Quem? Quando? Onde? Por quê / Para quê?
Com essas perguntas tentaremos responder. Antes de entrarmos em cada livro, é preciso ficar bem claro o seguinte: o estudo científico sobre a bíblia, mais especialmente a Historiografia Bíblica, é uma coisa séria. O MÉTODO HISTÓRICO-CRÍTICO é uma coisa séria. É científico. Você pode ter sua Fé, acreditar no que quiser, é seu direito. Mas a ciência, a academia, os pesquisadores e etc tem o direito de examinar os textos, as doutrinas e documentos e deles extrair dados e informações. Se essas informações contradizem os dogmas e crenças... Fazer o quê? Paciência. Você decide se vai se deixar levar pela emoção e por crenças limitantes psiquicamente enraizadas, ou se vai rachar por dentro seus condicionamentos e se abrir ao conhecimento. A escolha é sua.
Para isso, vou postar aqui trechos de um belo texto de um professor Doutor em Teologia sobre os métodos de leitura bíblica, focado nos métodos que priorizam o autor do texto, que é o interesse aqui. O texto não é meu, fiz tão somente pequenas alterações:
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1º) Métodos que priorizam o autor do texto
Numa primeira abordagem, o interesse de pesquisa dos exegetas foi o autor do texto: sua intenção, o que ele queria dizer com seu escrito no contexto em que ele se encontrava. Essa pesquisa muito contribuiu para a compreensão das Sagradas Escrituras. São os chamados métodos histórico-críticos, tão conhecidos dos teólogos, especialmente dos exegetas – aqueles que se debruçam sobre o texto bíblico para destrinchá-lo e melhor explicá-lo. Quem já fez teologia pelo menos já ouviu falar desses métodos. Mas eles não são de todo desconhecidos dos não-teólogos. Vamos lembrá-los:
a) Crítica textual: o objetivo desse método é reconstituir o texto no estado original do momento em que ele foi publicado. Nós não temos os originais da Bíblia. Temos diversos manuscritos (pergaminhos e papiros), mas que são cópias de cópias de cópias… Na hora de copiar o texto, o copista fez modificações. Ele pode ter modificado o texto intencionalmente, por exemplo, para torná-lo mais claro. Ou pode ter modificado sem querer, por exemplo, por descuido, pois já estava cansado de tanto copiar textos à luz de velas e aí saltou uma frase, ou colocou sem querer no lugar outra coisa que estava em sua cabeça. É bom lembrar que tudo era feito manualmente, num trabalho minucioso e delicado, sem as técnicas modernas, sem a ajuda da imprensa. Cada texto era copiado artesanalmente, como se pinta um quadro ou se faz um trabalhoso bordado. Num trabalho artesanal, podemos fazer a mesma obra, mas ela nunca sai igualzinha. Então, os estudiosos ficam comparando os manuscritos que nos sobraram. É como se pegassem uma lupa ou um microscópio para melhor ver o que está desenhado na obra. Aí aparecem as diferenças. E além de compararem manuscritos bíblicos entre si, comparam também os manuscritos com outros textos antigos em que as citações bíblicas aparecem, por exemplo, num manual de liturgia, num escrito de algum antigo Pai da Igreja (os Santos Padres), etc.
A crítica textual não está interessada no sentido do texto, na mensagem que está veiculada naquele registro. Ela apenas procura saber até que ponto o texto bíblico que temos em mãos é mesmo o texto que foi escrito lá no começo. Então, a pergunta que norteia essa pesquisa é: “O texto que temos hoje em mãos é mesmo o que o autor escreveu originalmente?” Ou ainda: “Posso mesmo confiar nesse texto que hoje estou lendo?”. Note que o acento está sobre o autor, sobre o que ele escreveu. Recuperar isso não é tarefa fácil. E há regras para fazer essa pesquisa. São regras rigorosas, baseadas nas ciências modernas.
b) Crítica histórica: o objetivo desse método é, tanto quanto possível, reconstruir os fatos narrados com a máxima objetividade histórica. Ou seja, a tentativa é recuperar a historicidade do fato narrado pelo autor, até porque se pensou que a Bíblia fosse um livro de história, um livro de relatos de fatos acontecidos na vida do povo de Israel durante sua história. Essa pesquisa já foi muito importante. Agora, nem tanto mais. A Igreja compreendeu que a Bíblia apresenta um relato teológico dos fatos e não um relato histórico. E essa verdade teológica que a Bíblia narra vem na embalagem dos diversos gêneros e formas literários. Essa descoberta mudou bastante a abordagem bíblica, o jeito de lidar com os textos.
A pergunta principal da crítica histórica é a seguinte: “Quando o autor relata um evento, podemos acreditar que de fato isso aconteceu? As palavras escritas na bíblia foram mesmo ditas por Jesus e por outros personagens bíblicos?”. Para responder a essa interrogação, o pesquisador confere os relatos bíblicos com os testemunhos arqueológicos ou com documentos da época. Ele procura ver se há registros na história que confirmem aquela narrativa. Além disso, ele confere os textos da Bíblia, comparando-os para ver se são coesos ou se entram em contradição. Note que o acento continua sobre o autor: “O que ele escreveu é verdade ou não? O que ele escreveu aconteceu?” Recuperar isso também não é nada fácil. Há regras, critérios estabelecidos para fazer essa pesquisa.
c) Crítica literária: o objetivo desse método é descobrir o que o autor quis dizer quando escreveu o texto. Para isso, levam-se em consideração as circunstâncias em que o texto foi escrito e o tipo de literatura que o povo produzia naquele tempo. Esse estudo foi muito importante para desvendar certos enigmas de alguns textos bíblicos, por exemplo, quem é o autor do texto, se é um autor só ou se o texto foi composto por várias mãos, etc. Foi graças a essa pesquisa que a gente conseguiu penetrar mais no Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia), que a gente descobriu que a famosa Carta de Paulo aos Hebreus não foi escrita por Paulo, assim como muitas outras a ele atribuídas. Foi aí que a gente descobriu a chamada pseudo-epigrafia: a atribuição de um escrito a outra pessoa, para homenagear alguém, para dar mais credibilidade ao texto ou até para remetê-lo a uma origem mais antiga e mais confiável.
A pergunta que norteia esse trabalho é a seguinte: “Por quem, onde, como, quando, para quem, por que esse texto foi escrito?”. Ou ainda: “O que o autor quis dizer quando relatou essa história nessa dada época?” Veja que de novo a pergunta gira em torno do autor: quem escreveu, como escreveu, etc. Para fazer esse trabalho, o estudioso da Bíblia busca fontes arqueológicas, literárias, arquivos e registros da época. Ele vasculha a própria Bíblia para ver os sinais que estão nela presentes. Por exemplo, ele estuda o estilo do texto, o seu vocabulário e o pensamento ali registrado, comparando-os com outros textos da época. Um trabalho também muito árduo e penoso, que exige muita dedicação e critérios muito sérios. Para isso, o estudioso conta também com a ajuda de diversas ciências modernas.
d) Estudo da Tradição: o objetivo desse estudo é saber como se formou a memória que deu origem ao texto. Todo texto bíblico, antes de ser escrito, foi vivido, transmitido, interpretado. Então, é importante saber qual era o interesse das pessoas ao conservar essas histórias, o que elas queriam transmitir, se havia grupos que pensavam diferente, etc. Essa é, então, uma preocupação com a transmissão literária do texto. Esse tipo de investigação ajuda a mergulhar melhor no texto, porque dá a oportunidade de conhecer a tradição na qual ele nasceu, seu contexto, a realidade de fé e de vida que o cercava. Descobrimos que um texto vem de um lugar e outro vem de outra região; que um grupo tinha um tipo de tradição teológica e outro grupo tinha uma teologia um pouco diferente. É o caso das diversas tradições presentes, especialmente, no Pentateuco: Tradição Javista, Tradição Eloísta, Tradição Deuteronomista, Tradição Sacerdotal.
A pergunta que norteia a pesquisa é: “Que tradição conservou esse texto? Como esse grupo vivia sua fé? Que teologia esse grupo defendia? Qual imagem de Deus está por trás desse texto?”. Veja que tudo ainda gira em torno do autor: pensa-se na tradição à qual ele pertencia e que ele faz questão de conservar. Para saber isso, o pesquisador estuda muito: compara textos, pesquisa as teologias antigas em outros registros, procura conhecer os povos vizinhos que se relacionavam com o povo de Israel, seu jeito de crer, suas religiões, etc. Uma tarefa nada fácil e para a qual a pessoa deve ser muito bem preparada.
e) Estudo dos gêneros ou das formas: essa investigação tem como objetivo saber o gênero literário a que pertencem os livros da Bíblia. Há diversos gêneros literários na Bíblia: um texto foi escrito em forma de leis, outro de poesia, outro de história, outro de carta, outro de apocalipse e ainda de profecia, etc. E, dentro dos livros, há diversas formas literárias diferentes. Há, por exemplo, dentro de um livro profético, as chamadas invectivas, os oráculos, os relatos, as cartas, os gestos proféticos, etc. Se a gente sabe disso, lê o texto com mais critério. Ninguém lê uma receita de bolo como se lê um conto de fadas. Nem lê uma carta como se lesse uma constituição do país. E ninguém lê uma poesia, como se fosse uma bula de remédio. São gêneros e formas literárias diferentes. Quando a gente lê uma poesia, já sabe que é poesia. E poesia tem regras próprias, bem diferentes do código de trânsito, por exemplo.
A pergunta que norteia essa pesquisa é clara: “Que gênero literário é esse que o autor escolheu para nos deixar essa mensagem? Que forma literária é essa que ele utilizou para fazer teologia e nos relatar sua experiência de Deus?”. Veja que a preocupação ainda é o autor: sua forma de escrever, seu artifício literário, suas escolhas literárias. O resultado dessa pesquisa orienta a leitura do texto: mostra se ele deve ser lido como um fato acontecido ou como um relato cheio de nuances próprias, se deve ser tomado como um relato biográfico ou como um relato catequético. Para fazer essa investigação, o pesquisador também estuda muito. Ele deve conhecer bem as línguas bíblicas, comparar textos da Bíblia com outros livros da época, saber da cultura e da literatura do povo da Bíblia, das particularidades da linguagem do povo e do seu jeito de escrever. O investigador tem muito trabalho pela frente, mas conta também com o auxílio das ciências que envolvem principalmente a linguística e a literatura.
f) Estudo da redação: o objetivo desse método de pesquisa é fazer relação entre a tradição que deu origem ao texto e a redação final do texto; ou seja, entre a forma como o relato foi transmitido e a forma que ele ganhou quando se tornou texto, pois os textos foram escritos bem depois de os relatos e as tradições terem surgido. Só para exemplificar: os Evangelhos foram escritos de 40 a 60 anos depois da morte de Jesus; a história das origens – no Gênesis – foi escrita no tempo do Exílio; a história de Rute que relata sobre o tempo dos juízes (mais ou menos 1100 aC) foi escrita em torno do ano 440 aC. Essas elaborações teológicas surgiam e eram conservadas oralmente. Só depois eram cristalizadas na forma de escrita.
A pergunta que norteia a pesquisa é: “Que relação tem esse texto que o autor escreveu com a história que ele viveu e recebeu na sua comunidade? Será que o autor reelaborou a tradição recebida, colocando-a numa nova forma? Ou teria ele preservado a tradição tal qual recebida, sem nenhuma reelaboração?”. Veja que de novo o autor é o centro. O que interessa é o que ele fez. Para se emaranhar nessa pesquisa, o estudioso da Bíblia tem um trabalhão também. Ele deve ser possuidor de muitos conhecimentos para estabelecer relações tão complexas entre tradições e textos diversos.
Bom, ainda bem que existe muita gente pesquisando tudo isso e nos ajudando a entender melhor a Bíblia. São os exegetas – estudiosos que geralmente são conhecedores das línguas bíblicas, da geografia e da história da época, da organização social do povo daquele tempo, da literatura de Canaã e dos povos vizinhos, da arqueologia e de tantas outras ciências – e que se põem a dissecar o texto, como se disseca um cadáver. A teologia usa os métodos e os recursos da ciência moderna para fazer a investigação bíblica. E o resultado é um texto todo dissecado, conhecido nas suas entranhas, desmitificado, quase sem mistérios e estranhezas. Um trabalho importante e de grande valor, pois a exegese – o que fazem esses pesquisadores – dá elementos para que o texto bíblico não seja entendido na sua literalidade, evitando o fundamentalismo e tantas outras abordagens equivocadas do texto.
Numa comparação bem simples, poderíamos dizer que o exegeta faz com o texto o que uma pessoa poderia fazer com um bom bife no prato: corta-o da maneira mais correta possível, com os melhores instrumentos, segundo as regras da etiqueta, para que seu paladar não seja alterado. E depois ainda explica como fez, o que fez, por que fez, e ensina outros a fazerem o mesmo. E critica quem fez diferente: argumenta, prova, discute e debate. Cria teorias e hipóteses. Tudo muito bom e útil. Mas, nem sempre depois de cortar o bife, esse precioso prato é degustado com prazer. O bife torna-se objeto de estudo e não um alimento saboroso que deve ser comido com calma na companhia de bons amigos. Todo o esforço do exegeta, mais que válido e precioso, nem sempre é aproveitado no final. E pior, nem todo mundo tem as técnicas, os recursos, as ferramentas e os conhecimentos necessários para fazer trabalho tão minucioso. Isso é coisa para especialistas, doutores, quase sempre religiosos e padres que dedicam sua vida a esse árduo trabalho e que assumem essa tarefa como um ministério, um dom colocado a serviço das ciências bíblicas para o bem da Igreja.
Não podendo nós, pobres mortais, dar conta de tudo isso, agradecemos a quem já destrinchou os textos para nós e vamos às fontes que eles nos deixaram. Há boas traduções da Bíblia que levam em conta essas pesquisas e nos apresentam suas considerações em formas de notas de rodapé e na própria versão que nos oferecem. A Bíblia de Jerusalém e a TEB (Tradução Ecumênica da Bíblia) são bons exemplos desse esforço. Além delas, a Bíblia da CNBB que, apesar de carecer de uma séria revisão, traz ainda outras vantagens: notas ricas e confiáveis, ótimas introduções aos livros bíblicos e uma linguagem popular e facilitada, que não adultera o texto, nem veicula ideologias.
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E como começou o estudo histórico-crítico da bíblia? Tudo começa com a Reforma Protestante. Os luteranos alemães serão os grandes desenvolvedores do método. Esse artigo, Método Histórico-Crítico: um olhar em perspectiva explica o desenvolvimento, da revista Estudos Teológicos, explica bem sobre. Estudos Teológicos é um periódico semestral do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Faculdades EST (Faculdade vinculada à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil) publicada nos formatos impresso e eletrônico. A revista publica textos inéditos e revistos em português, espanhol, alemão e inglês de pesquisadores/as nacionais e estrangeiros/as na área de Teologia ou Ciências da Religião, eventualmente em interface com outras áreas do saber no âmbito das Ciências Humanas e Ciências Sociais Aplicadas, atuando como um canal de socialização do conhecimento teológico e de pesquisas que apresentem temas relevantes à teologia e à religião.
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Origens
Por conta da centralidade atribuída à Escritura no movimento da Reforma, pesquisadores atribuem os primeiros impulsos relacionados com uma análise histórica dos textos bíblicos necessariamente a esse movimento. Além de desencadear uma forma diferente de acercamento ao texto, diferente do que vinha sendo praticado até então, o movimento da Reforma também desencadeia uma compreensão da Escritura que iria determinar todo um desenvolvimento posterior de leitura e interpretação da mesma.
Tanto o estabelecimento de critérios para a interpretação bíblica como a perspectiva crítica ao próprio texto bíblico adotada pelos reformadores descortinam uma forma nova de relação e tratamento da Escritura. A Reforma, ao postular que a Escritura é a única fonte de revelação, “coloca-a como centro das atenções e desencadeia com isso o surgimento da ciência bíblica. Tal concentração na Escritura leva, por outro lado, a um posicionamento crítico frente à Escritura que desembocará na análise histórico crítica da bíblia”.
Como é próprio de uma reflexão teológica inserida na realidade a partir de onde adquire visibilidade, a mudança é uma constante e necessária. Nesse sentido, também o surgimento do método histórico-crítico está relacionado com as mudanças que ocorrem na sociedade e no estudo da Bíblia.
De forma direta, “o método histórico-crítico é uma forma de tornar a interpretação bíblica compatível com o mundo e o modelo científico da época”. Para Volkmann, as “descobertas do homem, cuja mente não cabia mais na prisão dos dogmas eclesiásticos, levam à revolução na cosmovisão e a uma sempre maior autonomia do pensamento humano capaz de desenvolver mais e mais a ciência e levar a novas descobertas”.
Na medida em que a compreensão da natureza e da história não está mais condicionada pela normatividade da Bíblia, uma nova racionalidade emerge como paradigma. Contudo, esse referencial, resultante de uma nova cosmovisão gestada a partir do século XVI, irá impactar o estudo e a pesquisa da Bíblia somente dois séculos depois.
Do ponto de vista histórico, além da inflexão provocada na leitura e estudo da Bíblia pelo movimento da Reforma, a contribuição dos ideais renascentistas, com sua volta às fontes (recursos ad fontes), e mais tarde, do próprio movimento iluminista e o papel desempenhado pela ciência, são decisivos para compreender o que acontece com a Bíblia.
Como nos diz Adolfo Sanchez Vasquez, acerca do período moderno, “na nova sociedade consolida-se um processo de separação daquilo que a Idade Média unira:
a) a razão separa-se da fé (filosofia, da teologia),
b) a natureza, de Deus (ciências naturais, dos pressupostos teológicos),
c) o Estado, da Igreja,
d) o homem, de Deus”.
Nesse sentido, o método histórico-crítico tem na sua origem a influência de um contexto histórico em transformação, particularmente do racionalismo na filosofia e do deísmo na teologia.
Segundo Lopes: “Da Renascença, o método histórico-crítico absorveu a ênfase no humano em detrimento do divino. Do ceticismo francês, a dúvida como pressuposto dogmático e metodológico. E do Iluminismo, a razão em detrimento da revelação”. Como impulsos decisivos para uma mudança de paradigma na interpretação bíblica cabe mencionar a influência de pensadores deístas como Jean Turrettini e Johann Ernesti, que sugerem que o texto bíblico deva ser interpretado como a racionalidade humana costuma interpretar qualquer outro livro.
http://revistas.est.edu.br/index.php/ET/article/view/265/215
Diante disto, é preciso saber que:
1 - O texto do Antigo Testamento não foi escrito para nós. Ele foi escrito especialmente para um grupo de pessoas que NADA tem a ver conosco. Por exemplo, a historia do chamado de Abraão para mudar de país (Gênesis 12,1-3) foi construída para convencer os exilados libertos da Babilônia a seguir as ordens de Ciro e se mudar para a província persa de Yehud. O relato da Criação de Gênesis (Gênesis 1,1) segue os outros relatos mitológicos do Oriente Próximo: é um mito cosmogônico de origem da nação, para fundar e fundamentar uma Ideologia Estatal. Em outras palavras, o relato da Criação de Gênesis é sobre a criação de Jerusalém, pois os exilados centralizaram o governo da nação em torno de si (teocracia) e escolheram Jerusalém como capital e centro do culto agora uniformizado. A oferta de Caim (Gênesis 4,1-5) foi rejeitada porque Caim representa os judaítas que permaneceram no país, pois somente a ELITE foi exilada. Os pobres ficaram e ocuparam as terras produtivas e, agora, os sacerdotes ao retornar precisaram de usar toda força, ideológica ou física, para convencer esses povos que eles eram idólatras e ignorantes e somente os sacerdotes vindos da Babilônia eram verdadeiros judaítas e israelitas. Trata-se de um programa de lavagem cerebral para camponeses, basicamente etnocídio.
2 - Sem saber o real significado das palavras em hebraico é impossível ler realmente o Antigo Testamento. Exemplo: Genesis 1,1 diz na tradução "No princípio criou Deus o Céu e a Terra" mas essa tradução é errada. O correto, em hebraico, é "No Começo do criar, criaram os Deuses Lá-tem-água e Terra Seca". O texto, além de possuir resquício politeísta, apresenta a geografia clássica do mundo antigo, em que se acreditava que a Terra era um prato quase plano cercado de águas paradas e infinitas acima e abaixo - todas as mitologias antigas do oriente próximo acreditavam nisso - egípcia, babilônica, suméria, assíria, etc. Céu em hebraico é SHAMAYIM, que vem de MAYIM (águas) e o texto diz HASHAMAYIM, ou seja, LÁ TEM ÁGUA. Um crente com bíblia debaixo do sovaco levando pra uma seita qualquer é uma "heresia" (ou melhor, ABOMINAÇÃO) e só pode sair burrice e ignorância disso. NÓS NÃO PODEMOS LER O ANTIGO TESTAMENTO SEM SABER HEBRAICO. Isso é apropriação cultural da forma mais estúpida que pode haver, não se dar ao trabalho nem de conhecer a mentalidade geográfica dos povos antigos...
Você pode até interpretar o texto, extraindo dele coisas e lições para sua vida, mas daí não é o texto: É VOCÊ! Elohim não é a Trindade, os cristãos inventaram isso adulterando o texto e sem saber o real significado de Elohim em hebraico (os Deuses)! Emanuel não é Jesus, os cristãos inventaram isso, sem saber que o texto de Isaías 7:14 jamais poderia ser uma profecia sobre Jesus mas, sim, um relato sobre o rei Ezequias! ALMAH significa Donzela, não virgem, e donzela é uma moça casada ou não, deflorada ou não. Usar esse texto para "provar" o nascimento virginal de Jesus por Maria é muita ignorância ( o relato evangélico é mais uma inspiração assimilada dos gregos: Deuses se relacionando com Virgens Puras e tendo filhos que se tornam Heróis semi-deuses e modelos de conduta). Erros de tradução, propositais ou não, fizeram estragos desde o começo do cristianismo.
Entenda, cristão "bíblico": a bíblia não foi feita para você. Leia e a estude como curiosidade, apenas, apreciando seu texto, mas saiba que ela nunca foi escrita nem sequer para os judeus de hoje, quanto mais para uma seita recém-criada por um judeu que se desviou tanto do ensino tradicional de sua cultura que chegou a afirmar que seria Rei de Jerusalém e iria reformar todo o judaísmo, como tantos outros candidatos a messias que existiam em seu tempo (eis o Cristianismo). Ele só poderia ser assassinado mesmo, pois enfrentou o sacerdócio de Jerusalém e o Império Romano.
É um crime ficar lendo o Antigo Testamento sem considerar a origem e o motivo do texto. Hoje a Historiografia Bíblica chegou à mesma conclusão que o mestre gnóstico MARCION (séculos 1 e 2), o primeiro a fundar um cânon para o Novo Testamento. Enquanto Marcion dizia que o Antigo Testamento era obra do diabo e deveria ser rejeitada, os hoje cientistas bíblicos descobriram que o texto não pode ser apropriado por outras culturas, pois foi escrito à mão minuciosamente para objetivos práticos e muito bem delimitados da história antiga do mundo e tem muito mais de IDEOLOGIA POLÍTICA e ENGENHARIA SOCIAL do que espiritualidade, quase uma Constituição Jurídica moderna, porém Teocrática e Totalitária. Em outras palavras: não é possível fazer interpretação teológica do Antigo Testamento pois, quando foi concebido, o conceito de "teologia" (que é grego e pagão, vem de discutir sobre os deuses, suas origens e poderes) NÃO EXISTIA e o texto não foi feito para isso. Portanto, pare de ler a bíblia. Ou, se quer ler, leia do modo correto, sabendo o que ela é e para quê ela foi feita!
3 - É preciso saber a história de Israel e Judá para entender como a bíblia foi escrita. Cada trecho ou parte exala uma linguagem e composição de determinado período e local, ajudando a compreender, junto com a arqueologia, a real história das origens dos textos. Por isso a parte 2 será sobre a História de Israel.
4 - Os ateus que dizem que a Bíblia foi escrita por homens ignorantes da idade da pedra no meio do deserto a 4.000 anos atrás são tão ignorantes quanto religiosos que acreditam que a Bíblia foi escrita ou inspirada por Deus. Também são ignorantes os que dizem que a bíblia plagiou os mitos antigos da Babilônia e Egito. Errados todos eles. Foi escrita pela Elite de Judá, pessoas ricas e alfabetizadas durante o Exílio Babilônio (586 a 531 antes de Cristo). Portanto, não são textos ridículos e toscos de eras antigas, mas textos muito bem elaborados, por isso perduraram tanto e são tão mal compreendidos. Outro ponto é que o que a bíblia faz é ressignificar esses mitos, não se tratando de plágio mas, sim, de uma assimilação modificante. Num primeiro momento, a Fonte Sacerdotal vai fazer um adaptação Henoteísta de vários textos politeístas de origem diversa, acrescentando seu ponto de vista e criando a sua obra conhecida como o livro do Levítico, para depois os Redatores Finais editarem Monoteisticamente tudo, dando os contornos atuais do Pentateuco.
5 - A Torá (Pentateuco) foi escrita toda baseada no que os autores conheciam da literatura do chamado Crescente Fértil, muito especialmente a Babilônica. Os mitos e contos de Egito, Suméria, Acádia e Assíria são fontes importantes do Pentateuco, mas os da Babilônia são muito mais incidentes. Todo o Antigo Testamento, especialmente o Pentateuco, e é indiscutível e aceito por toda a academia e ciência como fato absoluto, é uma releitura dos mitos da Babilônia, vários e vários mitos, como os conhecidos do Enuma Elish, o Épico de Atrahasis, a Epopéia de Gilgamesh e outros. Os mitos Cananeus obviamente serão usados, pois os autores da bíblia são cananeus, são Israelitas e Judaítas, que não passam de povos cananeus de religião predominantemente cananeia antes de adotarem o Monoteísmo Zoroastriano na Babilônia.
6 - Os textos bíblicos não são uma coleção de mitos, como hoje temos uma coleção de mitos gregos em livros que podemos ler. Eles não foram feitos para serem lidos como literatura! Nem como entretenimento! Muito menos são uma obra pública para demonstrar que Judá e Israel também tem mitologia, ou também tem um mito nacional. Não se trata de uma demonstração de poder. Os textos bíblicos surgiram quando NÃO havia uma nação. Foram escritos durante e após o Exílio para fundar e estruturar um país novo que estava só começando a ser construído. Somente os sacerdotes, escribas e a nobreza liam e aplicavam o texto.
7 - Algo muito parecido aconteceu com a composição do Novo Testamento. Mas, no Cristianismo, o começo era uma confusão total. Havia CENTENAS de textos e grupos separados que se chamavam de cristãos e só quase 400 anos depois é que os Concílios da Igreja Imperial decidiram quais textos eram permitidos, excluindo todos os outros. Hoje a historiografia sabe que o Evangelho de Marcos, dos sinóticos, foi o primeiro a ser escrito e o foi a partir de uma coleção de ditos de Jesus que circulava, chamada de Fonte Q, a mesma fonte da qual vieram os ditos de Jesus no Evangelho de Tomé, isso mesmo, o Evangelho Gnóstico. O Evangelho de Mateus foi escrito a partir de Marcos e a pessoa que escreveu "Mateus" pegou o Evangelho "de Marcos" e acrescentou um monte de coisas, algumas contradizendo e refutando doutrinas de Marcos. O Evangelho de João fazia parte de uma tradição chamada Joanina de cristãos isolados de todos os outros, comunidade que só depois foi assimilada por uma igreja hierárquica em formação. O Evangelho de Lucas foi escrito baseado nos ensinos de Paulo para combater a igreja de Jerusalém que tinha conhecido Jesus pessoalmente, quando eles, que escreveram este livro, nunca tinham conhecido Jesus mas queriam ter poder sobre todo o cristianismo e usavam para isso a autoridade de Paulo ( que nunca viu Jesus), escrevendo um Evangelho pra atacar outra igreja (comunidade) e defender a sua! Era uma confusão, Mateus, Marcos e João nunca escreveram evangelhos - eles sequer existiram; os textos são frutos de comunidades e seitas que disputavam e estavam em desenvolvimento de seus dogmas. Óbvio, essas comunidades entravam em conflito e, para defender sua comunidade, passaram a escrever livros pseudepígrafos para se impor e condenar as outras seitas.
A bibliografia que eu me baseio, somente 3 livros, é a seguinte:
- Israel e seu Deus. Felix Gradl e Franz Josef Stendebach. Edições Loyola.
- Introdução ao Antigo Testamento. Erich Zenger e outros. Edições Loyola.
- O Pentateuco. Felix Garcia Lopez. Editora Ave Maria.
As postagens serão o resumo do resumo do resumo do resumo desses e outros textos. O assunto é muito grande, muito estudado, tem muita bibliografia. Para quem quer aprofundar, pode usar outros textos que eu indico:
- A criação e o diluvio segundo os textos do Oriente Médio Antigo. Documentos da Bíblia 7. Paulus.
- Introdução à leitura do Pentateuco: chaves para a interpretação dos primeiros cinco livros da biblia. Jean Louis Ska. Loyola.
- Antigo Testamento: Uma introdução. Rolf Rendtorff. Editora Academia Cristã.
E muitos outros.
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NA PARTE 2: A HISTÓRIA DE ISRAEL E JUDÁ!
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