniel, cf. também SOARES, Dionísio O. O livro de Daniel: literatura de resistência? In: GARMUS, Ludovico (Ed.). Tolerância e intolerância religiosa. Est- Bib 109 (2011), p. 29-42.
186 HUMPHREYS, W. Lee. Life-Style for Diaspora: A Study of the Tales of Esther and Daniel.
JBL 92.2 (1973), p. 211-223.
187 SMITH-CHRISTOPHER, D. L. Prayers and Dreams: Power and Diaspora Identities in the So- cial Setting of the Daniel Tales. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). The Book of Daniel: Composition and Reception, p. 266-290. v. 1.
188 BRENNER, Athalya. Who’s Afraid of Feminist Criticism? Who’s Afraid of Biblical Humor? The Case of the Obtuse Foreign Ruler in the Hebrew Bible. In: Prophets and Daniel, p. 228-244.
sões imperiais de poder e controle.189 Henze desafia as suposições em geral aceitas sobre a origem e funções das narrativas da corte e identifica o conflito como o te- ma principal das narrativas.190 Sweeney demonstra que o objetivo político e religi- oso de sobrepujar a dominação selêucida de Antíoco IV sobre Israel permeia todo o livro.191 Fewell argumenta que o livro de Daniel pode ser o principal livro de resistência contra dominação em toda a Bíblia.192 Polaski explora a forma como a escrita em Dn 5 e 6 é usada tanto como a chave para o correto desempenho da au- toridade imperial quanto para subverter e frustrar a autoridade do rei.193
Kirkpatrick lê Dn 1-6 pelo viés dos modelos sócio-científicos e articula uma compreensão destas narrativas como resistência à ameaça da perda da tradi- ção e identidade judaicas em face de uma esmagadora e opressora dominação he- lenística.194 A resistência é expressa por meio de uma comparação contínua entre a relação de proteção de Iahweh para com seu povo e as relações instituídas pelos opressores estrangeiros. A comparação favorece a tradição judaica e, portanto, pa- rece ser um convite para a recusa das imposições imperiais estrangeiras.
Como se vê, essas análises literárias que levam em conta as narrativas de Daniel como sendo um tipo de literatura de resistência continuam a ser um viés bastante valorizado na crítica atual (o que, de certa forma, reforça a tese tradicio- nal da apocalíptica quanto literatura oriunda em tempos de crise.
Quanto à datação do livro como um todo, há o consenso geral dos estudio- sos de que, em sua forma final, Daniel é uma obra do período intertestamentário. Foi o último a lograr entrada no conjunto das Escrituras Hebraicas, quando estas já estavam cristalizadas, entre os Hagiógrafos, o que indicaria sua composição tardia.195 O próprio redator (Dn 9,2) faz referências às “Escrituras”, dentre as quais estava Jeremias, o que revela a aceitação da autoridade do cânon profético. Daniel
189 CHIA, Philip. On Reading the Subject: Postcolonial Reading of Daniel 1. In: SUGIRTHARA- JAH, R. S. (Ed.). The Postcolonial Biblical Reader, p. 171-186 (publicado primeiramente em Ji- anD 7 (1997), p. 17-36).
190 HENZE, Matthias. The Ideology of Rule in the Narrative Frame of Daniel (Daniel 1-6). SBLSP 38 (1999), p. 527-539; cf. também, do mesmo autor, The Narrative Frame of Daniel: A Literary Assessment. JSJ 32.1-4 (2001), p. 5-24.
191 SWEENEY, Marvin A. The End of Eschatology in Daniel? Theological and Socio-Political Ramifications of the Changing Contexts of Interpretation. BibInt 9.2 (2001), p. 123-140.
192 FEWELL, D. Nolan. Chapter Five: Resisting Daniel. In: The Children of Israel: Reading the Bible for the Sake of Our Children, p. 117-130.
193 POLASKY, D. C. Mene, Mene, Tekel, Parsin: Writing and Resistance in Daniel 5 and 6. JBL
123.4 (2004), p. 649-669.
194 KIRKPATRICK, Shane. Competing for Honor: A Social Scientific Reading of Daniel 1-6, p. 4- 66; aqui especialmente p. 38.
195 Cf. KOCH, Klaus. Stages in the Canonization of the Book of Daniel. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). The Book of Daniel: Composition and Reception, p. 421-446. v. 2.
Daniel difere dos livros proféticos, e assim não foi inserido entre eles. O fato é que, como um todo, o livro se encaixa no período em que a literatura apocalíptica judaica de- finitivamente se estabeleceu como gênero, ou seja, o século II a.C.
Sua composição final é tida como efetivada no Período Macabeu, com o terminus a quo em 167 a.C. e o terminus ad quem em 164 a.C.196 O capítulo 11 fornece indicação precisa: as guerras entre os Ptolomeus e Selêucidas são narradas em detalhes, bem como o reinado de Antíoco IV Epífanes (175-164 a.C.), o qual tentou estabelecer o culto e civilização helênicos no território sob sua jurisdição, além de dedicar o Templo de Jerusalém a Zeus (2Mc 6,2). Dessa forma, o livro relata que recaiu sobre o segundo templo a “abominação da desolação” (Dn 11,31; 12,11).197 O narrador utiliza a profecia ex eventu, uma característica do gênero a- pocalíptico em geral: os acontecimentos de seu tempo, a época helenística, são colocados numa visão dada ao personagem Daniel “no terceiro ano de Ciro, rei da Pérsia” (Dn 10,1). Segundo Collins, “não há uma razão aparente, entretanto, por que um profeta do sexto século deveria focalizar minuciosa atenção sobre os even- tos do segundo século”.198
Outro dado que revela que o redator do livro está distante dos relatos que coloca na época caldeia são as imprecisões históricas: “Que o livro não pode ter sido escrito na época exílica é provado pelo conhecimento vago do autor sobre o período babilônico e o começo do período persa, e suas efetivas imprecisões”.199 Seu conhecimento sobre o século II é bem mais preciso do que o conhecimento do período babilônico e persa (séculos VI e V a.C.). Baltazar é filho de Nabônides,
196 A tentativa mais recente para estabelecer a possibilidade de datação no VI século a.C. para a composição do livro foi feita por E. C. Lucas, o qual assegura que há argumentos plausíveis tanto para a datação no VI quanto no II século a.C., e que essa questão não afetaria a crença na inspira- ção divina ou autoridade do livro (LUCAS, E. C. Daniel, Apollos Old Testament Commentary 20, 2002). Antes dele, Miller já havia tentado estabelecer a data do VI século para a composição de todo o livro (cf. MILLER, S. R. Daniel, New American Commentary 18, 1994). J. G. Baldwin também defende a época babilônica para a composição de Daniel, bem como a unidade de autoria e composição original, partindo da ambientação babilônica proposta nos seis primeiros capítulos do livro (BALDWIN, J. G. Daniel: An Introduction and Commentary, 1978). Entretanto, os argu- mentos para a datação no VI século não resistem a uma análise histórico-crítica do livro. Defenso- res da datação no VI século normalmente defendem também a historicidade factual dos persona- gens e eventos narrados no livro, sem muito sucesso.
197 DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos, p. 507. v. 2; cf. também SOARES,
Dionísio O. O livro de Daniel: aspectos sócio-históricos de sua composição. Atualidade Teológica 29 (2008), p. 237-247.
198 COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 26. Rowley sumariou a ques- tão ao afirmar “que o livro foi escrito nos dias dos macabeus, desde há muito se afirma e continua- rá a sê-lo no presente. Há quem defenda a data do sexto século, mas as evidências contra essa opi- nião são esmagadoras” (cf. ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica: um estudo da literatura apocalíptica judaica e cristã de Daniel ao Apocalipse, p. 43).
199 PORTEUS, N. W. Daniel: A Commentary, p. 20.
não de Nabucodonosor, e nunca teve o título de Rei; “Dario, o medo”, não é conhecido pela história e, em verdade, não há lugar para ele entre o último rei cal- deu, Nabônides, e Ciro, o Persa, o qual já havia vencido os medos quando conquistou o Império Babilônico.200 As datas apresentadas no livro não se harmonizam entre si e nem com a história, parecendo que foram citadas sem muita preocupação com a cronologia factual. Além disso, Nabucodonosor não levou para o exílio Joaquim e nem os utensílios do Templo de Jerusalém.201
Montgomery defende diferentes épocas de composição para as histórias compiladas no livro. Os capítulos 7 a 12 “pertencem aos primeiros anos da revolta dos macabeus, 168-165 a.C.; as quatro visões são consideradas como sendo com- postas uma por uma”.202 O mesmo postulam Bauer e Redditt, os quais exploram o desenvolvimento redacional de Daniel como sendo fruto de uma série de edições de antes e durante o período de perseguição sob Antíoco IV.203 Gammie acredita ter havido três estágios primários no desenvolvimento do livro, com a intenção original modificada de acordo com as circunstâncias históricas da comunidade judaica. Poderia ter havido, então, vários redatores, cada qual adaptando o material ao seu tempo e objetivo, sendo o último deles o redator macabeu, responsável pela última visão do livro (capítulos 10-12).204 Collins assinala que a “as histórias dos capítulos 1 a 6 não são mais antigas que o Período Helenístico, e que as revelações nos capítulos 7 a 12 foram escritas no Período Macabeu quando o rei sírio Antíoco Epífanes estava perseguindo os judeus”.205
Daniel é, na verdade, uma figura antiga, personificação da sabedoria que leva à vitória sobre o mal, bastante conhecido fora de Israel, já citado na Escritura Hebraica em Ez 14 e 20.206 Essa figura aparece em Daniel como um judeu vivendo no exílio babilônico. Collins vai além: afirma que o redator conheceria a figura lendária não pela literatura estrangeira, mas pelo livro de Ezequiel.207 Já Montgo-
200 ALONSO SCHÖKEL, Luis; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II, p. 1262.
201 Cf. DONNER, Herbert. Op. cit. p. 421-432. v. 2.
202 MONTGOMERY, J. A. ICC, p. 96.
203 BAUER, Dieter. Das Buch Daniel (1996); REDDITT, Paul L. Daniel: Based on the New Revi- sed Standard Version (1999).
204 GAMMIE, J.G. The Classification, Stages of Growth, and Changing Intentions in the Book of Daniel. JBL 95.2 (1976), p. 191-204.
205 COLLINS, J. J. Daniel, with an Introduction to Apocalyptic Literature, p. 28.
206 Sobre a antiguidade da figura do personagem, cf., dentre outros, DAY, John. The Daniel of Ugarit and Ezekiel and the Hero of the Book of Daniel. VT 30.2 (1980), p. 174-184. Para uma opi- nião contrária à identificação dos três personagens, cf. DRESSLER, Harold H. P. The Identifica- tion of the Ugaritic Dnil with the Daniel of Ezekiel. VT 29.2 (1979), p. 152-161.
207 COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 2.
mery assevera que “o nome foi tirado de uma história popular judaica existente” antes da composição final do livro no II século a.C.208 Segundo Towner:
É impossível escrever uma biografia do Daniel do livro, como se ele fosse uma figura real da história judaica. Este Daniel é um personagem compósito, ficcional, e as histórias sobre ele e os relatos de suas visões provavelmente se originaram em diversas épocas e lugares. O que nos é dado, ao contrário [de uma figura real], é um ícone da devoção judaica do II século a.C., um modelo de perseverança da verdadeira firmeza da Torá.209
Collins ainda afirma que “o livro de Daniel pode ser datado com relativa precisão entre a segunda campanha de Antíoco Epífanes contra o Egito em 167
a.C. e sua morte em 164”.210
A tese da composição em vista das perseguições impostas por Antíoco IV também é defendida por Russell, o qual acredita que a obra reflete um protesto contra a cultura estrangeira (helenística) e um encorajamento à permanência nos princípios da fé judaica.211 Lacocque afirma que o livro é um documento com- prometido não com algo abstrato ou especulativo, mas antes enfrenta as questões da vida real acerca da perseguição, do sofrimento e do mal que tantas pessoas também enfrentam no mundo moderno.212 Lederach enfatiza o tema universal da resistência ao mal presente em Daniel, investiga o texto em seu contexto bíblico e faz uma aplicação à vida da Igreja moderna.213 Rowley assevera que é “mais fácil dar um significado inteligível a qualquer parte do livro se o localizarmos nos dias dos macabeus, e nada que exija uma época anterior. Isto não significa que o autor tirou as histórias de sua própria cabeça. Significa que usou velhas histórias e tradições, e adaptou-as a seu propósito”.214
COMENTÁRIO: Esse é exatamente o espírito dos textos gnósticos pré-cristãos ou cristãos, qual seja, a arte de recolher histórias, mitos cosmogônicos, personagens, conceitos e filosofias de diversas fontes e adaptá-las para passar uma nova mensagem. Não é atoa que a maioria dos textos gnósticos reencontrados no Egito são Apocalipses ou contêm longos trechos apocalípticos.
O consenso geral é de que as narrativas presentes em Dn 1-6 já tinham uma longa e antiga tradição oral e escrita quando elas foram recolhidas e editadas no II
208 MONTGOMERY, J. A. Op. cit. p. 3.
209 TOWNER, S. W. Daniel. In: SAKENFELD, Katharine D. (Ed.). NIB, p. 13-15. v. 2; aqui p. 13.
210 COLLINS, J. J. (Ed.). Apocalypse: The Morphology of a Genre. Semeia 14 (1979), p. 30. p. 30.
211 RUSSELL, D. S. Apocalyptic: Ancient and Modern, p. 10.
212 LACOCQUE, A. Daniel. In: PATTE, D. (Ed.). Global Bible Commentary, p. 253-261.
213 LEDERACH, Paul M. Daniel, especialmente p. 29-31.
214 ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica, p. 44. Rowley é, até hoje, o princi- pal defensor da tese da unidade do livro em relação à autoria das narrativas da corte (capítulos 1-
6) e das visões (capítulos 7-12); cf. ROWLEY, H. H. The Unity of the Book of Daniel. HUCA 23 (1950-1951), p. 233-273. Segundo ele, “o ônus da prova recai sobre aqueles que dissecariam uma obra. Neste caso, porém, nada que possa ser seriamente chamado de prova de composição foi pro- duzido. Por outro lado, evidência para a unidade da obra que equivale, em sua totalidade, a uma demonstração, está disponível” (Ibidem, p. 273). Na crítica atual, entretanto, há concordância no que tange a uma possível unidade redacional por parte de um editor, mas não pela composição homogênea da obra por parte de um único autor.
século a.C., sendo então combinadas e associadas às visões de Dn 7-12. Por outro lado, pela época que o livro deixa transparecer com seu conteúdo e expressividade literária, ele já não representa mais a corrente profética primitiva, mas o desenvol- vimento do apocalipsismo, como se observa também em outras obras do período judaico intertestamentário: “Tanto em Enoque quanto em Daniel o desenvolvi- mento do tipo histórico de apocalipses está associado à crise do Período Macabeu e envolve uma reapropriação extensa da tradição profética, especialmente em Da- niel”.215
Isto posto, pode-se pressupor que o livro de Daniel em sua forma atual é o resultado de um processo de composição que se iniciou antes do II século (talvez no III a.C), adquirindo essa forma durante a época de Antíoco. Os capítulos 1 a 6 seriam fruto de um período mais primitivo (pelo menos os capítulos 2 a 6, se con- siderarmos 1,1 a 2,4a, escrito em hebraico, como trecho tardio), pois contêm as narrativas da corte, as quais seriam conhecidas pelo redator do livro de alguma forma (ou por composições escritas isoladas, ou por tradição oral); já os capítulos 7 a 12 (e talvez o trecho 1,1–2,4a) teriam sido acrescentados mais tarde, no domí- nio de Antíoco IV, como aponta especialmente o capítulo 11. É justamente neste capítulo que os maskîlîm (os “sábios”, termo aplicado a Daniel e seus companhei- ros já no primeiro capítulo do livro) desempenham papel primordial contra a per- seguição daquele soberano.
Os destinatários do livro, a comunidade representada pelo editor, está dire- tamente relacionada ao seu marco social. O consenso tradicional de que os apoca- lipses são “literatura de crise” é baseado primeiramente nos apocalipses do tipo “histórico”, os quais apareceram a partir de grandes crises provocadas por perse- guição sob o governo de Antíoco Epífanes e posteriormente na época da destrui- ção de Jerusalém pelos romanos.
A diferença crucial em relação ao profetismo bíblico está justamente numa expectativa de retribuição pessoal (recompensa ou punição) no pós-morte, embora em muitos apocalipses isso ocorra no contexto de uma restauração do povo como um todo. Como no profetismo, julgamento e salvação incluem a restauração do povo judaico, mas nos apocalipses incluem também a transcendência dos limites comuns da história para uma esfera de ação cósmica no julgamento e retribuição
215 COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 71.
aos mortos, normalmente pela ressurreição.216 Assim, as predições escatológicas nos apocalipses históricos normalmente seguem o padrão crise-julgamento- salvação.
No caso de Daniel, a perseguição sobre Antíoco Epífanes forma o back- ground da composição do livro, conforme assinalado supra.217 O estudo do marco social retratado no livro leva, invariavelmente, ao estudo de sua função social, gê- nero e datação. Cristofani assinala que o gênero do livro, a datação, a estrutura e o caráter bilíngue colaboram para se precisar a situação vivencial dos possíveis arti- culadores do livro.218 Ele assegura que qualquer análise de Daniel deve levar em conta o seguinte: o grupo a que se refere o livro deve ser procurado em Jerusalém; a sua existência e atuação devem estar entre os séculos III e II a.C.; o caráter com- pósito do livro (gênero, língua, contexto histórico) parece indicar um processo de mudança social; e o grupo teve um relacionamento tranquilo, até certo ponto, com o poder estrangeiro durante o período anterior a Antíoco IV Epífanes.
Apesar das constatações de Cristofani, os heróis presentes no livro, por ou- tro lado, são situados no marco da diáspora, e suas vidas têm a função de servir como exemplo aos que vivem em situações semelhantes. Daí ser muito provável que as legendas da primeira parte do livro tenham surgido em terras de exílio, ofe- recendo um “estilo de vida” para os judeus da diáspora, mostrando a eles a possi- bilidade de participarem plenamente da vida de uma nação estrangeira, revelando principalmente a possibilidade de prosperarem e serem fiéis ao Deus de seus pais. Dessa forma, “o estilo de vida proposto para a diáspora, então, era de ativa parti- cipação na vida gentílica, mas sem comprometer as exigências da tradição judai- ca”.219
216 O Apocalipse das Semanas não menciona claramente a ressurreição, mas há uma referência clara em 1En 93,1-10 e 91,11-17, conforme já assinalado neste trabalho.
217 Dentre as muitas obras acerca do período histórico que engloba essa época, além das já citadas, cf. PETERS, F.E. The Harvest of Hellenism: A History of the Near East from Alexander the Great to the Triumph of Christianity, p. 222-260; AUSTIN, M.M. The Hellenistic World from Alexander
to the Roman Conquest, p. 255-280; HENGEL, M. The Political and Social History of Palestine from Alexander to Antiochus III (333-187 B.C.E.). In: DAVIES, W.D.; FINKELSTEIN, L. (Ed.). CHJ: The Hellenistic Age, p. 35-78. v. 2; sobre a relação entre o texto de Daniel e a sua historici- dade, cf. COLLINS, J. J. Daniel and His Social World. Int 39.2 (1985), p. 131-143; para uma post- ura convervadora, cf. HARDY, F. W. An Historicist Perspective on Daniel 11, p. 28-103.
218 CRISTOFANI, J. R. A expressão “Filho do Homem” em Daniel. In: NOGUEIRA, P.A.S. (Ed.).
Apocalíptica e as origens cristãs, p. 25-44; aqui p. 34.
219 COLLINS, J.J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 51. Cf. também, do mesmo autor, The Apocalyptic Vision of the Book of Daniel, p. 55: “Há um largo consenso entre os estudi- osos de que os relatos surgiram na Diáspora Oriental”.
Os relatos de Dn 1-6 têm como base histórica, então, a diáspora oriental:220 o marco histórico proposto tem como ponto de partida o Império Neobabilônico, em que os personagens são colocados, e ponto de chegada o Império Persa, pois Daniel fica servindo à corte até o primeiro ano do Rei Ciro, passando pelo reinado de “Dario, o medo” (Dn 6,1). Já na segunda parte do livro o marco se estende, in- cluindo um quarto império, o Grego (o “príncipe de Java”, a Jônia, em Dn 10,20).221
Nessa segunda parte a figura dos maskîlîm (sábios ou prudentes) toma mais proeminência. Para Reddit as referências aos sábios ou prudentes (maskîlîm) em Dn 11 são um reflexo dos círculos que produziram essa literatura, particularmente em contextos cúlticos e sapienciais.222 Recentemente, ele postulou que os autores eram um grupo de escribas que se via ameaçado pelas atitudes de Antíoco e, por isso, compilou as narrativas com o intuito de encorajar seus leitores.223 Knibb sus- tenta a visão de que o manticismo foi a matriz para o surgimento da literatura apo- calíptica; os autores de Daniel pertenciam a uma classe de escribas, mas o livro não oferece indícios suficientes para determinar se eles pertenciam a um determi- nado partido político ou religioso.224 Albertz argumenta que a parte aramaica de Daniel (2,4b-7,28) tem como marco social o final do III século a.C., ao passo que as porções hebraicas teriam se originado entre os hasîdîm do II século na Judeia. Os hasîdîm eram escribas piedosos que se situavam socialmente entre a aristocra- cia sacerdotal estabelecida e as classes mais baixas. Eles foram divididos em pelo menos duas facções em relação à questão de a Revolta dos Macabeus ser justificá- vel teologicamente ou não.225 Para Schubert, “o livro de Daniel no AT teve origem em círculos assideus”.226
Otto Plöger afirma que o livro de Daniel apresenta o processo final da mu- dança da escatologia profética para a apocalíptica; segundo ele, os hasîdîm repre-
220 ASURMENDI, J. M. Daniel e a apocalíptica. In: CARO, José M. Sánchez (Ed.). História, nar- rativa e apocalíptica, p. 420-421.
221 Ibidem, p. 424-425.
222 REDDITT, P. L. Daniel 11 and the Sociohistorical Setting of the Book of Daniel. CBQ 60.3 (1998), p. 463-474.
223 Idem. The Community Behind the Book of Daniel: Challenges, Hopes, Values, and Its View of God. PRSt 36.3 (2009), p. 321-339.
224 KNIBB, M. A. “You Are Indeed Wiser Than Daniel”: Reflections on the Character of the Book of Daniel. In: VAN DER WOUDE, A. S. (Ed.). The Book of Daniel in the Light of New Findings, p. 399-412.
225 ALBERTZ, R. The Social Setting of the Aramaic and Hebrew Book of Daniel. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). The Book of Daniel: Composition and Reception, p. 171-204. v. 1.
226 SCHUBERT, Kurt. Os partidos religiosos hebraicos da época neotestamentária, p. 18.
sentam a atualização da antiga perspectiva profética (que cessou com o fim do movimento profético), a qual o redator de Daniel incorporou. Essa atualização permitiu inclusive que os escritos como o de Daniel fossem considerados inspira- dos, nos moldes da Torá.227 Beyerle considera que o livro tenciona uma substitui- ção do sistema social existente. Dentro do contexto apocalíptico visionário de Da- niel, essa substituição inclui a esperança de salvação. O círculo mais provável para a origem de Daniel seria, portanto, os maskîlîm.228
Grabbe também situa o marco social do redator do livro na época dos gre- gos.229 O redator teria sido um indivíduo instruído que teve acesso às obras hele- nísticas e, provavelmente, era um aristocrata, possivelmente um sacerdote. Seu livro se estabeleceu rapidamente como um trabalho importante, sendo lido imedia- tamente em busca de pistas acerca do futuro imediato, firmando, assim, sua traje- tória nas mãos dos intérpretes posteriores judeus e cristãos.
Davies sugere que três símbolos podem definir o mundo social de Daniel: o livro, a corte e o segredo. No livro de Daniel, tudo o que é significativo é feito por escrito, um símbolo de autoridade política e poder. Portanto, os autores do li- vro seriam membros de uma elite privada de seu status e poder, e o simbolismo de segredo presente em Daniel funcionaria para negar a realidade aparente dos acon- tecimentos.230 Davies ainda investiga a identidade dos maskîlîm mencionados em Dn 12,3 na suposição de que eles são a escola de escribas responsáveis pela pro- dução da forma final do livro de Daniel.231 Ele conclui que os maskîlîm tinham suas raízes na diáspora, identificados como uma elite privada de seus direitos que era provavelmente alistada para os movimentos sectários opostos aos hasmoneus, sendo aliados em potencial dos sacerdotes zadoquitas. As narrativas não eram des- tinadas ao povo em geral, mas antes eram originárias de classes mais altas, refle- tindo a preocupação desse tipo de pessoa.
Entretanto, também é importante considerar a evidência da natureza popu- lar das narrativas na determinação da proveniência social do livro. Se ele tem, na verdade, uma longa história de composição, como a maior parte dos estudiosos
227 PLÖGER, Otto. Theocracy and Eschatology, p. 22-25.
228 BEYERLE, S. The Book of Daniel and Its Social Setting. In: Ibidem, p. 205-228. v. 1.
229 GRABBE, L. L. A Dan(iel) for All Seasons: For Whom Was Daniel Important? In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). Op. cit. p. 229-246.
230 DAVIES, Philip R. Reading Daniel Sociologically. In: VAN DER WOUDE, A. S. (Ed.). Op. cit. p. 345-361.
231 Idem. The Scribal School of Daniel. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). Op. cit. p. 247- 265.
afirma, esse fator pode ser um indicador da popularidade do livro.232 O melhor medidor de sua popularidade são provavelmente as muitas versões existentes dis- poníveis atualmente.233 Assim sendo, a hipótese de elite do marco social de Daniel por si só não justifica a grande popularidade do livro, e explicações alternativas são possíveis. O cenário das narrativas em corte estrangeira não significa necessa- riamente que as histórias cumpram sua finalidade unicamente (ou mesmo princi- palmente) em círculos reais. Os contos não são simplesmente um relato factual dos detalhes da vida na corte, mas, em vez disso, contêm exageros, como, por e- xemplo, a fúria real excessiva (Dn 1,10; 2,5; 3,19), jantares magnificentes para mil nobres (Dn 5,1), e aparentemente elogios efusivos e supostas conversões de reis estrangeiros à fé judaica (Dn 2,27; 3,28-30; 4,31-34).
Henze constata que semelhantes exageros não são suscetíveis de serem o- riginados em círculos bem familiarizados com os valores da corte.234 É bem pro- vável que tais descrições extravagantes sejam projeções dos desejos dos desprivi- legiados. Assim, é possível que as histórias não tenham sido criadas pelos judeus bem posicionados na diáspora, mas reflitam a imaginação daqueles situados bem abaixo dos círculos sociais da corte.235 Os personagens das narrativas são retratos exagerados que servem aos propósitos do gênero literário “relatos da corte”; os judeus são extremamente piedosos, eloquentes e sábios, ao passo que o monarca é um tanto estúpido, e seus assessores ardilosos e maléficos. Os contos oferecem esperança aos judeus na diáspora, apresentando os tipos de personagens que per- sonificam as esperanças nacionais dos judeus exilados (heróis virtuosos) e criando situações fantásticas com personagens exagerados que apresentam a mensagem de resistência satírica dos contos. Wills, Davies e Gruen reconhecem os impulsos po- pulares, bem-humorados e criativos presentes no âmago dos escritos novelescos judaicos.236
232 COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 35-38.
233 HENZE, M. The Madness of King Nebuchadnezzar: The Ancient Near Eastern Origins and Early History of Interpretation of Daniel 4, p. 19-23; KOCH, K. Stages in the Canonization of the
Book of Daniel. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). Op. cit. p. 421-446. v. 2; ULRICH, E.
The Text of Daniel in the Qumran Scrolls. In: Ibidem, p. 573-585, especialmente p. 581-582.
234 HENZE, Matthias. The Narrative Frame of Daniel: A Literary Assessment. JSJ 32.1-4 (2001), p. 5-24; aqui p. 16-17.
235 CHARLESWORHT, J. H. The Social Setting and Origin of Jewish Apocalyptic Literature. In: How Barisat Bellowed: Folklore, Humor, and Iconography in the Jewish Apocalypses and the Apocalypse of John, p. 23-47.
236 Cf. WILLS, L. M. The Jewish Novel in the Ancient World, p. 5; DAVIES, P. R. Scribes and Schools: The Canonization of the Hebrew Scriptures, p. 144; GRUEN, E. S. Diaspora: Jews amidst Greeks and Romans, p. 137.
Davis observa que a preocupação histórica sobre a proveniência do materi- al de Daniel em círculos profético, sapiencial ou apocalíptico diminuiu quando a questão da possível localização social desses “movimentos” foi levantada por eru- ditos como Wilson e Cook.237 Assim sendo, a adequação de uma correspondência direta entre o ambiente social do texto no livro de Daniel e o mundo social efetivo da narrativa tornou-se uma questão séria a ser discutida. O próprio Davies já havia passado em revista as diversas sugestões para a proveniência social do material de Daniel e demonstrado que não há consenso.238 Ele simplesmente concluiu que não é possível saber precisamente onde esse material se originou. Essa tendência de peneirar e expurgar as evidências sociológicas do fluxo do texto foi substituída pelo próprio Davies naquilo que ele caracterizou num artigo mais recente como uma “hermenêutica da suspeição”,239 a fim de discernir os interesses ideológicos subjacentes ao texto.
Valeta argumenta que o uso imaginativo de humor e sátira nessas narrati- vas reflete uma manipulação criativa da realidade social da vida na corte factual para fins de resistência ao rei e ao império, elaborando assim uma ligação temática com os julgamentos presentes nas visões de Dn 7-12.240
Como pode ser visto, o livro de Daniel, em sua forma final, reflete o desejo de resistência e a esperança de vitória de uma comunidade exposta num ambiente de crise e perseguição política, religiosa e social. Resistência ao império, e não avanço social e político, é o propósito fundamental dessas narrativas, e isso possi- bilita o reconhecimento de um marco social mais popular para a gênese dos contos da primeira parte do livro. A ligação entre as duas partes, pelo gênero e marco so- cial, revela uma comunidade em crise, à espera de esperança e salvação por parte de Iahweh. Segundo Montgomery, a análise do caráter literário do livro de Daniel traz junto a análise de seu caráter religioso.241
A luta entre “bem” e “mal”, a presença de um personagem exemplar, inspi-
237 DAVIES, P. R. The Scribal School of Daniel. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). The Book of Daniel: Composition and Reception, p. 247-265. v. 1; aqui p. 248-250. Os textos a que Davies se refere são WILSON, R. R. From Prophecy to Apocalyptic: Reflections on the Shape of Israelite Religion. In: CULLEY, R. C.; OVER HOLT, T. W. (Ed.). Anthropological Perspectives on Old Testament Prophecy. Semeia 21 (1981), p. 79-85; COOK, S. L. Prophecy & Apocalyptic- ism: The Postexilic Social Setting, especialmente p. 19-84.
238 DAVIES, P. R. Reading Daniel Sociologically. In: VAN DER WOUDE, A. S. (Ed.). The Book of Daniel in the Light of New Findings, p. 345-361; aqui p. 347.
239 Idem. The Scribal School of Daniel. In: COLLINS, J. J.; FLINT, P. W. (Ed.). Op. cit. p. 247.
240 VALETA, D. M. Court or Jester Tales? Resistance and Social Reality in Daniel 1-6. PRSt 32.3 (2005), p. 309-324.
241 MONTGOMERY, J. A. ICC, p. 100-104.
rado por Iahweh, uma temática que incentiva a confiança e a obediência dos leito- res em seu Deus, estão de fato presentes nos relatos da corte, sempre opondo os personagens judeus aos personagens caldeus, e, assim, os deuses destes ao Deus daqueles, com Iahweh sempre triunfando. Esses relatos possuem inúmeros ele- mentos em uma exposição satírica unificada de literatura de resistência que é con- sistente com o mundo social do livro e com a atitude de julgamento para com An- tíoco IV Epífanes encontrada em Dn 7-12.
4.4.3. A crítica textual
O aparato crítico da BHS não apresenta muitos casos de variantes para o texto em questão. Os v. 1 e 3 não apresentam qualquer questão; já o v. 2 apresenta dois casos, sendo o primeiro mais importante, envolvendo a LXX, o texto grego de Teodocião e a Vulgata. Nos três versos não há referência à Peshita (versão sirí- aca surgida por volta do II século d.C., a partir do texto hebraico ou a partir da LXX), nem a algum Targum, pois, como se sabe, não há nenhum Targum feito a partir do texto de Daniel,242 e nem a algum manuscrito nos textos de Qumran.
A primeira variante no v. 2 diz respeito à expressão (“pó da terra”) em 2a. Segundo o aparato, o texto grego da LXX traz e*n t w~~/ pl avt ei t h~ ς
gh~ς~
(“na largura (amplitude)243 da terra”), e o texto grego de Teodocião traz a va-
riante e*n gh~ς~
cwvmat i (“na trincheira (ou monte sepulcral)244 da terra”), o que, se-
gundo o aparato, indicaria uma retroversão (ato de verter à língua original o que já estava traduzido) ao TM (comparando-se com o acádico “bît epri”). A Vulgata traz a mesma variante de Teodocião.
A LXX é um dos grandes testemunhos da transmissão do texto da Bíblia Hebraica; é a primeira tradução do hebraico, feita por volta do III século a.C., principalmente em Alexandria, no Egito. Sua enorme importância pode ser resu- mida em quatro pontos: além de ser um reflexo do judaísmo helenístico, releva um conhecimento acerca do texto antes de sua estabilização; foi o texto do AT utiliza- do nas citações do Novo (emprestando a este, então, vários conceitos cristãos); foi o texto bíblico dos Pais da Igreja (também dos latinos através da Vetus Latina, tradução da LXX para o latim), revelando influência no cristianismo primitivo; e, por fim, foi útil para emendar o texto hebraico-aramaico do AT.245 As comunida- des cristãs espalhadas pelo Império Romano, que não falavam grego ou latim, co- nheceram o texto bíblico por meio de traduções feitas a partir do texto da LXX.
O texto dela possui, então, grande valor para a crítica textual, pois, entre outras coisas, “reflete, em termos de importantes variantes, um número maior do
242 Cf. TOV, Emanuel. Textual Criticism of the Hebrew Bible, p. 151, e TREBOLLE BARRERA, Julio. A Bíblia judaica e a Bíblia cristã, p. 385 e 391.
243 Cf. as nuanças de pl at uv ς, -ei~a, -uv em LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. LSJ, p. 1413-1414; BAILLY, A. AB, p. 1566.
244 Para as nuanças de cw~ma, -at o ς cf. Ibidem, p. 2014; Ibidem, p. 2163.
245 PISANO, Stephen. Introduzione alla critica testuale dell’Antico e del Nuovo Testamento, p. 16.
que todas as outras traduções juntas”.246 Sua importância para a crítica textual provém de dois aspectos presentes numa mesma versão: “seu valor crítico como tradução de um original hebraico, às vezes divergente da tradição massorética, e seu valor exegético como tradução, que reflete tradições de interpolação e ideias teológicas do judaísmo helenístico”.247
De fato, a LXX possui inúmeros traços distintos em relação ao TM e a ou- tros testemunhos textuais, com elevado grau de discordância. Pelas pesquisas rea- lizadas até a atualidade, os originais hebraicos da LXX não eram os mesmos do TM. Entre os manuscritos do Mar Morto foram descobertos textos hebraicos que refletem e concordam com o texto da LXX. É provável, portanto, que a LXX te- nha tido um texto hebraico diferente do que teve o TM.248 Em relação ao livro de Daniel, o texto da LXX difere muito do TM.249
Já o texto de Teodocião é uma das últimas traduções gregas do judaísmo, situada já no período cristão. Sua tradução é uma revisão da LXX: ele “não fez uma nova tradução, mas antes uma revisão que aproxima o texto ao hebraico”.250 Obteve grande difusão, a tal ponto que substituiu o texto original da LXX em grande parte dos manuscritos existentes. Teodocião é situado, pela tradição, no II século d.C.251
Assim, seu texto se tornou o texto corrente do livro de Daniel, substituindo o texto da LXX, devido à sua superioridade:
Pode-se supor que o texto ‘teodociônico’ de Daniel constitui-se numa tradução da forma hebraica e aramaica do livro, realizada por um judeu que levou em conta a versão existente da LXX. Esta versão pode proceder da Síria ou Mesopotâmia (Koch). Em todo caso não se pode considerar tal versão como uma recensão no sentido estrito do termo.252
A Vulgata é a tradução para o latim feita entre o final do século IV e início do V d.C., em Belém, por Jerônimo de Estridônia (São Jerônimo), a partir do texto hebraico, aramaico e grego. Sua importância para a exegese e para a crítica textual é grande, pois representa um dos principais testemunhos textuais surgidos antes da época dos massoretas. Jerônimo utilizou, então, a LXX, as versões gregas existen-
246 TOV, Emanuel. Op. cit. p. 142.
247 TREBOLLE BARRERA, Julio. Op. cit. p. 355 (grifo do autor).
248 TOV, Emanuel. Op. cit. p. 136-138; TREBOLLE BARRERA, Julio. Op. cit. p. 359-362.
249 TOV, Emanuel. Op. cit. p. 142.
250 PISANO, Stephen. Op. cit. p. 19.
251 TREBOLLE BARRERA, Julio. Op. cit. p. 371.
252 Ibidem. Daí então a importância do texto de Teodocião para o livro de Daniel.
tes e também o texto hebraico. Este era já praticamente o texto hebraico medieval, o TM, com poucas variantes.253
No caso em questão, é bastante plausível que Teodocião discordou da tra- dução da LXX e tentou restabelecer o sentido hebraico da expressão, a qual, neste caso, corresponde à presente no TM, sendo seguido neste caso pela Vulgata. Pode ser que ele tenha tido acesso a um texto hebraico diferente do utilizado pela LXX em sua tradução.
No segundo caso de variação apontado pelo aparato crítico da BHS, este informa que a expressão (“para a censura”) situada antes de (“pa-
ra repulsa”) em 2c é uma glosa (explicação), a qual pode ser apagada. De fato, “censura” e “repulsa” aparecem como sinônimos. Pode ser que a expressão tenha sido utilizada, de fato, para fins de ênfase, daí sua adição.
Interessante observar que, diferentemente da edição de Alfred Rahlfs, a e- dição da LXX de Joseph Ziegler traz as palavras kai v ai *scuvnhn (“e vergonha”,
referente a do TM em 2c, “para repulsa”) entre colchetes, sendo conside-
radas então secundárias:
Texto Massorético | 12,2 | Texto da LXX de Ziegler |
| 2a | kai pol l oi t w n kaqeudont wn e *n t w~~/ pl avt ei t h~ ς gh~ς~ a*nast h vsont ai , |
| 2b | oi& meVn ei ς* zwhVn ai w* nv i on, |
| 2c | oi & deV ei ς* o*neidismo nv , oi & deV ei *ς diaspor a Vn [kai V ai *scuvnhn] ai*wvnion. |
Tabela 03: Comparação de Dn 12,2 no TM e na LXX de Ziegler254
Poderia ser, então, que essas palavras gregas representariam influência da versão de Teodocião. Neste caso, pode-se pensar que e não seria
a glosa. Mas essa hipótese é menos provável, dado o fato de que o texto da LXX é bem mais antigo que o de Teodocião.
A única diferença no texto da LXX de Ziegler para a edição de Rahlfs são os colchetes colocados nessa expressão.
Interessante observar também que, ao passo que o TM cita em 2a “aqueles que dormem no pó da terra”, o grego antigo apresenta uma imagem diferente: “a-
253 Cf. TOV, Emanuel. Op. cit. p. 153; TREBOLLE BARRERA, Julio. Op. cit. p. 425.
254 O texto da LXX de Ziegler apresenta: “E muitos dos que dormem na amplitude da terra se le- vantarão, uns para a vida eterna, outros para injúria, para a dispersão [e vergonha] eterna”.
queles que dormem na amplidão da terra”. A expressão grega t o V pl avt o ς t h ~ς~ ghς~~
é atestada também em outros lugares: Eclo 1,3 (pl avt o ς gh~ς~ ), Hab 1,6 (t a V pl a vt h
t h~~ ς gh~ς~ ) e em Is 8,8 (t o V pl a vt o ς t h ς~~
cwvr a ς sou).255 Em todos esses outros ca-
sos, trata-se de uma expressão que não se refere ao lugar dos mortos; ao contrário, “a amplidão da terra” remete simplesmente a toda a Terra dos vivos. Nesse caso, pode ser que tenha havido na interpretação grega lembrança de Is 26,19: oi & e*n t h~~/
gh~~/ (“os que estão na terra”), TM: (“que habitam o pó”). Fica clara tam-
bém, assim, a noção grega da rejeição da ideia de ressurreição, conforme já atesta- da supra.
Na tradução grega, tanto em Dn 12,2 quanto em Is 26,19 o hebraico
foi entendido no sentido de “terra”, o que representa uma das conotações deste mundo.256 O verbo kaqeuvdw (“deitar-se”, “dormir”, “adormecer”)257 parece ser usado em Dn 12,2 com o mesmo sentido de “estar morto” em Sl 88,6 (kaqeuv- dont e ς e*n t avφw/, “que estão deitados no sepulcro”, na LXX de Rahlfs locado como 87,6), mas em combinação com a frase “na amplidão da terra” pode-se pen- sá-lo metaforicamente como uma referência ao povo na dispersão, justamente co- mo oi & nekr oi v (“os mortos”) na LXX de Is 26,19.
Essa compreensão grega do texto se coaduna bem com o restante do verso, onde se diz que alguns se levantarão para a “vida eterna”, ao passo que outros para a “injúria” (“vergonha”) e “dispersão (diáspora) eterna”. O grego “diáspora” é
então usado aqui como interpretação de (“repulsa”, “vergonha” em 2c).258
Esse termo, segundo Charles, é baseado no aramaico consonantal , (“dis- persar”, no sentido de “repelir”, “afastar”, “pôr de parte”).259 A combinação das ideias de “repulsa” e “dispersão” aparece também, por exemplo, em Jr 24,9: kai V
255 Cf. HATCH, E.; REDPATH, H. A. A Concordance to the Septuagint: And the Other Greek Versions of the Old Testament (Including the Apocryphal Books), p. 1141. v. 2.
256 WÄCHTER, L. . In: BOTTERWECK, G. J.; RINGGREN, H. (Ed.). ThWAT, p. 277. v. 6.
257 Já no grego épico de Homero esse verbo aparece com o sentido de “deitar-se para dormir”. O uso metafórico é mais tardio; em Dn 12,2 seu sentido é “deitar-se para o sono da morte” (cf. LID- DELL, H. G.; SCOTT, R. LSJ, p. 852).
258 Alfrink sugere que se deva ler diaφqor avn (diaφqor av, “destruição”, “ruína”) em vez de dias- por a vn (cf. ALFRINK, B. L’idée de résurrection d’après Dan. XII, 1-2. Bib 40 (1959), p. 355-371;
aqui p. 367. Já Jeansonne acredita que a leitura diaspor a vn representa uma adição tardia (cf. JE- ANSONNE, S. P. The Old Greek Translation of Daniel 7-12, p. 101), possibilidade essa já assina- lada supra.
259 CHARLES, R. H. A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Daniel, p. 329; cf. também BROWN, Francis (Ed.). HELOT, p. 201.
dwvsw au*t ou Vς ei *ς diaskor pismo Vn... kai V e!sont ai ei *ς o*neidi smoVn... (“e os da- rei para serem espalhados largamente... e serão uma injúria...”).
A ideia de “repulsa” aparece também justamente no último verso do livro de Isaías, no discurso escatológico (Is 66,18-24, provavelmente um acréscimo a Is
40-66 ou a todo o livro); o mesmo termo é usado quando Iahweh afirma
que os cadáveres de seus inimigos e dos inimigos de Israel “serão uma repulsa () para toda a carne” (v. 24), ou seja, para todos que os contemplarem.260
De qualquer forma, o texto grego de Dn 12,2 é marcado pelo contraste en- tre “vida eterna”, por um lado, e “desprezo” e “vergonha eterna” pelo outro. Em
Dn 12,1 os que vão para a “vida eterna” são os que estão escritos no livro (paς~~ o&
l aovς, o$ς a#n eu&r eq h~~/ e*ggegr amme vnoς e*n t w~~/ bibl i vw/), o que faz lembrar tam- bém o texto da LXX em Is 4,3 (a@gioi... pa vnt e ς oi & gr a φevnt e ς ei *ς zwhVn e*n Ie- r ousal hm , “santos... todos os escritos para a vida em Jerusalém”). Assim sendo, pode ser que a interpretação grega tenha pensado que os destinados à “vida eter- na” usufruirão essa eternidade em Jerusalém (cf. Is 65,22),261 ao passo que os con- trários estariam destinados a viver fora de Jerusalém, na dispersão. Assim sendo, “a noção do ‘levantar-se’ em Dan 12:2 remete ao fim de um período de vida na escuridão e, por assim dizer, na sombra da morte. A ideia subjacente de nosso tex- to é que um julgamento ocorrerá – um julgamento entre os ‘bons’ e os ‘maus’ [dentre os próprios israelitas]”.262
Entretanto, o outro lado do paralelismo (os destinados à “repulsa eterna”), no contexto do livro de Daniel, não corresponde ao Israel infiel, como no profe- tismo clássico, mas sim aos opressores dos mártires, justos e fiéis dos tempos dos macabeus. Pode-se concluir que a interpretação grega de Dn 12,2 sofreu forte in- fluência da tradução da própria LXX em outros textos da Escritura Hebraica, es- pecialmente dos grandes profetas. Também não se poderia pensar em ressurreição
260 Cf. EVEN-SHOSHAN, Abraham (Ed.). NCB, p. 271. Aqui a LXX interpretou por o@r asi ς (“visualização”, “kai V e!sont ai ei *ς o@r asin pa vsh/ sar ki v”, “e serão visíveis a toda car- ne”). A BJ traduz o termo por “abominação”, a IBB por “horror”, e a NVI por “repugnância”.
261 “Já não construirão para que outro habite a sua casa, não plantarão para que outro coma o fruto,
pois a duração da vida do meu povo será como os dias de uma árvore, meus eleitos consumirão eles mesmos o fruto do trabalho das suas mãos”.
262 VAN DER KOOIJ, Arie. Ideas about Afterlife in the Septuagint. In: LABAHN, M.; LANG, M. (Ed.). Lebendige Hoffnung – ewiger Tod?!: Jenseitsvorstellungen im Hellenismus, Judentum und Christentum, p. 87-102; aqui p. 101.
individual no texto da LXX, física ou não, seguida de julgamento com retribui- ções, pois quanto a isso a tradição grega não aceitou a influência persa.
4.4.4. Principais aspectos linguísticos e históricos do texto
O texto traz o tema da ressurreição, conforme já citado neste trabalho, sen- do o primeiro das Escrituras Hebraicas a citar claramente uma ressurreição indivi- dual.
O trecho de Dn 12,1-4 traz a conclusão de toda a seção da revelação por parte do anjo ao personagem Daniel,263 iniciada em 10,1 (Dn 12,4 contém a de- terminação formal do anjo para Daniel) e, dentro disso, os v. 1-3 trazem a sequên- cia imediata à queda de Antíoco: “A derrubada do poder mundial é retratada pelo autor como sendo acompanhada por uma época de julgamento – talvez convulsões políticas – da qual, no entanto, os fiéis entre o povo de Deus são livres; uma res- surreição dos israelitas se segue; e então uma época de felicidade se inicia para os justos”.264 Segundo Montgomery, nos apocalipses mais antigos o final do período de um tirano ímpio implica felicidade para os justos.265 Entretanto, uma novidade se estabelece aqui: qual a recompensa dos mártires, os que morreram em defesa da fé no único Deus de Israel? A ressurreição individual dava uma resposta à questão, e foi “a partir da época da guerra dos Macabeus que essa crença começou a se tor- nar um dos poucos principais dogmas do Judaísmo”.266
A expressão (“aquele tempo”) é recorrente na perícope em
questão (aparece em 1a, 1e, 1f). Neste caso, ela se refere ao tempo do rei invasor de Israel e sua morte, a qual se encontra no “tempo do fim” (cf. Dn 11,40), um tempo já predeterminado (Dn 11,27) se tornando também o tempo da intervenção celestial decisiva. A frase é usada também com conotação escatológica em Jr
3,17,267 sendo também uma marca na profecia pós-exílica como . 268
Esse “tempo do fim”, ao longo do livro de Daniel, “recebeu novos signifi-
263 PORTEOUS, N. W. Daniel: A Commentary, p. 170.
264 DRIVER, S. R. The Book of Daniel: With Introduction and Notes, p. 200.
265 MONTGOMERY, J. A. ICC, p. 471. Montgomery cita como exemplos Ez 38-39 e Jl 4.
266 Ibidem.
267 “Naquele tempo, chamarão a Jerusalém: ‘Trono de Iahweh’; para ela convergirão todos os po- vos em nome de Iahweh, em Jerusalém, e não seguirão mais a dureza de seus corações malvados”. 268 BLENKINSOPP, J. The Eschatological Reinterpretation of Prophecy. In: A History of Prophecy in Israel, p. 226-239; aqui especialmente p. 233-237.
cados à luz de novas circunstâncias”.269 No epílogo (12,5-13), o fim é apontado para além da reconsagração do Templo (pode ser que esse epílogo tenha sido a- crescentado após a reconsagração270). Permanece incerta, por exemplo, a diferença de número de dias entre 8,14 (mil cento e cinquenta), 12,11 (mil duzentos e no- venta) e 12,12 (mil trezentos e trinta e cinco dias). De qualquer forma, em 12,1-3 a ressurreição dos mortos e a exaltação dos “prudentes” (ou “sábios”) constituem uma característica específica e distintiva, e sob o ponto de vista do editor final a remoção da “abominação da desolação” e a restauração do culto no Templo são pré-requisitos para o fim (o estado final de salvação é descrito de forma vaga no capítulo 7 como sendo um reino).
Miguel, “o grande príncipe”, aparece como aquele “que se levanta sobre os filhos de seu povo” (em 1b), como um “campeão e defensor”;271 a partir de agora, o poder do príncipe da Grécia não é mais citado.272 O livro apresenta uma doutrina dos príncipes das nações, isto é, os “patronos celestiais” das nações. A existência dessas divindades das nações (cf. Sl 82) foi assimilada pelo monoteísmo judaico sob o esquema de uma organização imperial nos céus. O anjo protetor de Israel é uma ideia que pode remontar a Ex 23,20;273 em Daniel, esse anjo é chamado de Miguel (“Quem é como Deus?”), um dos arcanjos principais (Dn 10,13.21). Con-
forme já assinalado neste trabalho, o verbo (em 1a) possui aqui um sentido
judicial: o anjo de Iahweh se levanta para julgar a causa de seu povo.274 Essa in- terpretação fornece um paralelo desse texto com Dn 7, onde a cena do clímax tem conotação judicial e o tema do livro dos viventes também aparece.
Esse tempo que precede a ressurreição e juízo é caracterizado como um
(“tempo de angústia”, em 1c) de tal proporção que nunca houve sobre a Terra. A expressão parece ser emprestada de Jr 30,7, onde se diz que Israel é pou-
269 COLLINS, J. J. The Meaning of the End in the Book of Daniel. In: Seers, Sybils, and Sages in Hellenistic-Roman Judaism, p. 157-165; aqui p. 163.
270 Grande parte dos estudiosos discorda desta tese (cf. por exemplo MONTGOMERY, J. A. ICC,
p. 474). De fato, o trecho se encaixa melhor como um epílogo ao todo do livro do que como uma adição tardia que representasse a reconsagração já acontecida.
271 DRIVER, S. R. Loc. cit.
272 Armerding chega a afirmar que “é bem possível que o levantar de Miguel sinalizará, no céu, o começo da época de aflição” (cf. ARMERDING, C. E. Asleep in the Dust. Bibliotheca Sacra 121, n. 482 (1964), p. 153-158; aqui p. 154).
273 Ex 23,20: “Eis que vou enviar um anjo diante de ti para que te guarde pelo caminho e te condu- za ao lugar que tenho preparado para ti”.
274 Cf. BROWN, F. (Ed.). HELOT, p. 763-764; KOEHLER, L.; BAUMGARTNER, W. HAL, p. 795-796. v. 1.
pado dele.275 A ideia aparece também em 1Mc 9,27,276 obra contemporânea ao livro de Daniel em sua forma hebraico-aramaica final.
Em 1g, os que escapam da tribulação são descritos como todo aquele que se encontra (“escrito no rolo”);277 em Sl 69,29, aparece a ideia de um
(“livro dos viventes”) no qual os nomes dos justos deveriam estar escri- tos, bem como em Ex 32,32.278 A mesma imagem aparece também em 1En 47,3 (“Nesses dias, vi o Ancião sentado no seu trono glorioso e os livros dos vivos a- bertos perante ele; todo o seu exército que mora nos céus em cima e seu conselho estava de pé perante ele”). Esse livro dos viventes acaba possuindo valor jurídico por ocasião do julgamento final.279
Esses descritos como “escritos no rolo” estão certamente entre os “muitos” (, em 2a) que ressuscitam nesta ocasião. Em relação a esses “muitos”, o reda-
tor com certeza tem em mente particularmente os mártires e apóstatas que foram proeminentes durante o reinado de Antíoco. Eles são também descritos como “os que dormem no pó da terra” (em 2a): essa expressão é peculiar, e ocorre somente
neste texto. Normalmente, o termo (“pó”) é usado para o túmulo, como em
“jazer no pó” em Jó 21,26; aparece também em Jó 17,16 em paralelismo a Sheol, o mundo dos mortos.280 Collins assinala que a expressão (“pó da ter-
ra”) é provavelmente uma leitura duplicada, combinando dois sinônimos.281 De qualquer forma, os mortos são retratados como estando em sono; em 1En 91,10 e 92,3 a figura do sono para a morte também é utilizada.282 A afirmação em seguida
de que eles “acordarão” lembra Jó 14,12, onde o mesmo verbo (“acordar”,
275 Jr 30,7 registra: “Ai! Porque este é o grande dia! Não há outro semelhante a ele! É tempo de angústia para Jacó, mas ele será salvo!”.
276 1Mc 9,17 registra: “Foi esta uma grande tribulação para Israel, como nunca houve desde o dia em que não mais aparecera um profeta no meio deles”. A ideia de um tempo presente de angústia incomparável ao que já existiu aparece também no NT em Mc 13,19 e Mt 24,21.
277 Em nossa tradução, preferimos o termo “rolo” para por entendermos que “livro” seria
anacrônico.
278 Sl 69,29: “Sejam riscados do livro da vida, e com os justos não sejam inscritos!”; Ex 32,32: “Agora, pois se perdoasses o seu pecado... Se não, risca-me, peço-te, do livro que escreveste”.
279 No livro do Apocalipse do NT, por ocasião do julgamento final, o “livro da vida” é claramente
distinguido de um “livro de julgamento”, mas ambos são abertos e consultados para execução do juízo (cf. Ap 20,12-15).
280 Jó 21,26 relata: “E, contudo, jazem no mesmo pó, cobrem-se ambos de vermes”; em 17,16 re- gistra: “Descerão comigo ao Sheol, baixaremos juntos ao pó?”.
281 COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 392.
282 1En 91,10: “Os justos levantar-se-ão de seu sono, e a sabedoria levantar-se-á e lhes será dada”; 92,3: “O justo levantar-se-á de seu sono e caminhará na senda da justiça, e todos seus caminhos e viagens serão a bondade eterna e a misericórdia”.
“despertar”) é usado com a metáfora do sono para os que estão mortos.283
Os mortos que “acordam” são divididos em duas categorias: dos justos é dito que “estes para uma vida eterna” (2b), expressão que ocorre somente neste texto em todo o AT, mas é frequente nos apocalípticos judaicos fora da Escritura Hebraica: 1En 37,4; 40,9; 58,3; 62,14; Sl Sal 3,12; 13,11; 2Mc 7,9.36; 4Mc
15,3;284 dos ímpios é dito que “e aqueles para a censura, para repulsa eterna” (2c), o que lembra Is 66,24, onde as carcaças dos transgressores encontram-se fora de Jerusalém.285 No caso de Isaías, os infiéis não retornam à vida para experimenta- rem sua humilhação, e foi sugerido que o mesmo ocorreria em Dn 12,2: a constru-
ção “estes...e aqueles” (..., 2b-2c) não seria uma referência à divisão dos
“muitos” em dois grupos, mas contrastaria os “muitos” com os outros (os não que não “acordarão”).286 Em 1En 22, são descritas cavernas onde as almas dos mortos são guardadas, três para os ímpios e uma para os justos; no v. 13 afirma-se que determinado grupo de ímpios não permanecerá lá mesmo por ocasião do juízo fi- nal, ou seja, não ressuscitarão.287 No caso de Daniel, é mais natural e provável pensar-se em dois grupos que “acordam” e têm seus destinos contrastados, con- forme a opinião da maior parte dos comentaristas. Daniel não elabora um lugar para castigo dos condenados, como um Hades incandescente, mas certamente o
283 Cf. EVEN-SHOSHAN, Abraham (Ed.). NCB, p. 1017. Jó 14,12 relata: “Jaz, porém, o homem e não pode levantar-se, os céus se gastariam antes de ele despertar ou ser acordado de seu sono”. Esse texto revela a falta de esperança por parte do autor numa volta à vida corrente.
284 1En 37,4: “Até agora não havia sido concedido pelo Senhor dos Espíritos a sabedoria que recebi segundo minha inteligência, de acordo com o desejo do Senhor dos Espíritos por quem recebi o meu lote da vida eterna”; 40,9: “Respondeu-me: O primeiro é o santo Miguel, o misericordioso e paciente; o segundo, que está encarregado de tosas as doenças e feridas dos filhos dos homens, é
Rafael; o terceiro, que está encarregado de todos os poderes, é o santo Gabriel; e o quarto, encarre- gado da penitência que conduz à esperança para aqueles que herdarão a vida eterna, é Fanuel”; 58,3: “Os justos estarão na luz do sol e os eleitos na luz da vida eterna. Os dias de sua vida não terão fim, os dias dos santos serão sem-número”; 62,14: “O Senhor dos Espíritos permanecerá so- bre eles e com esse Filho de Homem morarão, comerão, se deitarão e levantarão para todo o sem- pre”; Sl Sal 3,12: “Tal é o lote dos pecadores para sempre, mas os que temem o Senhor ressuscita- rão para a vida eterna; e sua vida, na luz do Senhor, nunca mais terá fim”; 13,11: “Pois a vida do justo é para sempre, mas os pecadores serão levados para a destruição, e ninguém se lembrará de- les”; 2Mc 7,9: “Chegado já ao último alento, disse: “Tu, celerado, nos tiras desta vida presente. Mas o Rei do mundo nos fará ressuscitar para uma vida eterna, a nós que morremos por suas leis!”; 7,36: “Nossos irmãos, agora, depois de terem suportado uma aflição momentânea por uma vida imperecível, morreram pela aliança de Deus. Tu, porém, pelo julgamento de Deus, hás de receber os justos castigos por tua soberba”; 4Mc 15,3: “Ela escolheu o da religião que protege (seus filhos) para a vida eterna de acordo com a promessa de Deus”.
285 Cf. também, no NT, Mt 25,46; Jo 5,29.
286 Cf. ALFRINK, B. L’idée de résurrection d’après Dan. XII, 1-2. Bib 40 (1959), p. 355-371; aqui
p. 362-371; HARTMAN, L. F.; Di LELLA, A. A. The Book of Daniel, p. 308; LACOCQUE, A. Le livre de Daniel, p. 243-244.
287 1En 22,13: “Outra caverna ainda foi reservada para as almas dos homens que não são justos mas pecadores: participarão da sorte dos ímpios, mas, porque foram punidos aqui, não serão puni- dos no dia do julgamento; tampouco ressuscitarão daqui”.
texto remete além de Is 66.
No v. 3 são citados os maskîlîm, ou seja, “aqueles que são prudentes” (3a),
o que remete a Dn 11,33-35 (a mesma palavra é aqui usada),288 provavelmente homens como Matatias de 1Mc 2, líderes dedicados e perseverantes durante a per- seguição de Antíoco.289 A ideia aparece também em 1En 104,2;290 eles receberão a justa retribuição pelo seu trabalho e injustiça sofrida. Segundo Émile Puech, seu papel era levar muitos ao conhecimento e, portanto, à justiça.291
Conforme já assinalado acima, há muito que o redator de Daniel foi identi- ficado como pertencente ao grupo de homens piedosos chamados assideus (em grego) ou hasîdîm (em hebraico). Assim sendo, os maskîlîm de Daniel seriam i- dênticos hasîdîm.292 No entanto, essa teoria não possui o consenso que se garante ter ela recebido. Uma das poucas coisas que se sabe sobre os hasîdîm é que eles eram partidários militantes de Judas Macabeu. Hengel ainda identificou os hasîdîm de várias composições do II século a.C. como sendo os autores de toda uma gama de textos apocalípticos.293 Collins discorda dessa posição, assegurando que as três passagens nos livros de Macabeus “são a única evidência segura de que temos um grupo hassídico do Período dos Macabeus”,294 ou “a única referência direta aos Hasidim no período macabaico”.295 Ele ainda assinala que “é duvidoso que o autor de Daniel tenha considerado os militantes macabeus como uma ajuda, seja ela qual for. Para ele, o objetivo do sábio era fazer os outros compreenderem
288 Dn 11,33-35 registra a função desses “sábios” e seu destino durante a perseguição de Antíoco: “Os homens esclarecidos dentre o povo darão a compreensão a muitos; mas serão prostrados pela espada e pelo fogo, pelo cativeiro e pela pilhagem – durante longos dias. Ao serem oprimidos, pe- queno será o auxílio que de fato receberão; muitos, porém, pretenderão associar-se a eles por intri- gas. Entre esses homens esclarecidos alguns serão prostrados a fim de que entre eles haja os que sejam acrisolados, purificados e alvejados – até o tempo do Fim, porque o tempo marcado ainda está por vir”. Conforme já assinalado neste trabalho, o termo é aplicado ao personagem Daniel e seus três companheiros judeus já em Dn 1,4.
289 DRIVER, S. R. The Book of Daniel: With Introduction and Notes, p. 202.
290 “Sofrestes vergonha anteriormente pelos males e pelas aflições; mas agora ireis brilhar como os luzeiros do céu e sereis vistos. As portas do céu serão abertas para vós”. Cf. também Mt 13,43a: “Então os justos brilharão como o sol no Reino de seu Pai”.
291 Cf. PUECH, Émile. La croyance des esséniens en la vie future: immortalité, résurrection, vie éternelle?: histoire d’une croyance dans le judaïsme ancien, p. 82. v. 1.
292 Cf., por exemplo, HENGEL, Martin. Judaism and Hellenism: Studies in Their Encounter in Palestine during the Early Hellenistic Period, p. 175-180. v. 1; PLÖGER, Otto. Theocracy and
Eschatology, p. 22-25. Para uma defesa mais recente dessa posição, cf. LACOCQUE, A. The So- cio-Spiritual Formative Milieu of the Daniel Apocalypse. In: VAN DER WOUDE, A. S. (Ed.). The Book of Daniel in the Light of New Findings, p. 315-343.
293 HENGEL, Martin. Op. cit. p. 318-323. v. 1.
294 COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel, p. 67-69; aqui p. 68. Sobre essa posição, cf. também DAVIES, Philip. Hasidim in the Maccabean Period. JJS 28.2 (1977), p. 127- 140, especialmente p. 131-132.
295 COLLINS, J. J. Daniel and His Social World. Int 39.2 (1985), p. 131-143; aqui p. 133.
e purificarem a si mesmos. A batalha poderia ser deixada para Miguel e seus an- jos”.296
A origem dos hasîdîm está na questão da aceitação das influências do hele- nismo por parte de alguns líderes judeus na época dos macabeus; dois partidos po- lítico-religiosos se estabeleceram em franca oposição: um pode ser designado co- mo o dos filo-helenos e outro o dos assideus,297 contrários à aproximação com o helenismo. A estes últimos se aliaram o sacerdote Matatias e seus cinco filhos, sendo o principal líder dentre estes Judas, conhecido como Macabeu (daí a deno- minação da insurreição armada de “Guerra” ou “Revolta dos Macabeus”).298
Os assideus ou hasîdîm são citados em 1Mc 2,42; 7,12-13 e 2Mc 14,6, as- sim como provavelmente em 1En 90,9-11. Em 1Mc 7,12 eles são citados ao lado dos “escribas”, podendo ter identificação com estes; assim, acreditou-se que o re- dator de Daniel, com sua ênfase na sabedoria e nos ritos sacerdotais, poderia ter pertencido a este grupo. Verifica-se que os hasîdîm “mantiveram o sentido de so- frimento e de martírio como sinônimos da resistência da fé judaica contra a políti- ca expansionista asmoneia e da sua aproximação ao helenismo. A ‘intolerância’ hassídica, na verdade, foi fator primordial responsável pela sobrevivência e a con- servação das tradições judaicas”.299 Os hasîdîm forneceram um novo sentido reli- gioso para enfrentar movimentos infiéis ao judaísmo no II século a.C., época do livro de Daniel. Eles deram um “forte impulso rumo à maneira de encarar o futuro, deslocado agora para um quadro de esperanças escatológicas dentro das quais es- taria situada a crença messiânica, bem como a doutrina da ressurreição da car- ne”.300
Entretanto, a referência em Dn 11,33-35, assim como em 12,3.10 é feita aos maskîlîm (“os que são prudentes”), cuja incumbência é instruir os rabbîm (“muitos”) para serem sábios; fica difícil associar a conhecida imagem quietista desses maskîlîm com a dos hasîdîm apresentados como “homens valorosos de Is- rael” e guerreiros de Judas Macabeu nos livros dos Macabeus (cf. 1Mc 2,42; 2Mc 14,6-7).-7). Uma proposta para conciliação seria considerar que eles “começaram como quietistas (cf. 1Mc 2,29-38), mas se viram forçados a mudar de posição e
296 Idem. The Apocalyptic Imagination, p. 112.
297 SAULNIER, Christiane. A revolta dos Macabeus, p. 23.
298 Ibidem, p. 29.
299 Cf. SCARDELAI, Donizete. Movimentos messiânicos no tempo de Jesus, p. 45.
300 Ibidem. No entanto, para o caso de Daniel é mais provável que a ressurreição individual não envolva um corpo físico no qual se possa afirmar uma “ressurreição da carne” (cf. tratamento adi- ante).
juntar-se à rebelião contra Antíoco em consequência da grande perseguição pro- movida por este”.301 De fato, em 1Mc 7,13 eles estão inseridos numa comitiva que busca a paz, sem a presença de Judas Macabeu, parecendo querer distanciar-se deste,302 talvez satisfeitos já com as concessões feitas, entre elas a liberdade religi- osa (cf. 1Mc 6,58-60).303 Entretanto, quando desta mudança de hostilidade para paz Antíoco Epífanes já havia morrido.
De qualquer forma, os hasîdîm podem ser associados a pouquíssima obras do apocalipsismo judaico, sendo Daniel uma delas. Assim, não é de todo impossí- vel que o editor do livro de Daniel pertencesse a esse grupo, embora não haja uma demonstração definitiva. No caso específico de Dn 12,3, Montgomery, Collins e outros apontam a possibilidade de se associar os “prudentes” e sua exaltação a “brilhar como as estrelas para eternidade” (3b) à tradição do Servo Sofredor em Is 53,11b e 52,13.304 De fato, em Dn 11,33 eles são responsáveis por dar compreen- são ao povo,305 e em 12,3 são responsáveis por justificar, “tornar justos a muitos” (3b). As duas noções não são incompatíveis. Segundo Lacocque, os maskîlîm fa- zem os rabbîm justos pela sua morte, ou seja, seu martírio seria propiciatório.306 Sob o ponto de vista da tradição do Servo Sofredor, entretanto, isso não seria pos- sível. O mais plausível é considerar que eles fazem o povo justo pela sua instru- ção, o que está mais claro no texto.
Quanto a “brilhar como o brilho [as estrelas] do firmamento” em 3a, o tex- to parecer deixar claro a situação dos maskîlîm após a ressurreição: são associados aos anjos.307 Essa associação aparece em Dn 8,10, onde são atacados por Antíoco, revelando a ousadia deste em termos de malignidade.308 O tema dos santos glorifi- cados que brilham como as estrelas no pós-morte aparece também em 1En 39,7ab;
301 RUSSELL, D. S. Desvelamento divino: uma introdução à apocalíptica judaica, p. 57.
302 1Mc 7,13: “Os assideus eram os primeiros dentre os israelitas a solicitar-lhes a paz”.
303 1Mc 6,58-60: “‘Estendamos, pois, a mão direita a esta gente, fazendo as pazes com eles e com toda a sua nação. Vamos reconhecer-lhes o direito de viverem segundo as suas leis, como antes, já que é por causa dessas leis, que nós quisemos abolir, que eles se exasperaram e fizeram tudo isto’. Sua proposta agradou ao rei e aos comandantes. E ele enviou aos judeus propostas de paz, que fo- ram aceitas”.
304 MONTGOMERY, J. A. ICC, p. 472; COLLINS, J. J. Daniel: A Commentary on the Book of
Daniel, p. 393. O texto de Is 53,11b registra: “Pelo seu conhecimento, o justo, meu Servo, justifi- cará a muitos e levará sobre si as suas transgressões”; 52,13: “Eis que meu Servo prosperará, ele se elevará, será exaltado, será posto nas alturas”.
305 Dn 11,33: “Os homens esclarecidos dentre o povo darão a compreensão a muitos; mas serão prostrados pela espada e pelo fogo, pelo cativeiro e pela pilhagem – durante longos dias”.
306 LACOCQUE, A. Le livre de Daniel, p. 230.
307 COLLINS, J. J. Apocalyptic Eschatology As the Transcendence of Death. CBQ 36.1 (1974), p. 21-43; aqui p. 33-35; LACOCQUE, A. Op. cit. p. 244-245.
308 Dn 8,10: “Ele ergueu-se até contra o exército dos céus, derrubando por terra parte do exército e das estrelas e calcando-as aos pés”. As estrelas seriam os justos sábios, servos de Iahweh.
104,2-4; T. Mos 10,9; 4Esd 7,97; possivelmente Sb 3,7a e, no NT, em Mt 13,43a.309 Hartman e Di Lella assinalam que pode se afirmar que os maskîlîm “tomam parte na glória dos anjos, simbolizados pelas estrelas”.310 A associação com anjos no pós-morte aparece também em 1En 39,5a; Ap Sy Br (2Br) 51,1-5; possivelmente em Sb 5,5 e, no NT, em Mt 22,30 par.311 A associação com estrelas no pós-morte era comum no Período Helênico e Romano.312 Entretanto, no caso de Dn 12,3 não se diz que os “prudentes” se tornarão estrelas, mas que brilharão como elas.
Como se vê, a tradição de ser elevado e brilhar como as estrelas é bastante atestada na tradição judaica tardia. Pode-se concluir, então, que a condição no pós- morte, pelo menos para esses mestres, não implicaria uma ressurreição corporal, muito menos uma ressurreição nos moldes entendidos pelo judaísmo até então, ou seja, uma ressurreição coletiva, da nação, no sentido de libertação e volta a um estado de grandeza nacional.
O enfoque principal em Dn 12,1-3 é a ressurreição individual como reco- nhecimento de justiça e fidelidade desses servos de Iahweh durante sua vida terre- na, compensando o que não ocorreu nesta e fazendo valer a perfeita justiça de I- ahweh. Todas essas acepções relativas ao pós-morte, presentes no livro de Daniel e no Judaísmo do Segundo Templo, fruto das interações culturais com outros po- vos, especialmente os persas e gregos, se farão sentir também no cristianismo pri- mitivo, como se pode depreender a partir dos textos do NT.
309 1En 39,7ab registra: “Vi sua morada debaixo das asas do Senhor dos Espíritos, todos os justos e eleitos brilhavam perante ele como a luz do fogo”. O paralelo de 1En 104,2-4 é bastante evidente: “Sofrestes vergonha anteriormente pelos males e pelas aflições; mas agora ireis brilhar como os luzeiros do céu e sereis vistos. As portas do céu serão aberta para vós. Perseverai no vosso grito por julgamento e este aparecerá. Pois a justiça será realizada pelos responsáveis (os anjos) em toda a vossa angústia, contra todos aqueles que ajudavam os que vos espoliavam. Tende fé e não aban- doneis vossa esperança, porque tereis uma grande alegria como os anjos do céu”. T. Mos (ou As- sunção de Moisés) 10,9 registra: “Deus exaltar-te-á e te fixará no céu das estrelas, no local de suas moradas”; 4Esd 7,97: “A sexta, quando lhes será mostrado como seu rosto resplandecerá como o sol e como, doravante incorruptíveis, serão semelhantes à luz das estrelas”. No caso de Sabedoria, o texto de 3,1-12 trata da comparação da sorte dos justos e dos ímpios; no v. 7a o texto afirma so- bre os justos que “No tempo de sua visita resplandecerão”; se entendida essa condição da mesma forma que em Daniel, não se aplica aqui, também, a noção de uma ressurreição corporal. O texto de Mt 13,43a registra: “Então os justos brilharão como o sol no Reino de seu Pai”.
310 HARTMAN, L. F.; Di LELLA, Alexander A. The Book of Daniel, p. 310.
311 1En 39,5a: Lá meus olhos viram sua morada com os anjos e seu lugar de repouso com os san- tos”; em Ap Sy Br 51,1-5, o v. 5b registra sobre os justos: “Pois os primeiros [os justos] serão transformados e se parecerão como anjos”; Sb 5,5: “Como agora o contam entre os filhos de Deus e partilha a sorte dos santos?” (aqui “filhos de Deus” e “santos” podem ser referências aos anjos); e Mt 22,30: “Com efeito, na ressurreição, nem eles se casam e nem elas se dão em casamento, mas são todos como os anjos no céu”.
312 HENGEL, Martin. Judaism and Hellenism, p. 197. v. 1.