4. Daniel e a ressurreição a partir do Oriente antigo
4.1. A fenomenologia do pós-morte no Oriente antigo, na Grécia arcaica e helenística
Os Egípcios
Os antigos egípcios fornecem a mais antiga evidência da ideia de julga- mento para o ser humano no pós-morte. Isso não se deve ao fato de ser a mais an- tiga sociedade letrada surgida às margens do Nilo; outros tão antigos quanto os egípcios ou mais mantiveram alguma forma de expressividade escrita, mas não desenvolveram a ideia. Ao contrário, os egípcios não só desenvolveram a ideia como também atingiram um grau de elaboração sobre o tema muito maior do que qualquer outro povo do mundo antigo. Mesmo os egípcios do Período Neolítico (antes de 3000 a.C.) já enterravam seus mortos com bens na sepultura, sugerindo assim uma continuação da vida do falecido no pós-morte.1
Sua visão sobre o pós-morte pode ser considerada, até certo ponto, bastante otimista. Prova disso é que todos os esforços funerários buscavam melhores cir- cunstâncias para o prolongamento da vida no além.2 Este é um dos aspectos mais documentados da religião egípcia.3 Apesar de as crenças em outra vida no pós- morte variarem muito ao longo da história egípcia,4 é possível traçar a linha geral do pensamento egípcio acerca do tema. Chegavam a imaginar que, no além, a pes- soa poderia atingir um estado de transcendência e gozar de felicidades até maiores do que as obtidas em vida. De qualquer forma, a eudaimonía era buscada não so- mente para a vida terrena, mas também para a futura (os egípcios não faziam a di- visão dualista comum nas culturas ocidentais entre mundo natural e mundo sobre- natural).
Eles possuíam uma antropologia complexa no que diz respeito ao corpo; no que se refere ao cadáver, postulavam três conceitos distintos: Ka, Ba e Akh.
1 Seguimos aqui a cronologia proposta por CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito antigo, p. 13.
2 Cf. especialmente o Livro dos Mortos, capítulo 110 (cf. a tradução em MILDE, H. Ancient Egyp- tian Beliefs Concerning Death. In: BREMER, J.M.; VAN DEN HOUT, Th.P.J.; PETERS, R.
(Ed.). Hidden Futures: Death and Immortality in Ancient Egypt, Anatolia, the Classical, Biblical and Arabic-Islamic World, p. 15).
3 Além do Livro dos Mortos, o tema é tratado nos Textos das Pirâmides, nos Textos dos Sarcófa- gos, nos Guias do Além nas suas várias versões (cf. COELHO, Ilda Sobral. O imaginário do além. In: RAMOS, J.A.; ARAÚJO, L.M.; SANTOS, A.R. (Org.). Percursos do Oriente Antigo: estudos de homenagem ao Professor Doutor José Nunes Carreira na sua jubilação acadêmica, p. 121-137; aqui p. 126).
4 Cf. SPENCER, A. J. The Egyptian Afterlife. In: Death in Ancient Egypt, p. 139-164.
Dessas três entidades, Ka era uma espécie de duplicata da pessoa viva, mantendo estreito relacionamento com o cadáver, sendo às vezes comparável ao conceito ocidental de “espírito”. Assim, a conservação do cadáver era de suma importância, pois com a sua decomposição a entidade Ka também se decomporia com ele; ao contrário, enquanto o corpo se conservasse a entidade também se conservaria. Daí a importância dos ritos e da inumação: “O espírito se conservará enquanto existir seu suporte físico. Essa preocupação com a subsistência faz com que a inumação segundo os ritos seja preferível à existência terrestre, mesmo confortável”.5
Como uma garantia a mais, um desenho ou estátua representando o morto era colocado na sepultura para substituição do corpo no caso de sua destruição (como se o Ka identificasse a pessoa que estivera naquela sepultura). Dessa forma, o corpo poderia até ser perdido, pois haveria como “substituí-lo” por algum obje- to. Observa-se então que a preservação do nome da pessoa, ou seja, de sua identi- ficação era mais importante que a preservação do corpo; trata-se de uma imortali- dade pela memória. Além disso, para se manter o Ka vivo, eram oferecidos ali- mentos, roupas e outros utensílios que possibilitassem a sua existência. O Ka po- deria residir no túmulo ou no além.
Além dessa entidade, o Ba poderia visitar o túmulo. Essa era a entidade que enfrentava a perigosa viagem do morto pelo Mundo Inferior até o julgamento no além. A princípio, somente o Faraó era considerado como possuidor de Ba, mas a partir do Primeiro Período Intermediário (2134 a.C.) outras pessoas também passaram a ser consideradas possuidoras dessa entidade. Se considerado inocente após o julgamento, o Ba se tornava então, de fato, uma entidade transcendente, um Akh,6 o qual residia na casa do deus Osíris, a Duat. Esse julgamento se baseava em três condições: o comportamento do indivíduo durante sua vida terrestre, a aquisi- ção em vida de bens suficientes para serem usados na Duat (daí os bens serem en- terrados com o indivíduo), e a execução dos ritos funerais de forma correta pelo sacerdote (a purificação, mumificação e inumação, ou seja, o enterro). Cumprindo esses requisitos, poderia ser garantido ao morto ter contribuído para a manutenção de ma’at (princípio de ordem sobre o qual se sustentava todo o sistema egípcio, semelhante ao asha zoroastriano; sua principal manifestação era a justiça, sendo o
5 Cf. ELIADE, M.; COULIANO, I. P. Dicionário das religiões, p. 143. Outra ideia, variante, é que com a perda do corpo o morto ficaria andando errante, sem rumo ou local de estabelecimento.
6 Essa palavra tinha a conotação de “luz, eternidade e esplendor, ilustrando novamente como mui- tos aspectos da religião egípcia foram afetados pelo imaginário solar” (SEGAL, Alan F. Life After Death: A History of the Afterlife in Western Religion, p. 45).
Faraó considerado sua personificação; posteriormente, surgiu uma deusa chamada Ma’at, que acabou sendo considerada anterior à criação do mundo).7 Como, a princípio, somente o Faraó era possuidor de Ba, a imortalidade era prerrogativa apenas dele; mais tarde, passa a ser também de seus assessores diretos; em segui- da, houve uma espécie de “democratização da imortalidade”, alcançando a nobre- za em geral e também pessoas de outros níveis sociais.8
Os Textos das Pirâmides apontam para a existência do que pode ter sido uma tradição relativa a um julgamento no pós-morte que resultou dos cultos mortuários em honra de Osíris. Esse julgamento está intimamente associado com Osíris, o governante dos mortos. Assim, com o passar do tempo, cada pessoa que tinha sido enterrada de acordo com os ritos funerários de Osíris estaria, presumivelmente, justificada quando comparecesse perante o tribunal do deus no pósmorte. Essa ideia se originou da lenda de Osíris, pois, depois de sua ressurreição, a causa de Osíris contra seu assassino (Set) foi julgada perante o tribunal dos deuses em Heliópolis, tendo como resultado a justificação de Osíris e a condenação de Set. Essas associações são importantes, pois sugerem que a lenda de Osíris já es- tava exercendo uma influência formativa sobre a ideia de um julgamento no pós- morte. O ritual mortuário de Osíris foi modelado tomando por base a história do deus. Todo o processo de embalsamento era um ritual a partir daquilo que se acre- ditava ter sido feito originalmente para preservar o corpo de Osíris da decomposição física, tornando assim possível para ele usufruir da outra vida.
Nesses ritos mortuários relativos ao rei falecido, este era tão intimamente assimilado a Osíris que o próprio nome “Osíris” era acrescentado ao nome do rei. Dessa forma, pensava-se que já que o rei estava com Osíris em sua morte estaria também em sua volta para a outra vida, e assim também compartilharia o mesmo pós-morte do deus. Em outras palavras, é provável que o ritual mortuário nos moldes de Osíris, através da lenda que constituiu a sua lógica, tornou possível um modelo padrão para a outrora vaga crença de que, após a morte, o homem poderia
7 Essa palavra tinha um campo semântico amplo, mas bem definido e relacionado. Sua ideia essen- cial é “verdade”, “ordem”, “justiça”, “direito”: “Nos hieróglifos seu sinal determinante era um ob- jeto semelhante a uma talhadeira; a identificação do sinal é incerta, mas parece expressar a ideia de retidão” (BRANDON, C.S.F. The Judgment of the Dead: An Historical and Comparative Study of the Idea of a Post-Mortem Judgement in the Major Religions, p. 11). Cf. as atribuições de ma’at em COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come: The Ancient Roots of Apocalyptic Faith, p. 9-16.
8 FINNESTAD, R. B. The Pharaoh and the “Democratization” of the Post-mortem Life. In: EN- GLUND, Gertie (Ed.). The Religion of the Ancient Egyptians: Cognitive Structures and Popular Expressions. Proceedings of Symposia in Uppsala and Bergen, 1987 and 1988, p. 89-93.
ser acusado de más ações realizadas quando em vida. Osíris passa a representar o drama da própria existência humana, destinada a morrer, mas podendo triunfar sobre a morte em alguma outra espécie de vida.
Por outro lado, os sacerdotes de Osíris, responsáveis pelas técnicas de em- balsamento, acabavam tendo, na esfera sagrada, prerrogativas maiores que o Fara- ó. Com o aumento da clientela de pessoas que poderiam se tornar imortais, ou se- ja, que tinham recursos suficientes para pagar aos sacerdotes pelos rituais de imor- talização (aquisição do estado de Akh), faz-se uso da ideia do julgamento no Mun- do Inferior; sua função parece clara: evitar a banalização pela aquisição do estado de imortalidade entre as pessoas não relacionadas à realeza, pois apenas o Faraó era, de fato, filho da divindade. Assim, não bastava mais apenas ter os recursos para a aquisição da imortalidade, mas também passar pela aprovação de um tribu- nal presidido por Osíris, considerado o deus responsável pela vida no Mundo Infe- rior.
O fato é que, ao longo da história egípcia, “a sobrevivência depois da morte foi objeto de visões divergentes que se foram superpondo sem eliminação mútua”.9 O morto era entendido ora renascendo na própria tumba (daí necessitando de oferendas de comida e bebida), ora navegando na barca solar (a qual o conduzia pelo mundo dos mortos até o tribunal de Osíris),10 ora no tribunal sendo julga- do pelo deus. Entretanto, no que tange à ressurreição, se não fosse condenado, o morto poderia “viver para sempre num ‘outro mundo’ governado por aquele deus, o qual de fato recordava muito o próprio Egito”.11 No caso de condenação, o mor- to simplesmente deixava de existir, estado descrito pela palavra mut, um cadáver.12
Portanto, não há registro, na história religiosa do Egito, da sistematização da ideia de uma ressurreição corporal na qual o morto retorne ao mesmo mundo em que vivera, ou a esferas diferentes com destinos eternos diferentes (um para os
9 CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito antigo, p. 91.
10 O morto poderia empreender uma viagem até o tribunal de Osíris, acompanhado pelo deus Anú- bis, representado pelo chacal. Os deuses egípcios podiam ser representados zoomorficamente: ha-
via um “elo” entre a característica do animal e o deus representado por ele (no caso de Anúbis, ele “acompanha” o morto na viagem, assim como os canídeos são reconhecidos universalmente como “companheiros” dos homens). A representação de Anúbis no caixão (imagens do chacal) revelaria a presença do deus no momento do julgamento do morto diante de Osíris, levando-o a refletir sobre suas ações em vida (havia uma balança com uma pena (reconhecida como Ma’at) em um dos lados e o coração do morto no outro).
11 Ibidem.
12 SEGAL, Alan F. Loc. cit.
bons e outro para os maus), após ser submetido a um julgamento final coletivo.
Os Sumérios, Acádios, Assírios e Babilônios
Já os sumérios e semitas (acádios, assírios e babilônios), a exemplo dos antigos egípcios, também possuíam suas concepções acerca da vida além túmulo, expressas pelo gênero literário que chamaríamos modernamente de mito.13
O ser humano fora moldado a partir do barro por Marduk e recebeu um fôlego de vida, um napištu (espécie de “sopro da vida”); entretanto, o homem po- deria conter também outro componente, o zaqiqu, associado ao sonho, pois pode- ria voar quando o corpo estava adormecido. No mito acadiano de Atrahasis14 (a forma mais antiga, paleobabilônica, é Atramhasis, “o excelente em sabedoria”),15 nome de seu protagonista, chamado também de Utnapishtim, herói do dilúvio, a- parece um terceiro elemento na composição do ser humano, o eṭmmu, espécie de “espírito” na Mesopotâmia.16 Não se sabe ao certo o que acontecia aos dois pri- meiros elementos, mas é certo que o eṭmmu, por ocasião da morte, passava ao Mundo Inferior, ao passo que o corpo permanecia na Terra.
Em várias narrativas aparece a temática: a história de Adapa mostra como ele, sacerdote-rei de Eridu (cidade mais antiga da Babilônia), o sacerdote preferido pelo deus Enki (ou Ea), recusou a chance de imortalidade quando esta lhe foi oferecida por An (deus das alturas).17
O poema épico do Rei Etana, de Kish, relata que esse, protagonista, sobe
13 Segundo W. Piazza, existem oito definições “mais representativas” para mito, cada qual enfati- zando um ponto de vista abordado por determinada ciência (cf. PIAZZA, W. Introdução à fenome- nologia religiosa, p. 205-233). Para ele a definição de Mircea Eliade oferece a melhor descrição para o que seja um mito: “O mito é uma ‘história exemplar’ que tem por fim estabelecer normas para o procedimento humano” (ELIADE, M. Apud PIAZZA, W. Op. cit. p. 206.). O mito então seria uma história exemplar que emprega símbolos; seu objetivo não seria ensinar como são as coisas, pois estas já são do senso comum, e nem criar uma ideologia, mas apenas orientar a condu- ta humana. Essa orientação teria por finalidade “o homem no seu procedimento com respeito aos deuses, aos outros homens, às coisas que o cercam. Por isso, embora o mito se apresente como uma ‘história’ colocada nos primórdios da criação, ele não tem em vista o passado, mas o presente, dando a este um sentido primordial para encarecer o seu significado para a vida humana” (PIAZ- ZA, W. Op. cit. p. 208). Assim sendo, “o mito não passa de um gênero literário, no qual o símbolo é empregado com sentido transcendente” (Ibidem, p. 216). É com essa perspectiva que o termo é entendido neste trabalho.
14 Uma tradução antiga e em grande parte ultrapassada, mas clássica, é a de LAMBERT, W. G.; MILLARD, A. R. Atra-Hasis: The Babylonian Story of the Flood (1969). Uma tradução mais re-
cente, revisada, é a de DALLEY, Stephanie. Myths from Mesopotamia: Creation, the Flood, Gil- gamesh, and Others (2000).
15 Cf. CARREIRA, José Nunes. Literaturas da Mesopotâmia, p. 99.
16 De acordo com Segal, “eṭmmu é a palavra padrão para espectro na Mesopotâmia. Neste caso, no entanto, o texto não indica que temos um espírito divino ou uma alma imortal. Em vez disso, ele parece quase implicar o contrário; o homem que passa a possuir eṭmmu deve morrer. Quando o homem morre, o eṭmmu ocupa residência subterrânea, enquanto o esemtu ou o pagru (duas pala- vras significando “cadáver”) repousa na terra” (SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 73).
17 Cf. o relato em IZRE’EL, Shlomo. Adapa and the South Wind: Language Has the Power of Life and Death, p. 9-46.
ao mundo das alturas à procura de uma planta que curaria sua esterilidade (a pro- genitura era, na Mesopotâmia, uma forma de conquistar a imortalidade).18 Essa planta pertencia à deusa Inanna (Ishtar em Acádio).19 O personagem passa por muitas vicissitudes até alcançar o seu objetivo. Quanto a esta deusa, o relato de sua descida ao mundo dos mortos revela que nem mesmo alguns deuses poderiam escapar da morte, embora pudessem ser trazidos de volta à vida.20
Um dos relatos mais famosos, o Épico de Gilgamesh, é considerado a obra- prima da literatura suméria. Seu material mais antigo é datado em cerca de 3000 a.C.,21 e sua forma completa é, provavelmente, da primeira metade do período ba- bilônico, com o acréscimo da narrativa do dilúvio de Atrahasis.22 O poema narra as aventuras do Rei Gilgamesh, soberano da cidade de Uruk. Ao perder seu me- lhor amigo (chamado Enkidu), o qual adoece e morre em doze dias, Gilgamesh fica profundamente abatido e começa a refletir sobre a futilidade da fama de herói diante dos homens, já que nada se pode fazer ante à enfermidade e à morte. Assim, resolve buscar a imortalidade indo ao encontro de Utnapishtim (Atrahasis, o Lon- gevo), único que havia conseguido dos deuses a imortalidade, após ter sobrevivido ao dilúvio.
Após uma série de percalços, o herói encontra o Longevo e este revela a ele como conseguiu a imortalidade e também o segredo do rejuvenescimento: uma planta espinhosa sob as águas. Gilgamesh alcança a planta e, desconfiado, decide primeiramente testá-la com os idosos de Uruk. Entretanto, durante a viagem, uma serpente saída das águas furta-lhe a planta e a devora. Logo em seguida, a serpente muda de pele e submerge. O herói retorna então triste, mais velho e sem a sua planta. Como se vê, a narrativa revela a busca ansiosa e voraz pela imortalidade, busca esta que termina sem sucesso. A certa altura, o mito mostra ainda que, ao
18 Cf. SEGAL, Alan F. Op. cit., p. 76. Cf. a história de Etana em PRITCHARD, J. B. (Ed.). ANET, p. 52-57.
19 Considera-se que a deusa que os sumérios conheciam por Inana era a mesma Ishtar acádia (cf. COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 41). Sabe-se que ambas compartilhavam a dupla natureza de serem deusas guerreiras e do amor, ou seja, da fecundidade, no panteão mesopo-
tâmico: “O caráter guerreiro de Ishtar é particularmente predominante na Assíria a partir do déci- mo-primeiro século a.C. quando ela é associada com o próprio deus nacional, Ashur (...) Seu cará- ter guerreiro e de fertilidade é claramente indicado pela sua associação ao deus da fertilidade, Min, e ao deus feroz Reseph, o qual matou milhares de homens através de guerra e epidemia” (GRAY, John. Near Eastern Mythology: Mesopotamia, Syria, Palestine, p. 23).
20 Cf. o relato em PRITCHARD, J. B. (Ed.). Op. cit. p. 114-118.
21 Cf. FOSTER, B. R. The Epic of Gilgamesh: A New Translation, Analogues, Criticism, p. xiii.
22 Cf. ELIADE, Mircea; COULIANO, Ioan P. Dicionário das religiões, p. 234. Cf. as diversas versões do poema em ABUSCH, Tzvi. The Development and Meaning of the Epic of Gilgamesh: An Interpretative Essay. JAOS 121.4 (2001), p. 614-622.
contrário dos egípcios, os mesopotâmios não possuíam uma perspectiva de bem- aventuranças após a morte; a humanidade fora criada para trabalhar no lugar dos deuses e não deveriam esperar pela imortalidade.23
O local para onde os mortos se dirigem é chamado de “Casa da Escuri- dão”.24 Esse lugar é uma espécie de cidade dos mortos, a qual, para ser alcançada pelos eṭmmu, estes precisariam empreender uma viagem para aquele mundo, o qual tinha no seu comando um rei, Nergal, e uma rainha, Ereshkigal.25 Semelhan- temente aos egípcios, nesse lugar havia uma espécie de “casa”, chamada de “Casa do Pó”. Também semelhantemente aos egípcios, o bem-estar dos mortos depende- ria da generosidade dos vivos, os quais deveriam oferecer mensalmente água e pão. Havia um “culto dos mortos”, permitindo uma interação entre mortos e vivos na qual aqueles trariam benefícios à sociedade dos vivos, como a chuva, proteção contra feitiços mágicos e aumento do rebanho.26 Por outro lado, sendo “mal trata- dos”, os mortos poderiam se tornar fantasmas vingativos e malfeitores.
De qualquer forma, segundo o Épico de Gilgamesh, nenhuma recompensa aguarda aquele que partiu, não havendo, inclusive, a possibilidade de ressurrei- ção.27 Mas os mortos continuavam a existir; como no caso dos egípcios, a aniqui- lação completa era inconcebível também para os mesopotâmios.28
23 Na Tabuleta X, a Epopeia de Gilgamesh registra: “Gilgamesh, para quê você anda errante? A vida eterna que você está procurando não a encontrará. Quando os deuses criaram os homens, esta- beleceram a morte para a humanidade e retiveram para si mesmos a vida eterna. Quanto a você, Gilgamesh, deixe que o seu estômago seja saciado, seja sempre feliz, dia e noite. Faça de cada dia um deleite, toque música e dance dia e noite. Suas roupas devem ser imaculadas, sua cabeça deve ser lavada, você deve banhar-se em água, contemple orgulhosamente a criança que está segurando a sua mão, deixe sua companheira regozijar-se em seus lombos. Essa é, então, a ocupação da hu- manidade” (cf. FOSTER, B. R. Op. cit. p. 75; PRITCHARD, J. B. (Ed.). Op. cit. p. 90). É impossí- vel não remeter à filosofia de vida expressa no livro de Ecl 9,7-10, da literatura sapiencial israelita: “Vai, come teu pão com alegria e bebe o teu vinho com satisfação, porque Deus já aceitou tuas obras. Que tuas vestes sejam brancas em todo tempo e nunca falte perfume na tua cabeça. Desfruta a vida com a mulher amada em todos os dias da vida de vaidade que Deus te concede debaixo do sol, todos os teus dias de vaidade, porque esta é a tua porção na vida e no trabalho com que te afa- digas debaixo do sol. Tudo o que vem à mão para fazer, faze-o conforme a tua capacidade, pois, no Sheol para onde vais, não existe obra, nem reflexão, nem conhecimento e nem sabedoria”.
24 SEGAL, A. F. Life After Death, p. 85.
25 Cf. BOTTÉRO, Jean. Le “Pays-sans-retour”. In: KAPPLER, Claude et al. Apocalypses et voya- ges dans l’au-delà, p. 55-82.
26 SEGAL, A. F. Op. cit. p. 98.
27 Antes de morrer, Enkidu tem um sonho, o qual narra a Gilgamesh, sobre o lugar para onde será levado no pós-morte. O sonho revela-lhe que, logo após a morte, determinada criatura serve de guia para ele: “Segurando-me firmemente, ele me levou até a casa da escuridão, a morada do in- ferno, para a casa de onde ninguém que entra sai, na estrada que não tem caminho de volta, para a casa cujos habitantes são privados de luz, onde o pó é o seu alimento e a argila o seu sustento” (cf. FOSTER, B. R. Op. cit. p. 58; também PRITCHARD, J. B. (Ed.). Op. cit. p. 87).
28 Cf. COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 56.
Os Cananeus
Dentre as diversas narrativas mitológicas, uma das mais difundidas é aque- la em que Mot desafia Baal para um combate (o que, em verdade, ocorria frequen- temente); no combate, Baal aceita um convite de Mot e desce ao Mundo Inferior, morrendo lá. Anat sepulta seu esposo e vai ao encontro de Mot e o mata, tritura-o e espalha os seus pedaços pelos campos para servir de alimento aos pássaros. Pos- teriormente, Baal ressuscita; em algumas versões, sua esposa encontra seu corpo e o ressuscita; em outras, Baal ressuscita sozinho, reencontra Mot, vence sua luta e retorna ao seu reino. A ressurreição de Baal está, de alguma forma, associada às estações férteis para a agricultura, pois durante o tempo em que permanece sem vida, há um período de sete anos de seca e carestia; após Baal ser trazido de volta à vida, senta no trono de Mot e assegura a reanimação vegetal durante outros sete anos. Assim, a luta entre Baal e Mot simboliza o combate entre a vida e a morte; o que é colocado em risco é a própria sobrevivência do mundo dos vivos. A morte e ressurreição de Baal remete à morte e ressurreição da natureza; as forças desta se- riam reativadas por meio de rituais praticados pelos adoradores.32
Essa ressurreição do deus não implica que os humanos possam fazer a mesma coisa; ao contrário, quando morriam, os cananeus pensavam que seu ele-
29 Interessante observar que El é um nome pelo qual YHWH também é designado no AT, como Elôhîm, El Elyôn (“o Deus altíssimo”), El Shaddai (“o Deus forte”) e El Shalom (“o Deus da paz”), dentre outros. Cogita-se que antes de receber adoração por parte de Israel Iahweh era o deus cana- neu da metalurgia, equivalente de Ptah no Egito (sobre isso cf. AMZALLAG, Nissim. Yahweh, the Canaanite God of Metallurgy? JSOT 33.4 (2009), p. 387-404).
30 Cf. COHN, N. Op. cit. p. 126.
31 Para um panorama da religião cananeia e bibliografia, cf. ELIADE, M.; COULIANO, I. P. Di- cionário das religiões, p. 87-90.
32 Segundo Ramos, “o Baal ugarítico é uma divindade que é sempre afirmada como hierarquica- mente secundária e dependente: o Senhor e rei de tudo é dependente desse tudo e anda comprome- tido com os exercícios de hierarquização com que, em esforço de compreensão, se tenta esquema- tizar e formular a realidade” (RAMOS, José A. Martins. Baal, o que é um Deus? Cadmo 10 (2000), p. 197-223; aqui p. 207).
mento vital, o npš (conceito semelhante ao nefesh hebraico),33 deixava o corpo e continuava a viver no reino de Mot, de forma precária, à semelhança do pensa- mento mesopotâmico. Também à semelhança dos mesopotâmios, não há evidên- cias de recompensas ou julgamento no pós-morte; o máximo que poderia aconte- cer era que, através de algumas celebrações ritualísticas por parte dos vivos, a si- tuação dos mortos fosse de alguma forma melhorada no Mundo Inferior, mas não se sabe como se dava essa melhora.
COMENTÁRIO: Já falamos no seguinte artigo http://gnosedesi.blogspot.com/2016/01/deus-no-antigo-testamento-fusao-de.html sobre a descoberta da Mitologia Cananeia e de que os nomes de Deus no Antigo Testamento em sua maior parte, principalmente nos textos mais antigos ou seja, na Torah, são na verdade nomes de vários dos antigos Deuses Cananeus-Fenícios .Os Fenícios eram povos Cananeus (KINA'ANI ou Kenaani) que habitavam a parte Norte da antiga Canaã e se organizavam em Cidades-Estado que formavam alianças para combater inimigos em comum, incluindo outros cananeus, ou brigavam entre si. Os Fenícios eram assim os Cananeus do Norte e do litoral norte de Canaã e sua mitologia era a mesma dos cananeus do Sul. O territorio fenício compreendia o norte do atual Israel e o litoral dos atuais Líbano e Síria, fora as outras cidades que colonizaram ao redor. Entre suas principais Cidades-Estado estavam Biblos, Sídon, Tiro e Beirut.
O fato de a imortalidade não estar acessível aos homens transparece na história de Aqhat;34 este, quando se recusou a entregar o arco e as flechas que rece- beu do pai para Anat em troca da imortalidade, parecia perceber que a deusa esta- va oferecendo algo que não poderia realmente conceder; sua resposta à deusa foi clara: “Não minta para mim (...) eu vou morrer como todos morrem, eu também certamente deverei morrer”.35 Em verdade, o máximo que a deusa poderia ofere- cer-lhe era a exaltação em algum festival ritualístico por parte dos vivos,36 a e- xemplo do que acontecia a Baal. Dessa forma, o máximo que poderia acontecer a Aqhat nesses rituais era seu espírito ser invocado no Mundo dos Mortos e aparecer no banquete, mas não o próprio Aqhat ressuscitado. De acordo com Johnston, o
33 Cf. SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 113.
34 A narrativa conta a história de Aqhat, o qual seria filho de Dan’el e sua esposa Danaty. Estes haviam implorado a El e a Baal por um filho. Quando Dan’el e sua esposa foram visitados pelos Kotharat (divindades responsáveis pela concepção e nascimento), ofereceram-lhes banquetes que duraram seis dias; em troca, essas divindades garantiram descendência a Dan’el e sua esposa, o que veio a se concretizar no nascimento de Aqhat. Quando este era já crescido, Dan’el recebeu do deus Kothar wa-Khasis um arco e flechas como gratidão pelo banquete que lhe ofereceu. Dan’el transferiu, então, o presente para seu filho, juntamente com uma benção. Mas Anat, a deusa da guerra, queria a arma que Aqhat recebera do pai e tentou negociá-la, primeiramente oferecendo riquezas e, posteriormente, a imortalidade. Aqhat recusou e, por isso, a deusa recebeu permissão de El para puni-lo; entretanto, a punição foi exagerada, pois Yatpan (o mensageiro divino que deveria apenas ferir Aqhat), acabou se excedendo e causando a morte de Aqhat (cf. o relato em PRITCHARD, J.
B. (Ed.). ANET, p. 149-155, e o comentário em SEGAL, A. F. Life After Death, p. 111-113).
35 O diálogo entre a deusa Anat e Aqhat foi o seguinte: “Então disse a Virgem Anat: ‘Peça por vi- da, ó Herói Aqhat. Peça por vida e eu a darei a ti, peça pela imortalidade, e eu a concederei a ti. Eu te farei somar os anos com Baal, com os filhos de El tu deverás somar os meses. E Baal, quando ele dá a vida, dá um banquete, dá uma festa para a vida doada e se oferece a ele drinque, cantando e salmodiando por causa dele, fazendo uma serenata suave para ele: assim eu dou vida ao Herói Aqhat’. Mas Aqhat, o Herói, respondeu-lhe: ‘Não minta para mim, ó Virgem; pois para um Herói a
sua mentira é repugnante. Vida mais extensa — como pode um mortal consegui-la? Como pode um mortal alcançar uma vida permanente? Verniz será derramado [sobre] minha cabeça, gesso sobre minha cuca; e eu vou morrer como todos morrem, eu também certamente deverei morrer’” (cf. PRITCHARD, J. B. Op. cit. p. 151). Observa-se que a “vida” ou “imortalidade que a deusa oferece a Aqhat é, de fato, a lembrança nos festivais e banquetes oferecidos pelos vivos, com cân- ticos e salmos, sendo Aqhat o cabeça do banquete (a exemplo de Baal), podendo ter, assim, sua memória lembrada no seio da família e da sociedade. Trata-se, portando, de uma imortalidade ape- nas no âmbito da lembrança, a imortalidade pela memória presente também entre os egípcios, con- forme assinalado acima.
36 SEGAL, Alan F. Loc. cit.
“retorno à vida” de Baal tem referência às celebrações anuais em honra do deus (possivelmente os rituais de Ano Novo).37 Assim sendo, o máximo que um canani- ta poderia alcançar seria essa lembrança nos festivais ritualísticos costumeiros.
A melhora na condição dos mortos propiciada pelas oferendas em festivais conforme citado acima pode ser verificada em alguns textos ugaríticos que mos- tram Baal (às vezes Dan’el) convidando alguns “mortos melhorados” ou especiais (os que eram lembrados no mais importante ritual de memória cananeu, o marziḥ) para o seu palácio, um lugar santo.38 Nesses casos específicos, pode se pensar no embrião de algum tipo de recompensa, mas não em forma de ressurreição.
Com a chegada dos “povos do mar” à região, a economia e as cidades cananeias entraram em declínio. Entretanto, “a visão de mundo cananeia sobreviveu e influenciou profundamente um povo que só então estava adquirindo uma identi- dade: os israelitas”.39
Os Gregos
No que tange à questão do pós-morte entre os gregos, sua tradição remonta a tempo muito anterior ao Período Helenístico, período de fusão com a cultura persa. Já Homero (século X ou IX a.C.) e, principalmente, Hesíodo (século VIII a.C.) tratam do tema em suas obras.
O historiador Heródoto, em cerca de 450 a.C., já afirmava que foram Ho- mero e Hesíodo que instituíram os deuses para os gregos, ou seja, os fundadores da teologia grega.40 Entretanto, com relação à datação, esse cálculo colocaria os dois poetas no IX século a.C., época muito retroativa para Hesíodo, cuja métrica e linguajar revelam ser ele posterior a Homero, sendo a este, inclusive, tributário.41
Segundo a obra de Homero, a morte é companheira constante dos heróis na
Ilíada; esses mortais parecem não temê-la. Enfrentá-la com galhardia, exercendo
37 JOHNSTON, Philip S. Shades of Sheol: Death and Afterlife in the Old Testament, p. 140. Ainda segundo este autor, as evidências linguísticas no relato apresentadas por alguns autores para defen- der a ressurreição literal do deus não se sustentam (Ibidem).
38 Cf. SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 115-118.
39 COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 121.
40 Assim relata o historiógrafo grego no Livro II, 53: “Durante muito tempo ignorou-se a origem de cada deus, sua forma e natureza, e se todos eles sempre existiram. Homero e Hesíodo, que viveram
quatrocentos anos antes de mim, foram os primeiros a descrever em versos a teogonia, a aludir aos sobrenomes dos deuses, ao seu culto e funções e a traçar-lhes o retrato. Os outros poetas, que se diz tê-los precedido, não existiram, em minha opinião, senão depois deles. Sobre o que acabo de rela- tar, uma parte colhi com as sacerdotisas de Dodona; mas no que concerne a Hesíodo e Homero, os dois grandes poetas a que acima faço referência, nada mais faço do que emitir minha própria opini- ão”.
41 Entre os eruditos modernos, o consenso é que Hesíodo teria vivido no VIII ou VII século a.C. Sobre Hesíodo no VIII século, cf. WEST, M. L. Hesiod, Works and Days, p. 30; sobre a possibili- dade de Hesíodo no VII século, cf. MAZON, Paul. Hésiode: théogonie, les travaux et les jours, le bouclier, p. XIV.
sua vontade individual, garantia-lhes a vitória e, consequentemente o reconheci- mento do grupo social, caso sobrevivessem. No entanto, se perecessem bravamen- te, os heróis homéricos adentravam os Campos Elíseos e eram lembrados para sempre (é o tema da imortalidade pela lembrança, nos mesmos moldes dos cana- neus, conforme exemplificado na história de Aqhat mencionada acima, presente também entre os egípcios). Observa-se que nem mesmo os grandes heróis podem evitar a mortalidade.
Uma vez estando no Mundo dos Mortos, não há a possibilidade de volta. Quando Príamo vai ao acampamento dos aqueus solicitar a Aquiles o corpo de seu filho Heitor, que Aquiles, após matá-lo, para lá havia arrastado, o herói aqueu, re- lutante, se recusa a entregá-lo. Príamo queria dar um funeral digno ao filho e, após muita insistência, consegue levá-lo. Em determinado momento, Aquiles chega a dizer ao Rei de Troia: “Nada consegues chorando teu filho com tantos encômios; não ressuscita, e, além disso, outro mal poderias causar-te”.42
Já na Odisseia, os heróis são encontrados no Hades, o Mundo dos Mortos, quando Ulisses, ainda vivo, necessita contemplar os domínios daquele lugar para buscar na sabedoria dos mortos a garantia de um roteiro seguro para o seu regresso a Ítaca. A chegada ao Hades se dava através de uma viagem marítima, tema co- mum também na poesia lírica de Píndaro (V século a.C.).43 Entretanto, ao contrá- rio da Epopeia de Gilgamesh, a Odisseia não tem como tema central a imortalida- de; esta “é usada somente como uma maneira para sublinhar os verdadeiros temas: heroísmo e fama”.44
No Canto X, o poeta narra que, durante sua viagem de volta à terra natal, Ulisses e seus companheiros aportam na Ilha de Ajaia, onde vivia a deusa Circe. Após uma série de desventuras, o herói consegue escapar das artimanhas da deusa, e esta ainda lhe orienta sobre o que deveria fazer para chegar à sua pátria são e salvo. Ulisses deveria ir ao Hades consultar o mago tebano Tirésias, o qual, em
42 HOMERO. Ilíada XXIV, 550-551. (cf. a tradução em versos de Carlos A. Nunes, p. 374).
43 O tema da viagem marítima para abordar as margens do além é tradicional na literatura grega.
Essa tradição procede da Odisseia homérica. Entretanto, o tema não é restrito à tradição literária grega: “Esse tipo de imagens é, igualmente, habitual em outras literaturas, como a dos Egípcios e a dos Sumérios, por exemplo, sem falar nas civilizações pré-helênicas do Egeu, nas quais o culto da barca das almas parece ter sido uma constante nas representações artísticas mais antigas. Não seri- a, pois, mera coincidência, estabelecer um paralelo entre o Livro dos Mortos dos Egípcios – em que, a par das múltiplas e apavorantes peripécias por que têm de passar as almas no além, também é descrito um país de eterna felicidade – e a Ilha dos Bem-Aventurados Hiperbóreos, povo mítico, eternamente jovem e feliz, a que o poeta [Píndaro] se refere, em mais de uma oportunidade” (cf. HORTA, Guida N. B. Parreiras. A luz da Hélade: ensaios literários, p. 106; grifo da autora).
44 SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 213.
vida, era cego. Essa viagem ao Hades é narrada no Canto XI.45
No Hades, Ulisses encontra vários mortos conhecidos, inclusive Aquiles, o herói da Ilíada (o qual, na conversa com Ulisses, reclama de sua inatividade no Hades), Elpenor, o primeiro que vem ao encontro de Ulisses, recém chegado ao Hades (o mais jovem companheiro do herói que, antes de sair da ilha da deusa, caiu do telhado após acordar assustado),46 sua própria mãe e o mago Tirésias. Inte- ressante observar que sua mãe, mesmo no Hades, dá a Ulisses notícias do cotidia- no atual de sua casa em Ítaca. Ulisses tenta por três vezes abraçá-la, mas não con- segue: os mortos são como espectros, fantasmas, infelizes pela ausência de seus corpos. No caso de Hércules, um semideus, o narrador afirma que seu espectro está no Hades, mas “ele próprio se encontra com os deuses imortais”. Ao encon- trar Tirésias, este faz previsões sobre a viagem de Ulisses e inclusive sobre como ele encontrará sua casa e família; observa-se, assim, que mesmo no Hades ele po- de, esporadicamente, exercer o ofício profético que exercia quando em vida.47
Juntamente com a Ilíada e a Odisseia, de Homero, a Teogonia e Os Traba- lhos e os dias (conhecido em grego como Erga, “Obras”, ou “Trabalhos”) de He- síodo são as obras mais importantes do Período Arcaico (período que vai desde as primeiras criações literárias (Homero e Hesíodo) até o fim das guerras medo- pérsicas, em 448 a.C.).
Na Teogonia, Hesíodo trata da questão do surgimento e da luta dos deuses
45 Cf. o relato da ida de Ulisses às portas do Hades, na forma narrativa, em HOMERO. A Odisseia. Tradução de Fernando C. de A. Gomes, p. 121-134.
46 Elpenor inclusive reclama o fato de não ter sido ainda enterrado e nem lamentado (pela falta de tempo de Ulisses e seus companheiros); ele faz uma ameaça: caso Ulisses não cumpra os rituais
funerários, ele lhe lançará “a vingança de Zeus”. Tal assertiva se assemelha com as crenças no po- der dos mortos entre os egípcios, mesopotâmicos e cananeus, citadas acima, de efetuar juízo sobre os vivos caso não fossem reverenciados.
47 O conhecimento do futuro, possibilitando ao morto fazer previsões, lembra o episódio do Rei Saul e a pitonisa de Endor narrado em 1Sm 28,3-25 (esse episódio será analisado adiante). Na lite- ratura romana antiga, há uma versão dessa descida de um herói épico ao Mundo dos Mortos, já citada neste trabalho: trata-se de Eneias (Eneida, Canto VI), personagem de Virgílio (I século a.C.); o herói Eneias, chegando à ilha de Cumas, faz consulta à Sibila e obtém revelações sobre os futuros percalços que terá de enfrentar. Ele consegue permissão para ir ao Mundo dos Mortos e lá toma conhecimento de que as almas habitam determinadas regiões de acordo com o que fizeram quando em vida, sendo julgadas pelo tribunal de Minos. À semelhança do que ocorreu com Ulis-
ses, um dos primeiros que Eneias encontra no Hades é um piloto de sua nau, Palinuro, que tinha morrido pouco antes, o qual, como também o personagem da Odisseia, roga a Eneias para que o enterre o mais rápido possível. Num lugar reservado aos bem-aventurados (o “Amplo Elísio”), o herói encontra seu pai, Anquises, e tenta agarrá-lo por três vezes (como Ulisses fizera com sua mãe), mas não consegue, pois as almas no Hades são como sombras; seu pai é uma imagem seme- lhante ao vento. Anquises lhe mostra então as almas que aguardavam o momento de reencarnar, almas estas de vários heróis do povo romano. Antes de Eneias ir embora, seu pai faz-lhe previsões sobre o futuro do herói, mostrando, assim, que os mortos no Hades também podem fazer previsões na literatura clássica romana (cf. o relato narrativo em VIRGÍLIO. Eneida. Tradução David J. Jú- nior, p. 94-111).
da mitologia pré-homérica; já nos Erga (poema com mais de 800 versos hexâme- tros) o enfoque é bem diferente: Hesíodo trata de temas mais terrenos, especial- mente da questão da justiça.48 Dentro dessa temática, o poeta narra o mito das cin- co raças (v. 106 a 201 do poema). Trata-se da história das diversas raças de ho- mens que apareceram e desapareceram sucessivamente, numa ordem aparente de decadência progressiva e regular. Elas são nomeadas por metais e assemelhadas a eles, do mais precioso ao de menor valor, do superior ao inferior: primeiro o ouro, depois a prata, o bronze e, por último, o ferro. Esta última é a da época em que vive o poeta e seus contemporâneos, considerada a pior da história humana (daí simbolizada pelo metal de menor valor), o que revela seu pessimismo em relação à sua própria época. Quebrando essa sequência metálica, entre a Raça de Bronze e a de Ferro, Hesíodo insere a Raça dos Heróis.
Os homens da Raça de Ouro (a mais próxima dos deuses imortais), da Ra- ça de Prata, da Raça de Bronze e da Raça de Heróis continuam a existir no pós- morte: os da Raça de Ouro se tornam “gênios”, “guardiões dos homens mortais”;49 já os homens da Raça de Prata, menos valorosos, ao morrer também se tornam “bem-aventurados”, numa escala menor que os da raça anterior;50 os homens da terceira raça, simbolizada pelo bronze, continuam em decadência no pós-morte: vão para o Hades, o mundo dos mortos;51 a quarta raça, a dos Heróis (imediata- mente anterior à Raça de Ferro, em que vive o poeta), rompe com a decadente de- gradação: são valorosos, dignos, heróis de guerra e, no pós-morte, adquirem posi- ção superior às raças anteriores.52 Certamente aqui essa inserção (pois quebra a
48 Cf. BARRON, J. P.; EASTERLING, P. E. Hesiod. In: EASTERLING, P. E.; KNOX, B.M.W. (Ed.). CHCL: Greek Literature, p. 92-105. v. 1; aqui especialmente p. 94-96.
49 Nos Erga, v. 121-126, o texto registra: “Mas quando então a esta raça a terra envolveu inteira- mente, eles são, por determinação do Deus poderoso, gênios corajosos, epictônios, guardiões dos homens mortais, os quais certamente estão vigiando julgamentos e obras funestas, revestidos de ar, vão e vêm sem cessar, por todo o lado, sobre a terra, doadores de riquezas; e este foi seu privilégio real” (tradução nossa a partir do texto estabelecido por WEST, M. L. Hesiod, Works and Days, p. 100-101).
50 Cf. os v. 140-142: “Mas depois que também a esta raça a terra envolveu inteiramente, eles são chamados hipoctônios, bem-aventurados mortais, segundos, mas, em todo caso, a honra também os acompanha” (Ibidem, p. 101).
51 Cf. os v. 152-155: “E eles, por suas próprias mãos tendo sucumbido, foram para a úmida morada do gelado Hades, anônimos; a morte, certamente, sendo eles terríveis, envolveu-os negra; deixaram
a luz brilhante do sol” (Ibidem, p. 102). Interessante notar que sua condição de “anônimos” é pecu- liar ao lugar a eles destinado no pós-morte, o Hades (mundo dos espectros, das sombras, ou seres desprovidos de essência).
52 Cf. os v. 161-173: “E a estes tanto a guerra má quanto o grito de guerra espantoso, a uns sob Tebas de Sete Portas, na terra Cadmeia, aniquilaram combatendo por causa dos rebanhos de Édipo, e a outros, carregados para além do grande abismo do mar, para Troia levaram por causa de Helena de belo cabelo, ali onde certamente aos quais termo de morte envolveu, e à parte dos humanos dando-lhes sustento e morada, Zeus Cronida pai estabeleceu nos confins da terra, e (são) estes que
linha decadente das raças) se deve ao conhecimento que Hesíodo tinha acerca dos heróis gregos, os quais ele coloca como tendo vivido imediatamente antes de sua época. A última raça, a de Ferro (a mais decadente em termos de distância dos deuses, devido à violência, desrespeito e maldade), é a única a que o poeta não narra o pós-morte, certamente porque retrata a sua geração, os seus ouvintes, vivos ainda.53
Segundo o poema, os homens tiveram a mesma origem dos deuses, sendo que somente a estes foi reservada a imortalidade (à semelhança de mesopotâmicos e cananeus já mencionados). O vocábulo homóthen (da mesma fonte, origem,54 ou do mesmo ponto de partida)55 indica que os ánthrôpoi (homens, como raça huma- na) têm, segundo West, o mesmo modo de vida dos theói (deuses);56 no entanto, da mesma “origem” não significa que deuses e homens pertenciam à mesma famí- lia: “Os deuses criaram os homens, não no sentido de tê-los engendrado, mas no de tê-los produzido ou fabricado (poieîn)”.57
Quando criados, os homens tinham thymós58 despreocupada (Erga, 112); o mesmo termo designa depois a situação no pós-morte da raça de heróis na Ilha dos Bem-aventurados (o oposto do Hades), junto ao Oceano profundo (v. 171).59 A exemplo da Mesopotâmia, nem mesmo os heróis escapam ao destino da morte im- posto por Zeus, apesar de sua condição post mortem ser diferente, como mostra o relato desse verso.
Os homens da Raça de Ouro são classificados no pós-morte como gênios epictônios (Erga, v. 122-123), os da Raça de Prata como gênios hipoctônios (v. 141), e os da Raça de Bronze como anônimos (v. 154). O termo daímôn (no plural gênios, agentes divinos, v. 122) é usado na poesia grega como sinônimo para
habitam tendo coração tranquilo, na Ilha dos Bem-aventurados, junto ao Oceano profundo: heróis afortunados, aos quais doce fruto três vezes ao ano florescendo produz a terra fecunda” (Ibidem, p. 102-103). Essa “Ilha dos Bem-aventurados” equivale ao “Campos Elíseos” de Homero (cf. a Odis- seia IV, 561ss). Apesar de o Olimpo ser a residência dos deuses, essa “ilha” é bastante frequentada por eles (cf. WEST, M. L. Op. cit. p. 193).
53 Poderia se pensar que essa raça, contemporânea a Hesíodo, não teria vivência no pós-morte de- vido à sua maldade; entretanto, o poema não revela isso.
54 Cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. LSJ, p. 1224.
55 Cf. BAILLY, Anatole. AB, p. 1375.
56 WEST, M. L. Op. cit. p. 178. O verso 112 confirma, para a Raça de Ouro: “como deuses viviam, tendo vida despreocupada”.
57 VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos, p. 115.
58 Esse vocábulo, muito comum em Homero, pode ter vários sentidos, como “alma” (no sentido de “princípio da vida”), “vida”, “coração” (como sede dos sentimentos e do pensamento), e “mente” (cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. Op. cit. p. 810 e BAILLY, A. Op. cit. p. 948).
59 Oceano, personificado, é o deus do Mar, filho de Urano e Gaia, personagem que aparece em outra obra de Hesíodo, mais antiga, a Teogonia (v. 126-133). A situação humana na Raça de Ouro evoca o mito do primitivo estado paradisíaco da humanidade.
“deuses”, mas sempre no singular, expressando o sentido de agentes divinos res- ponsáveis pela sorte dos homens, individualmente; Hesíodo aplica o termo no plu- ral a toda uma raça. Havia uma tendência a honrar os homens ilustres após sua morte devido à crença de que eles ainda possuíam poder para prescrever o bem ou o mal para a comunidade, ou seja, seriam dáimones60 (a exemplo, como visto aci- ma, de mesopotâmicos e cananeus). Somente muito posteriormente o termo adqui- riu o sentido de “mau espírito”, “demônio”. Relacionado aos dáimones, o adjetivo epichthónioi (habitantes da terra, v. 123) é de uso frequente em Homero como epíteto para os homens, mas designando também espécies de “deuses inferiores”, seres situados entre os deuses e os heróis.61 Em Hesíodo, designa “as almas dos homens de raça de ouro, os quais atuam como divindades tutelares e frequentam a terra”,62 ou “deuses que residem sobre a terra”.63
Vernant afirma que o termo está em oposição a hypochthónioi do v. 141 (embaixo da terra, subterrâneos),64 o qual indica o destino da Raça de Prata, esta- belecendo o paralelo entre as diferentes situações post mortem das duas primeiras raças.65 O destino dos homens da Raça de Prata lembra o mesmo destino dos Ti- tãs, depois de derrotados por Zeus, na Teogonia (v. 717-721).66
Assim, ao descrever os homens da Raça de Prata como hipoctônios e bem- aventurados, Hesíodo está certamente identificando esses homens com alguns mortos respeitados como poderosos ou perigosos (mortos especiais, como os reve- renciados no marziḥ cananeu); eles, entretanto, não saem do mundo subterrâneo, não têm identidade, não são lendários (por isso Hesíodo não os identificou com a quarta raça, a dos Heróis). Existiam numerosos túmulos antigos tratados com ve- neração supersticiosa pelo povo sem que se saiba a quem pertenciam. Para Ver- nant, entretanto, a natureza e o tipo de autoridade dada a esses homens da segunda raça não é fácil de ser definida: “A única certeza que se tem em relação a essa ca- tegoria de defuntos ‘venerados’ pelos homens é que ‘eles são chamados mákares, Bem-aventurados’”.67 É somente isso que o texto admite, com certeza, acerca do destino deles: sua contraposição ao destino dos homens da Raça de Ouro.
60 WEST, M. L. Op. cit. p. 182.
61 Cf. BAILLY, A. Op. cit. p. 425.
62 Cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. Op. cit. p. 366 e 673.
63 Cf. BAILLY, A. Op. cit. p. 788.
64 Cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. Op. cit. p. 1902.
65 VERNANT, Jean-Pierre. Op. cit. p. 33-34.
66 Cf. TORRANO, Jaa. Teogonia: a origem dos deuses, p. 145.
67 VERNANT, Jean-Pierre. Op. cit. p. 122.
Já o adjetivo nónymnoi (anônimos), com o qual a Raça de Bronze é desig- nada no Hades, pode ter o sentido de “sem glória”.68
No caso de todas as raças (menos a de Ferro, que não passou, ou seja, não morreu ainda), vê-se que a morte não significa o aniquilamento total da existência; sua existência no além, entretanto, se dá em diferentes situações e lugares. Assim, percebe-se uma clara referência da continuação da existência no pós-morte para as quatro primeiras raças, justamente as que já viveram sobre a Terra; além disso, essa condição no além é, de certa forma, pautada na conduta ético-religiosa de ca- da raça durante sua vida sobre a Terra.
Na literatura grega em geral, os heróis, devido à sua condição privilegiada no além, serão vistos por muitos escritores como conquistadores da imortalidade. Esse tema pertinente aos heróis será inclusive uma das motivações para o culto em honra deles.69 Entretanto, eles não são capazes de voltar à vida terrestre, reencar- nando em seu corpo anterior, ou mesmo qualquer outra forma de corpo; o máximo que se podia era manter a imagem do corpo físico no além.70
Para os gregos de uma forma geral, o homem possuía, além do corpo, uma psychê. Esse termo “em Homero e Hesíodo é a vida ou o que dela subsiste”;71 o sentido de “alma” surge em Xenófanes, referente a Pitágoras, e em Anacreonte, sendo este sentido usado posteriormente por Platão no Fedro.72 No entanto, em algumas ocasiões psychê é usado como sinônimo do termo thymós homérico (cita- do acima), e era justamente a psychê que ia para o Hades;73 portanto, era o que sobrevivia após a morte, passando a designar a parte não-material do homem. A concepção dessa parte não-material, oposta ao corpo, surge em Heráclito. Obser- va-se assim a modificação semântica do termo como reflexo da evolução do pen- samento grego, desde Homero até o século V a.C.74
Por fim, interessante observar que nos Erga se percebe também o dualismo entre Bem e Mal já expresso por Zoroastro nos Gathas, conforme assinalado acima. No primeiro relato dos Erga (v. 11-41), Hesíodo narra a existência da dúplice
68 Cf. BAILLY, A. Op. cit. p. 1338.
69 Para um tratamento abrangente do tema, cf. NAGY, Gregory. Poetic Visions of Immortality for the Hero. In: The Best of the Achaeans: Concepts of the Hero in Archaic Greek Poetry, p. 174-210. 70 SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 212.
71 PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica, p. 248.
72 Ibidem, p. 249.
73 O Mundo dos Mortos, nos escritos homéricos, “é simplesmente o lugar para onde a alma (psy- chê) vai quando seu corpo morre” (SEGAL, Alan F. Op. cit. p. 211).
74 Cf. BREMMER, Jan N. The Soul of the Living. In: The Early Greek Concept of the Soul, p. 13- 69; aqui especialmente p. 66-69.
Luta ( !Er i V),75 uma boa e outra má, as quais explicam a existência da ambiguida- de de índole que Hesíodo observa nos seres humanos. No mito das cinco raças, o estado presente da humanidade é descrito como sendo a mistura de bem e mal, o mesmo tema da dúplice Éris (na Idade do Ouro, os homens não precisam do traba- lho para se alimentar: não têm necessidade da boa Éris, a que incentiva o trabalho, a honestidade, a justiça; já na última Raça, a do Ferro, eles estão entregues à má Éris).
Nesta narrativa, a das raças, Hesíodo acentua o dualismo da dúplice Éris em outro par de opostos: Díke e Hýbris (“Justiça” e “Excesso”),76 pois é a temáti- ca da justiça que aparece como objetivo central desse relato. Na Raça de Ferro, época em que vive o poeta, há os dois tipos de existência humana, totalmente o- postos, um comportando Díke e Hýbris, e o outro apenas Hýbris. Em verdade, He- síodo vive num mundo em que o bem e o mal estão mesclados e se equilibrando,77 o que lembra a “época atual de mistura” na escatologia zoroastriana.
No Período Helenístico, a temática do pós-morte entre os gregos é bastante influenciada pelas ideias do Orfismo e as noções platônicas, influência essa que se fará sentir também entre os judeus.
O orfismo aparece já no Período Arcaico, mas suas ideias são desenvolvidas e difundidas de fato a partir do III século a.C. Sua doutrina da transmigração das almas, seus conceitos de mundo subterrâneo e a ideia de castigo no pós-morte exerceram grande influência no mundo helenístico, inclusive em Platão. Essa vida
75 Segundo Anatole Bailly, a palavra e!r i V significa “querela à mão armada”, “luta”, “combate”, “discórdia”, “contestação”, “rivalidade” (cf. BAILLY, A. AB, p. 805). No texto hesiódico, ela apa- rece personificada, !Er i V (Erga, 11, 16, 17 passim), a qual pode ser traduzida por “Discórdia”: trata-se da Filha da Noite (Nuvx) da Teogonia, 225. Entretanto, nos Erga aparece uma novidade: ao lado dessa !Er i V má, existe a boa !Er i V, irmã mais velha, que deve ser louvada (Erga, 12), pois é proveitosa ao homem.
76 A tradição consagrou o significado de u@br i V em português como sendo “desmedida”, “violên-
cia”. De fato, ela pode significar “violência libertina, suscitada pelo orgulho da força ou pela pai- xão”; “insolência”; “ultraje”; “homem arrogante, autoritário, violento”; “lascívia, concupiscência”, neste último caso em oposição à swjr osuvnh , que é a “temperança”, a “prudência” (cf. LIDDELL,
H. G.; SCOTT, R. LSJ, p. 1741 e 1841). Assim, em uma definição mais abrangente, u@br i V designa a ultrapassagem de um limite. Entretanto, tal limite varia de acordo com os valores em que se está
inserido: em Homero (Ilíada II, 158 e 203), o limite é a ai *dwVv
(“sentimento moral de reverência”;
“respeito”; “temor da ignomínia” (cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. Op. cit. p. 36); na Atenas clás- sica, o limite é a swjr osu vnh, qualidade de quem segue a justa medida (daí as traduções como “desmedida” ou “excesso”). Em Hesíodo, o limite á a própria Divkh , a qual aparece associada ao ideal de justa medida. “Desmedida” ou “Violência” parecem refletir apenas parcialmente o sentido original hesiódico; dessa forma, “Excesso” certamente se coloca como uma tradução mais adequa- da.
77 Cf. Erga, 179: “Mas, apesar disso, entre eles [os homens da Raça de Ferro] bens (e) desgraças
estarão misturados” (texto grego em WEST, M. L. Hesiod, Works and Days, p. 103).
no além era entendida, de certa forma, como uma existência “corporal”, uma recomposição plena da vida humana. Os ensinamentos do orfismo, bem como dos neopitagóricos posteriormente, “serviram como catalisadores para formar e expandir a crença na imortalidade”.78
No caso de Platão, ele acreditava que a verdadeira realidade consiste no chamado Mundo das Ideias (ou Formas, ou Universais). O mundo verdadeiro é imutável e não está sujeito aos sentidos físicos, devendo ser buscado por meio da razão e da intuição. O mundo físico consiste apenas numa imitação do Mundo das Ideias; todas as coisas existentes no mundo físico não passam de aparências, imagens das Ideias: são os particulares. Platão defendia, portanto, um dualismo entre os Universais (Ideias) e os particulares: aqueles são eternos, imutáveis, infinitos; estes são, por contrapartida, terrenos, materiais, finitos. Esse dualismo teria sido criado pelo Demiurgo (artífice), entidade que, tomando como modelos os Universais, criou o mundo físico, sendo este apenas sombra do verdadeiro mundo; por- tanto, imperfeito.79
O verdadeiro conhecimento só é possível através da contemplação do mundo das Ideias; não se chega a esse conhecimento através do mundo físico. Nesse dualismo, o filósofo estabelece dois tipos de conhecimento: a opinião (dóxa) e, em oposição a esta, o conhecimento propriamente dito (epistémê).80 A dóxa consta da Imaginação (imagens, aparências, conhecimento através dos sentidos, sem qualquer investigação) e da Percepção dos sentidos (que dá origem a crenças, tanto parciais quanto equivocadas, como os particulares). A Imaginação e a Percepção dos sentidos são a forma mais básica e menos confiável do conhecimento.
Já a epistémê consta dos processos lógicos e matemáticos (entidades ou ideias matemáticas e semiabstratas são conhecidas dessa maneira) e da razão e intuição (as Ideias são conhecidas dessa maneira). Esse é o nível mais avançado de conhecimento; nesse ponto, cessam as imitações e a alma passa a conhecer diretamente as Ideias. No entanto, isso só é completamente possível quando a alma deixar o corpo físico, pois este, com seus sentidos, limita o acesso ao verdadeiro conhecimento. Já a alma, eterna e derivada dos Universais, possui esse conheci-
78 KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento, p. 166. v. 1.
79 Platão desenvolve seu conceito de Ideia (usando as palavras eîdos e idéa) especialmente no Fé- don, considerado um dos diálogos de Platão já bem experiente, maduro (cf. o texto grego na edição de Les Belles Lettres: Platon; oeuvres complètes. Tomo IV – 1ª parte: Phédon, com a tradução portuguesa em CIVITA, Victor (Ed.). Fédon. In: Diálogos, Platão, p. 55-126. Os pensadores).
80 O conhecimento em si mesmo também é definido em Platão pelo termo gnôsis, quando em opo- sição a ágnoia, ou seja, ignorância (cf. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. Op. cit. p. 355).
mento em si mesma. Enquanto estiver no corpo, resta ao homem relembrar aquilo que já conhece no subconsciente, pois sendo a alma derivada do Mundo das Ideias ela já o contemplou antes do nascimento terreno. Esse relembrar, tirar do esquecimento (anámnêsis), trazer de volta para a memória pode se dar pela busca do conhecimento genuíno, com a ajuda da dialética e da contemplação. Esse aspecto da pré-existência da alma e sua recordação é chamado de Teoria da Reminiscência. Por essa teoria Platão teve que inferir a imortalidade da alma, como também a teoria da transmigração dela.
Entre o Mundo das Ideias e o dos particulares há a barreira da mortalidade; isso explica por que os homens não podem tomar posse, de maneira definitiva, das Ideias. Observa-se, assim, que a partir de sua cosmologia dualista Platão pensa uma antropologia humana também dualista: o corpo é mortal (pertence aos parti- culares), ao passo que a alma é eterna, ou melhor, infinita, pois não somente as- cende ao Mundo das Ideias após a morte, como também já esteve lá antes de encarnar no corpo material.
COMENTÁRIO: Como sabemos, a maioria das igrejas gnósticas do cristianismo primitivo foi profundamente influenciada por Platão, claramente percebido nas doutrinas do Demiurgo, Imortalidade da Alma, Origem Divina da Alma, Transmigração das Almas (erroneamente chamada de "reencarnação" devido aos erros do espiritismo/kardecismo), a existência de um Reino Celestial Verdadeiro em contraposição ao mundo material errôneo e outras. Sabemos também que Platão retirou essas doutrinas dos cultos esotéricos da Grécia Antiga, os chamados Mistérios, bem como sabemos que os mistérios órficos e pitagóricos tem clara origem egípcia, existindo na Grécia após contatos com sacerdotes de cultos de mistérios das classes mais altas do Egito Antigo.
A influência platônica associada a outras escolas filosóficas gregas não permitiu que os gregos acreditassem numa ressurreição corporal. Já na Época do NT, o livro de Atos registra um discurso de Paulo aos gregos em Atenas no qual, quando o apóstolo se referiu à temática do Cristo ressuscitado, os ouvintes, em sua maioria, “começaram a zombar” ou simplesmente se retiraram (At 17,32-34). O sermão do apóstolo obteve pouco êxito.
Na tradição tardia essa concepção não se alterou. Luciano de Samosata, por exemplo, viveu aproximadamente entre 125-190 d.C.81 Sua obra considerada mais célebre é o Diálogo dos mortos.82 Ela tem como tema a chegada das pessoas ao mundo dos mortos. Luciano trata de muitas questões morais e religiosas de seu tempo, com muitas sátiras acerca da futilidade das atividades humanas. Ele conse- gue provocar o riso em situações aparentemente trágicas ou de coisas que, para o povo, eram consideradas sagradas. Sua preocupação não é fazer com que o povo acredite numa “vida além da morte”, mas conduzi-lo à reflexão acerca da situação social, moral e cultural vivida naquela época. Assim, a disparidade social é alvo da
81 Luciano de Samosata era sírio; sua língua de origem, portanto, não era a grega, mas a siríaca. Apesar disso, foi considerado pela crítica moderna como o “mais ático” dos escritores de seu tem- po, pelo bom uso que fazia desse já antigo dialeto. Sobre o contexto de Luciano, sua época e obra, cf. LESKY, Albin. O florescimento da Segunda Sofística. In: História da literatura grega, p. 866- 883, especialmente p. 874-880.
82 Cf. texto grego com tradução, notas e comentários em LUCIANO. Diálogo dos mortos. Tradu- ção e notas Maria Celeste C. Dezotti (1996).
crítica de costumes feita por ele;83 pode-se dizer que ele tem como objetivo, mais do que reformar, a intenção de denunciar.
No desequilíbrio das classes sociais, Luciano enfatiza que o prazer do rico só é completo se existir o pobre para admirar e desejar a sua riqueza. É somente no Hades que ambos desfrutarão das mesmas coisas, pois lá terão igualdade de honra, não havendo ninguém melhor que o outro. A diferença estará no que cada um viveu na Terra: os ricos e poderosos sofrerão pela ausência daquilo que desfru- tavam quando em vida.
O Hades serve, então, de castigo para os ricos e orgulhosos, os quais não se importavam com nada mais que prazeres, luxo e cobiça. Tinham um grande pavor da morte pela incerteza de saber se continuariam a gozar os mesmos privilégios, ao passo que os pobres e desafortunados nada tinham a perder com a morte. Por isso, estes entravam no Hades sem nenhuma preocupação com o que viria a ser aquele lugar. Luciano então coloca em dúvida os valores da sociedade de seu tem- po. Sua crítica leva a uma reflexão sobre a efemeridade das coisas do mundo, tan- to físico quanto metafísico.
Dessa forma, a morte é utilizada por Luciano como o momento da inversão das duas situações: os ricos alegres passam a mortos pesarosos, e os pobres opri- midos passam a espectros leves, sem nenhum peso das coisas que possam prendê- los à vida. Até mesmo o trabalho, que os ricos desconheciam em vida, eles rece- bem como castigo, fato que revela a crítica de Luciano a essa postura. O Hades é utilizado para criticar a ordem vigente.
Um grande herói que aparece entre os mortos no Hades de Luciano é Aqui- les, o qual, apesar de ser filho de Peleu com a deusa Tétis, tem o mesmo destino dos mortais. Não há dúvida de que Luciano espelhou-se na experiência de Ulisses na Odisséia, em que este desce ao Hades e encontra vários amigos e inimigos co- mo espectros. Na Ilíada, Aquiles prefere ter uma vida curta com uma morte nobre a ter uma vida longa mas sem reconhecimento; no Hades de Luciano, o Aquiles encontrado é justamente o contrário desse excesso de nobreza e valentia, desejan- do ser desconhecido a ter que estar entre os mortos. É através da figura de Aquiles acabrunhado que Luciano faz sua crítica a Homero e sua suposta nobreza, por e- xaltar o homem a estatura de um deus quando ele é um simples mortal, cheio de
83 O gênero dessa obra de Luciano ficou conhecido justamente por esta expressão: crítica de cos- tumes.
medo e incertezas.
Vê-se então que, entre os autores gregos em geral, não ocorre a idéia de ressurreição individual. A primeira e rara evidência do tema, conforme citações de Plutarco e Diógenes Laércio assinaladas supra, está em um historiador chamado Teopompo de Chios, na Jônia, da mesma época de Platão; ele cita a ressurreição corporal atribuindo-a aos ensinos de Zoroastro. De acordo com uma biografia já da época bizantina, Teopompo nasceu em 378 e faleceu em 320 a.C. Foi aluno de Isócrates de Atenas, estudou retórica e parece ter sido um exímio orador em sua época. Sua obra é predominantemente de caráter histórico. O problema da citação de Teopompo é que seus trabalhos não foram preservados na forma original. Atu- almente se contam 370 fragmentos atribuídos às suas obras.84 Além de Plutarco e Diógenes, ele é citado por muitos historiadores e autores, sendo o próprio Dióge- nes e Aenas de Gaza (este bastante tardio) os mais conhecidos na atribuição explí- cita a Teopompo da crença na ressurreição do indivíduo.
De qualquer forma, observa-se que, quase de uma maneira geral, os gregos aceitavam a imortalidade da alma, mas rejeitavam a ideia da ressurreição corporal.
4.2. A vida no pós-morte durante o Judaísmo antigo
O AT não especula acerca da origem da vida; ela é conhecida, vem de Iahweh. O que era crucial em Israel era a relação real e absoluta da vida com Iahweh; ele é o Senhor da vida (Jó 12,10).85 Além disso, “a vida não é individualizada no Antigo Testamento. Ela é dada por Deus em comunidade”.86 Já a morte também é vista como o fim normal, natural da vida na Terra, comum a todas as pessoas.87 Morrer significava simplesmente, então, o fim para o viver.88 Entretanto, já durante a época conhecida pela pesquisa moderna como Judaísmo do Primeiro Templo (cerca de 960-587 a.C.), os israelitas também tinham uma determinada expectativa na vida após a morte, pelo menos na não-aniquilação total do néfesh humano, a exemplo dos outros povos antigos acima citados. Certos Salmos,
84 Para a problemática da historicidade e antiguidade de Teopompo e sua obra, cf. FLOWER, Mi- chael A. Theopompus of Chios: History and Rhetoric in the Fourth Century B.C., p. 11-25.
85 VON RAD, Gerhard. Life and Death in the O.T. In: KITTEL, G. (Ed.). TDNT, p. 844. v. 2.
86 RIDENHOUR, T. E. Immortality and Resurrection in the Old Testament. Dialog 15.2 (1976), p. 104-109; aqui p. 104.
87 Cf., por exemplo, Gn 15,15; 35,19; Js 23,14; Jz 8,32; 1Rs 2,2; 1Cr 29,28, Jó 5,26; 30,23; 42,17;
Sl 39,13. Para um aprofundamento de vida e morte na antropologia do AT, cf. WOLFF, Hans Wal- ter. Vida e morte. In: Antropologia do Antigo Testamento, p. 161-187.
88 Cf., por exemplo, 2Sm 14,14; Jó 14,7-12; Sl 88,11-13; Is 38,18.
por exemplo, apontam a expressão de uma esperança de que a morte não pode ser a resposta final se Iahweh é, de fato, fiel às suas promessas da aliança com seu povo (cf. Sl 16, 49 e 73). A princípio, essa vida no pós-morte se dava num Mundo dos Mortos quase sempre denominado pela palavra hebraica Sheol.89
Nessa compreensão de vida após a morte, esta representava o fim das rela- ções, tanto pessoais quanto das relações com a divindade. O morto estava fora do âmbito da ação de Iahweh.90 Textos como Sl 88,10-12 deixam claro o que significava para os mortos terem suas relações com Iahweh cortadas por morarem no Sheol.91 Normalmente, o Sheol era o lugar comum para toda e qualquer pessoa, do qual não se podia fugir e para além do qual nada deveria ser esperado, e a ida para o Sheol não permitia mais retorno (ideia semelhante à expressa por outros povos já descritos acima).
COMENTÁRIO: Mais uma comprovação e constatação básica do antigo judaísmo é a não expectativa da vida após a morte no "Céu" mas sim no mundo dos mortos, no Sheol, que não era o mesmo que inferno! Sheol era o lugar comum para toda pessoa, seja ela boa ou má. Essa ideia é, como visto, semelhante às ideias dos Cananeus e outros semitas (acádios, assírios e babilônios), e diferente da expectativa persa-zoroastriana. Portanto, as expectativas pós-morte do Judaísmo do Segundo Templo, vistas principalmente no livro de Daniel e nos profetas mais novos e em toda Literatura Apocalíptica Judaica, bem como no Cristianismo Primitivo, não são originais do Judaísmo mas fruto de sincretismo religioso oriundas da interação grega em conjunto e principalmente com a interação Persa-Zoroastriana.
De qualquer forma, nesse período do judaísmo antigo a noção da existência após a morte é vaga e abstrata (por exemplo, no Sheol o homem continua a existir, mas às vezes parece estar inconsciente). Aparentemente, há certo desinteresse pelo tema, possivelmente pelo fato de haver uma antipatia dos israelitas pelos cultos estrangeiros (incluindo os que invocavam ou procuravam aplacar a ira dos mortos) com o intuito de desacreditar os seus deuses. Assim, era inviável se pensar em um reino dos mortos com deuses específicos, nos moldes de Osíris ou Anúbis (Egito), Nergal e Ershkigal (Mesopotâmia) ou de Mot (em Canaã), pois tal expectativa poderia abrir a possibilidade da veneração de espectros ou espíritos dos mortos, o que os escritos sagrados proibiam terminantemente.92
Entretanto, o episódio narrado em 1Sm 28,3-25, em que o Rei Saul consulta uma feiticeira na cidade de Endor, revela que, embora proibidos, os ritos de necromancia eram praticados em Israel.93 O conhecimento e a prática de tal atividade certamente inspirou as prescrições legais acerca dos mortos: eles não podiam
89 Numa compreensão mais tardia (no Judaísmo do Segundo Templo), outra vertente da vida no pós-morte será desenvolvida como forma de resolver a questão, justamente o tema deste trabalho: a ideia da ressurreição (cf. ROWLEY, H. H. The Future Life in the Thought of the Old Testament. CgQ 33 (1955), p. 116-132). Ressaltamos que para as palavras hebraicas já estabelecidas no verná- culo português optamos por adotar a grafia corrente (uma “transliteração aportuguesada”). Quando ao estudo semântico do termo Sheol, cf. adiante.
90 WOLFF, Hans Walter. Vida e morte. In: Op. cit. p. 170-171.
91 O Sl 88, 11-13 relata: “Realizas maravilhas pelos mortos? As sombras se levantam para te lou- var? Falam do teu amor nas sepulturas, da tua fidelidade no lugar da perdição? Conhecem tuas maravilhas na treva, e tua justiça na terra do esquecimento?”.
92 Cf. Lv 19,26.31; 20,6.27; Dt 18,9-14; 1Sm 28,7-10.
93 Blenkinsopp argumenta que esses cultos estavam presentes no antigo Israel e foram deliberada- mente erradicados posteriormente (cf. BLENKINSOPP, Joseph. Deuteronomy and the Politics of Post-Mortem Existence. VT 45.1 (1995), p. 1-16). Cf. também 2Rs 21,6; Is 8,19.
ajudar nem ser ajudados pelos vivos, não deveriam ser cultuados e as consultas mediúnicas deveriam ser punidas com apedrejamento. A frequência dessa proibi- ção parece revelar, na verdade, sua pouca eficácia. Embora haja essa proibição legal frequente a esse culto, o Pentateuco não registra sinais dele, o que tem levan- tado algumas hipóteses, como, por exemplo, a ideia de que a menção a esses cul- tos teria sido retirada da Escritura. Questões também foram levantadas, como em que momento esses cultos teriam sido banidos dentre os israelitas, se teria sido antes de os livros serem editados, por qual motivo e, ainda, se em algum momento teria havido em Israel a prática autorizada desses cultos e ritos nos moldes daque- les encontrados nas redondezas.94 Para Segal:
A Bíblia inteira pode ter sido editada cuidadosamente, de modo a afastar-se de qualquer referência à vida e à morte, de acordo com o seu viés editorial. Entretanto, ela é uma literatura nacional acumulada a partir de uma variedade de locais e sob o controle de um editor que, evidentemente, pensou que algumas tradições eram demasiadamente sagradas para serem omitidas, mesmo se elas fossem escandalosas. Assim, vamos encontrar muitos indícios de uma crença em cultos aos ancestrais, bem como em uma vida após a morte, sob a suspeita de um trabalho editorial neles.95
Pode ser que, a partir do momento em que a tradição do “Iahweh sozinho” impôs-se às demais (século VII a.C.),96 os ritos de necromancia teriam sido banidos do antigo Israel por serem considerados ofensivos à fé javista, pois esta partia do princípio de que tais ritos remetiam à veneração de outros deuses. O movimento deuteronomista apregoava a fidelidade exclusiva a Iahweh, o Deus que libertou o povo do Egito. Entretanto, na prática popular persistia uma tendência claramente sincretista. O extenso reinado de Manassés (698-643 a.C.), com sua sujeição à As- síria, foi longânimo com o sincretismo religioso, oficialmente tolerado.
Assim sendo, além da adoração oficial a Iahweh, praticava-se adoração nos lugares altos, onde deuses cananeus eram adorados, especialmente Baal e sua con- sorte Asherá, cuja imagem foi, inclusive, colocada dentro do Templo (2Rs 21,7).97
94 Cf. DOUGLAS, Mary. No Cult of the Dead. Leviticus As Literature, p. 98-104.
95 SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 131. Para este autor, o erro de Saul, ou seja, a necromancia,
foi retroagido pelos escribas da corte com o intuito de explicar sua fracassada campanha militar diante dos filisteus como sendo fruto da punição divina (Ibidem).
96 Sabe-se que o Rei Josias (640 – 609 a.C.) reformulou a religião em Israel, estabelecendo o Ja- vismo puro e inaugurando a tradição do “Iahweh sozinho” (Cf. COHN, N. Cosmos, Chaos, and the World to Come, p. 141-151).
97 Manassés era simpatizante também às divindades astrais assírias. O deuteronomista denuncia o rei porque “reconstruiu os lugares altos que Ezequias, seu pai, havia destruído, ergueu altares a Baal, fabricou um poste sagrado, como havia feito Acabe, rei de Israel, e prostrou-se diante de todo o exército do céu e lhe prestou culto. Construiu altares no Templo de Iahweh, do qual Iahweh dis- sera: ‘É em Jerusalém que colocarei meu Nome’. Edificou altares para todo o exército do céu nos
Essa deusa era a mesma deusa assírio-babilônica Ishtar (Inana), conhecida na Pa- lestina e arredores como Astarte, chamada também de Rainha do Céu, que chegou a ser considerada consorte, além de Baal, também de Iahweh.98 Sua adoração constituía uma devoção muito popular (Jr 7,18; 19,3), como revelam suas 822 es- tatuetas encontradas em Judá, mais de 400 somente em Jerusalém.99 Além disso, é bastante plausível que tenham existido vários santuários de Iahweh por todo o Is- rael.100
Por ocasião da migração dos israelitas para Canaã, parece que os cananeus foram, pelo menos em parte, submetidos aos hebreus pelo sistema de corveia (não foram totalmente expulsos, cf. Jz 1,28). Pode ser que, por esse tempo, Iahweh pas- sou a ser identificado com o El cananeu, celebrado como criador da Terra e pai dos deuses.
Também o livro do profeta Oseias (apesar de conter inserções posteriores, estas partilhavam as tradições e convicções do profeta do VIII século a.C.) revela uma religião politeísta praticada pelo povo em geral e pela elite religiosa, o que aborrecia profundamente a Iahweh.101
O fato é que essas questões postuladas acima não são fáceis de ser total- mente respondidas, em parte devido a certa escassez literária relativa ao tema à época do Judaísmo do Primeiro Templo, especialmente no que se refere a textos paralelos ao TM.
dois pátios do Templo de Iahweh” (2Rs 21,3-5). Tais símbolos de Baal e Asherá só foram retirados do Templo pela reforma religiosa de Josias, o qual ordenou “que retirassem do santuário de Iahweh todos os objetos de culto que tinham sido feitos para Baal, para Aserá e para todo o exército do céu; queimou-os fora de Jerusalém...” (2Rs 23,4); Josias também “destituiu os falsos sacerdotes que os reis de Judá haviam estabelecido e que ofereciam sacrifícios nos lugares altos, nas cidades de Judá e nos arredores de Jerusalém, e os que ofereciam sacrifícios a Baal, ao sol, à lua, às constelações e a todo o exército do céu” (2Rs 23,4), bem como “demoliu a morada dos prostitutos sagrados, que estavam no Templo de Iahweh, onde as mulheres teciam véus para Aserá” (2Rs 23,7). Ezequiel também denuncia cultos idolátricos no Templo, com oferecimento de incenso em honra de Asherá e com lamentações de mulheres em honra do deus da vegetação, sumério e assírio, Tamuz (Ez 8,5-16).
98 Essa associação como consorte de Iahweh na religiosidade popular teria sido eliminada da Escri- tura Hebraica pela reforma deuteronomista.
99 Cf. GARMUS, Ludovico. Tolerância e intolerância em Jeremias. In: Tolerância e intolerância religiosa. EstBib 109 (2011), p. 9-18; aqui p. 17.
100 Cf. DONNER, H. História de Israel e dos povos vizinhos, p. 172. v. 1.
101 Relata o livro do profeta: “Nos cimos das montanhas oferecem sacrifícios, e sobre as colinas queimam incenso, debaixo do carvalho, do choupo e do terebinto, pois a sua sombra é boa. Por isso as vossas filhas se prostituem e as vossas noras cometem adultério” (4,13 — trata-se da prostitui- ção idolátrica); “Quando Efraim multiplicou os altares, eles só lhe serviram para pecar” (8,11); “Eles sacrificavam aos baais e queimavam incenso aos ídolos” (11,2b); “E agora continuam pe- cando: eles constroem para si uma imagem de metal fundido” (13,2a); “Mas eu sou Iahweh teu Deus, desde a terra do Egito. Não deves reconhecer outro Deus além de mim, não há salvador que não seja eu” (13,4).
Como a morte representava o fim dos relacionamentos, inclusive com a divindade, é provável também uma resistência à ideia de que os mortos pudessem existir de alguma forma fora do governo de Iahweh, podendo até manter um rela- cionamento entre si (ou com os vivos) à revelia da divindade israelita, assumindo status de semideuses, o que evidenciaria a existência de um panteão nos moldes estrangeiros citados supra. De qualquer forma, não havia ideia de julgamento no Sheol.
No caso de Saul e a pitonisa de Endor, Samuel aparece, quando invocado pela mulher, como uma espécie de semideus, podendo até relatar a Saul o futuro deste, a exemplo do caso de Tirésias e Ulisses na Odisseia. Assim, “os mortos, ou pelo menos alguns deles, estão dotados de um poder que escapa aos humanos, co- nhecem o futuro”.102 A própria pitonisa não reconhece a imagem de Samuel como a de um fantasma, mas como a de um ser divino, um “elohim que subia da terra” (1Sm 28,13); Samuel estava subindo do Sheol. O termo elohim era usado em referência à divindade, e pode ser que alguns israelitas o interpretassem como sendo designação de seus próprios ancestrais na Terra, fazendo-lhe súplicas e, através destes, adorando seu Deus.103
Se, de fato, a religião popular possuía alguma expectativa de vida após a morte de uma forma mais intensa que a registrada nos textos, parece haver pouca razão para acreditar que fosse algo mais benéfico que as expectativas cananeias da existência no pós-morte.104 Não há nenhuma evidência de que os judeus antigos entendiam néfesh como “alma imortal” como entendeu a tradição judaica posterior, bem como, por conseguinte, a tradição cristã; o néfesh descreve a identidade da pessoa, mas não implica uma sobrevivência no pós-morte com algum tipo de re- compensa. Em muitas ocasiões o termo é traduzido simplesmente como “vida”; no Gênesis, a alma vivente é um “ser animado”, em oposição ao que não tem vida, sendo aplicado não somente aos seres humanos, mas também aos animais.105
Essa palavra apresenta, de fato, uma gama de significados ampla ao longo das Escrituras Hebraicas, permitindo um leque de traduções: garganta, pescoço,
102 MARTIN-ACHARD, Robert. Da morte à ressurreição segundo o Antigo Testamento, p. 51. Segundo este autor, “a esta tradição faz menção, sem dúvida, Isaías quando convida ironicamente seus contemporâneos infiéis a invocar os seus deuses (isto é os seus mortos), uma vez que recusam crer em Yahweh – Is 8,19” (Ibidem).
103 SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 131.
104 Ibidem, p. 143.
105 Em Gn 2,7a, Iahweh soprou []
passou a ser criatura [ ] vivente.
nas narinas do homem o fôlego [ ] de vida, e o homem
anelo, alma, vida, pessoa e a tradução por um pronome reflexivo (a expressão mi- nha néfesh frequentemente equivale a eu próprio, mim mesmo).106 Por exemplo, em 1Rs 17,22 a néfesh (respiração, vida) de um menino retorna e ele revive; em Dt 12,23 néfesh está relacionada à proibição da ingestão de sangue (“Sê firme, contudo, para não comeres o sangue, porque o sangue é a vida. Portanto, não co- mas a vida com a carne”), relevando certa equivalência entre vida e sangue; outras vezes sua relação se dá com garganta (Is 5,14; Hab 2,5), com apetite relacionado à comida (Dt 23,25; Sl 78,18; Pr 12,10; Os 9,4) e relacionado ao apetite volitivo, desejo, vontade (Ex 15,9; 1Sm 2,35; Sl 27,12; Pr 13,2). Algumas vezes néfesh se
apresenta como sujeito do verbo (desejar, ansiar), não se relacionando a ne-
nhum tipo de apetite ou desejo em si mesmos, mas à dona do apetite, a própria “alma”: “E o que a sua alma desejar [ ], isso mesmo faz” (Jó 23,13b).
Outras vezes pode indicar o impulso sexual: “Jumenta selvagem, acostumada ao deserto, no ardor de seu cio [ ] fareja o vento; quem freará a sua pai- xão?” (Jr 2,24a).107
É bastante reconhecido também que os hebreus normalmente não faziam distinção entre corpo e alma; geralmente, a antropologia semítica pensava o ser humano como sendo uma unidade: não tinha uma “alma”, mas era uma alma, um corpo juntamente com sua néfesh; esta poderia ser mais bem entendida, atualmen- te, como a própria pessoa, ou personalidade, e não simplesmente criatura vivente, ou sopro de vida (rûaḥ),108 pois o uso do termo pelos judeus antigos não apresenta relação com o tema da imortalidade ou ressurreição corporal.
Outro termo que poderia causar dúvidas é o próprio rûaḥ, normalmente traduzido por “espírito”. Sua ideia básica tem a ver com “ar em movimento”, des- de a respiração (Gn 7,15.22; Sl 104,29; Is 42,5; Ez 37,5) até a ventania em uma
106 Cf. o estudo pormenorizado, com exemplos de cada caso, em WOLF, H. W. Antropologia do Antigo Testamento, p. 33-56.
107 Cf. WALTKE, Bruce K. néfesh. In: HARRIS, R. L. (Org.). DITAT, p. 981-983. Para este autor, “o significado original e concreto da palavra foi provavelmente respirar” (p. 982). Claus Wester-
mann sugere que uma boa tradução da palavra seria a designação genérica de indivíduos, as pesso- as, usando-se também os pronomes pessoais (cf. sua abordagem em JENNI, Ernst; WESTER- MANN, Claus. DTMAT, p. 71-95. v. 2). De qualquer forma, como a própria natureza da existência envolve impulsos, apetites, desejos e vontades, néfesh denotaria a vida do indivíduo nesse leque mais amplo, e não a noção abstrata de vida separada do corpo existencial.
108 Há quem pense em certo dualismo no pensamento hebraico antigo; cf. PAYNE, J. Barton. rûaḥ.
In: HARRIS, R. L. (Org.). Op. cit. p. 1407-1409. Deve-se, entretanto, ter cautela ao se atribuir ca- tegorias do pensamento moderno ao pensamento dos judeus antigos: por exemplo, ao se estabele- cer a analogia entre néfesh e personalidade, deve-se ter em mente que tal paralelo serve apenas para situar o uso da palavra antiga em seu contexto, sem cometer anacronismos.
tempestade (Gn 8,1; Ex 15,10; Hab 1,11).109 Entretanto, sua conotação varia den- tro da Bíblia Hebraica, permitindo, exemplo de néfesh, uma variada gama de significações (vento, respiração, força vital, espírito (s), temperamento, força de vontade).110 Aparece ligado à própria atividade humana (Jz 15,19; 1Sm 30,12); em última instância, o rûaḥ de toda a humanidade se encontra nas mãos de Iahweh (Jó 12,10; Is 42,5); ligase à própria consciência humana (Sl 32,2; Pr 16,32; Is 26,9; Dn 5,20) e pode retornar a Iahweh quando da morte do corpo (Jó 34,14; Ecl 12,7). Neste último caso, interessante notar que a néfesh também podia se ausen-
tar do corpo (Gn 35,18; 1Rs 17,22; Sl 86,13). Assim, pode-se pensar no fato de que, ao deixar o corpo, tanto néfesh quanto rûaḥ poderiam existir separadamente dele. Isso corrobora para o fato de a existência humana continuar no pós-morte, de alguma forma, em um Mundo dos Mortos, com consciência e percepção.
Observa-se que o pensamento sobre o tema não se mostra unificado ao longo da Bíblia Hebraica. Levando-se em conta o contexto histórico-cultural em que os judeus antigos estavam inseridos, no qual os povos vizinhos davam valor igual ou até maior ao Mundo dos Mortos em relação aos vivos, conforme assinalado acima, é plausível pensar que houve, em determinado momento do judaísmo pré-exílico, influência direta ou indireta desses povos mais antigos no pensamento israelita acerca do tema, apesar de tal fato possuir difícil atestação.
No universo cósmico dos judeus antigos, havia três “reinos” distintos: um superior, um intermediário, e um inferior.111 Essa compreensão era compartilhada por outros povos antigos. O reino superior era o lugar do sol, da lua, dos astros, e da divindade, a qual não está sujeita à morte; nenhum mortal poderia ir até esse reino (há somente duas exceções na tradição vétero-testamentária: Enoque e Elias, o que será tratado adiante). O reino intermediário, que a narrativa da criação no Gênesis denomina “Terra”, era visto como um disco plano em cujas extremidades estavam as águas do caos ameaçador, contidas pela palavra de Iahweh; era nesse espaço que os seres humanos deveriam permanecer, juntamente com todas as ou- tras criaturas vivas; ao contrário do reino superior, a morte estava presente na rea- lidade deste reino. Já o terceiro reino era o inferior, abaixo da Terra, destinado aos
109 Cf. todas as ocorrências em BROWN, F. (Ed.). Op. cit. p. 924-926.
110 Cf. o estudo em WOLF, H. W. Op. cit. p. 67-77. A partir desses matizes básicos, outras conota- ções lhe são atribuídas: o termo tem a conotação de vitalidade em 1Rs 10,5, coragem em Js 2,11; 5,1, valor em Lm 4,20, vacuidade em Jr 5,13; Jó 7,7; Is 41,29, emoções de agressividade em Is 25,4 e ira em Jz 8,3 (cf. PAYNE, J. Barton. Op. cit. p. 1407 — apesar de alguns sentidos dados por este autor ao termo não corresponderem aos textos que ele cita).
111 Cf. NELIS, J. Infernos. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). DEB, p. 729.
mortos (o Sheol).
Esse reino inferior é compreendido de maneira diversificada ao longo da Bíblia hebraica. O Sheol é apresentado como um lugar escuro e desordenado (Jó 10,20-22), um lugar de silêncio (Sl 94,17; 115,17) e como uma cidade com portões (Jó 38,17 e, expressamente, em Is 38,10).112 Em geral, era o lugar para onde os mortos desciam e permaneciam em estado letárgico, inativo, incapazes de lou- var ou invocar Iahweh (pois este está ausente), sendo partilhado coletivamente.
O AT geralmente não enxerga o poder de Iahweh estendido até o Sheol. Entretanto, há exceções a essa visão geral;113 existem textos que afirmam enfati- camente que o Sheol pode ser alcançado pela presença de Iahweh (Jó 26,6; Sl 139,7ss; Am 9,2).114 Estes textos contradizem a noção de que Iahweh não se faz presente no Mundo dos Mortos. Além disso, em muitos textos Iahweh aparece como Deus dos vivos e dos mortos, do mundo presente e do futuro. Essa noção da presença de Iahweh no Mundo dos Mortos parece ser uma formulação contra a noção da existência de outro deus dominador do Sheol, conforme as concepções dos outros povos assinaladas acima. Assim, Iahweh é um Deus poderoso capaz de exercer esse poder também no Sheol.
Em alguns textos, também há a ideia de que os mortos conservavam algum tipo de consciência no Sheol (Jó 14,22; Sl 6,5). Muitos estudiosos associam o ter-
mo ao verbo cognato (“perguntar”, “inquirir”).115 Neste caso, o Sheol seria o
lugar em que os mortos são interrogados e julgados; para isso eles precisariam es- tar conscientes de seus atos em vida.
Segundo L. Harris, o termo Sheol aparece quase sempre em gêneros literá- rios mais poéticos, podendo ser sinônimo de (termo que possui o sentido de
sepultura, empregado 71 vezes no AT), havendo apenas oito exceções (as quais, entretanto, o autor não cita).116 No entanto, ao contrário dessa atestação, o que se
112 Cf. a tabela com as nuanças semânticas da palavra e as respectivas citações textuais em JOHNSTON, P. S. Shades of Sheol: Death and Afterlife in the Old Testament, p. 80: extremidade do cosmos; mundo de baixo (dos mortos: englobando local de aprisionamento e simplesmente lo- cal de existência no pós-morte); uso do termo personificado; local de onde se deseja libertação ou que se quer evitar; e local do destino de todos, quer justos ou ímpios.
113 VON RAD, G. Life and Death in the O.T. In: KITTEL, G. (Ed.). TDNT, p. 847, nota 109. v. 2.
114 No caso de Jó 26,6 é possível que a palavra hebraica Abaddôn, usada muitas vezes como sinô- nimo de Sheol e que algumas Bíblias em português traduzem por Perdição (cf. por exemplo a BJ), seja reminiscência de uma antiga divindade do Mundo dos Mortos.
115 Cf., por exemplo, BROWN, Francis (Ed.). HELOT, p. 982, onde é citada a possibilidade do sentido de “lugar para indagação” ao termo Sheol.
116 Cf. shâ’al. In: HARRIS, R. L. (Org.). DITAT, p. 1501-1505; aqui p. 1503. Além disso, esse autor, em sua definição de Sheol, estabelece um dualismo anacrônico cristão entre corpo e alma e
vê é o uso bastante difundido em toda a Escritura Hebraica.
No livro de Ezequiel, por exemplo, há uma sequência de palavras para mencionar o local destinado ao ser humano no pós-morte e, especificamente, ao cadáver: as nações inimigas de Israel são vencidas e precipitadas no Sheol (Ez
31,15-17); elas são lançadas também no (“túmulo”, “sepultura”) e na
(“sepultura”, “cova”), ambas com o mesmo sentido, em contraposição aos guerrei- ros valorosos que estão no Sheol (Ez 32,19 27);
no (“poço”, “cova”, junto com Sheol e como sinônimo deste, Ez 31,14-17);
no em contraposição ao Sheol (destinado aos mais valorosos, Ez 32,18.23-25.29-30); e na
no (“poço”, “cova”, junto com Sheol e como sinônimo deste, Ez 31,14-17);
no em contraposição ao Sheol (destinado aos mais valorosos, Ez 32,18.23-25.29-30); e na
(“terra profunda”, como sinônimo de Sheol, Ez 31,14.16.18; 32,18.24).
Em Is 14,3-23 o autor relata que a grandeza do rei da Babilônia foi precipi- tada no Sheol (v. 11) e o próprio rei também foi precipitado lá (v. 15), depois no
(“cova”, v. 19) e será lançado para fora do (“sepultura”, v. 19) e
da (“sepultura”, de novo ambas com o mesmo sentido, v. 20). Jó 24,19-20 relata vermes que se fartam com aqueles que estão no Sheol; entretanto, no con- texto o autor está discutindo a questão intrigante de que ímpios e justos têm o mesmo destino, independentemente dos seus atos em vida, pois ao morrer jazem no mesmo pó e têm os vermes por coberta (21,7-34).117 Segundo Eichrodt:
A sobrevivência do defunto depende, em certa medida, da sorte de seu cadáver. Isso é algo surpreendente quando associado com a crença num Sheol distante e suas imagens sumárias; mas o fato imediatamente é compreendido, se o que ori- ginalmente se considerou como mansão do morto foi o sepulcro. De fato, a ideia do Sheol aparece combinada com outra que vê no sepulcro a morada do morto, e também, segundo todas as aparências, esta é mais antiga. Não só se chama à tum- ba ‘morada do morto’ (Is 22,16), mas grande valor é atribuído ao ato de ser enter- rado ao lado dos membros de sua família (2Sm 17,23; 19,38; Gn 47,30; 50,25).118
entre retribuição aos maus e recompensa aos bons ao entender que “os textos estudados apresentam o quadro de um túmulo típico na Palestina: escuro, cheio de pó, com ossos misturados (...). As al- mas de todos os homens não vão para um único lugar. Mas todas as pessoas vão para a sepultura” (p. 1505). Parece que o autor acaba lendo os textos do AT sob a óptica do NT, fazendo uma leitura anacrônica daqueles textos, ignorando, assim, o contato dos antigos judeus com a cultura e as cren- ças dos povos vizinhos. Além da sepultura como tal, é evidente também a designação pelo termo Sheol de uma espécie de “mundo dos mortos” ou “mundo inferior”, em algumas ocasiões apresen- tando as pessoas em estado de consciência. A relação com sepulcro, última morada do ser humano, se deu nas origens da formação do pensamento acerca do Sheol (cf. NELIS, J. Infernos. In: VAN DEN BORN, A. (Ed.). Loc. cit.).
117 Em conformidade com a tradição judaica, a ideia de destino comum para todos os mortos pare- ce ter sido de difícil compreensão também para a Igreja Cristã Primitiva, a qual acabou entendendo o Sheol dividido em compartimentos, nos quais os santos das Escrituras Hebraicas ocupavam um lugar superior, de onde o Cristo os teria resgatado na sua ressurreição (cf. 1Pd 3,18-20; Ef 4,9-10).
118 EICHRODT, Walther. O mundo inferior. In: Teologia do Antigo Testamento, p. 667-683; aqui p. 669.
O fato de ter o corpo lançado fora da sepultura, ou comido pelos vermes (deixado de existir) pode significar o fim da própria existência do indivíduo no além.
Vale ressaltar que outro termo designado para o local do pós-morte no pré- exílio, em escala muito menor que o termo Sheol, é “Vale de Hinon” (em grego, Geena), o qual está associado a um local geográfico específico (Js 15,8; 18,16). No entanto, também nele não existe a conotação de uma existência futura; ao con- trário, aparentemente era um local de despejo de lixo, o qual também ficou conhe- cido como um lugar condenável pela adoração idolátrica que ali se praticava, quando inclusive crianças eram sacrificadas pelo fogo (2Rs 23,10; 2Cr 28,3; 33,6; Jr 7,31; 32,35).119 Somente no Período Helenístico o lugar será símbolo de local de tormento,120 e o NT o usará como metáfora para o Hades.
Dado o exposto, fica claro que não existe a noção, ao menos no período do Primeiro Templo, de céu ou inferno, de ressurreição com julgamento final e pos- terior punição para os maus e recompensa para os justos.121 No Período Pré- exílico o destino dos mortos era normalmente designado pela palavra Sheol, quer fossem eles considerados bons ou maus. A morte colocaria todos sob o mesmo status.122
Quanto ao Sheol como lugar, mesmo que haja algumas variantes, o ponto comum parece ser a compreensão dele como um Mundo Inferior, a exemplo dos povos vizinhos, guardando as respectivas especificidades. Segundo Martin- Achard, “o mundo dos mortos, o Sheol dos hebreus, é totalmente comparável ao Hades dos gregos, e ao Aralu dos assírios-babilônios”.123
Já no pós-exílico, dados os influxos político-culturais com outros povos, as ideias da escatologia judaica sofrem modificações consideráveis, especialmente às relativas ao pós-morte.
119 HALLOTE, Rachel S. The Biblical Origins of Hell and the Devil. In: Death, Burial, and After- life in the Biblical World, p. 123-135; aqui p. 126. Esta autora sugere que a designação desse lugar às vezes pode ser traduzida como Vale do Grito Estridente (Ibidem). Além disso, ela afirma que o Sheol, na Bíblia Hebraica, era um lugar físico, situado justamente embaixo da terra de Israel (Ibi- dem, p. 128).
120 Cf. SEGAL, Alan F. Life After Death, p. 135.
121 Às vezes parece se entender que o Sheol trazia algum tipo de punição aos injustos, ao passo que os justos apenas o visualizariam em tempos de aflição e desgraça (essa é a opinião de JOHNSTON, Philip S. Shades of Sheol: Death and Afterlife in the Old Testament, p. 81-82). Entretanto, se há alguma ideia de punição no Judaísmo do Primeiro Templo, essa seria simplesmente o corte das relações interpessoais e do contato com Iahweh, assinados supra.
122 Cf. TABOR, James. The Future. In: SMITH, Morton; HOFFMANN, R. Joseph (Ed.). What the Bible Really Says, p. 33-51; aqui p. 35.
123 MARTIN-ACHARD, Robert. Da morte à ressurreição segundo o Antigo Testamento, p. 54.
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