As expressões literárias básicas do gênero apocalípticoe seus paralelos antigos.
D. S. Russel afirma que o gênero apocalíptico “era, essencialmente, um fenômeno literário que emergiu no Judaísmo durante o domínio do rei selêucida Antíoco Epífanes (175-163 a.C.)” (cf. RUSSELL, 1978, p. 3).
(...)
A expressão “apocalíptica” é usada, além da função adjetiva, também como substantivo coletivo, designando tanto a “literatura apocalíptica” como o conjunto de ideias que a produziu, ocasionando confusão no debate apocalíptico no correr dos anos. John Joseph Collins apresenta três razões desse uso indistinto do termo: o uso do nome “apocalipse” para designar um amálgama de elementos literários, sociais e fenomenológicos; a falta de clareza no reconhecimento e na classificação desse gênero na Antiguidade (rotulado como gênero somente a partir do Apocalipse neotestamentário); e o fato de os próprios apocalipses judaicos abrangerem várias formas literárias distintas, como visões, preces, legendas, testamentos e outros (COLLINS, 1984, p. 2-3). Klaus Koch define o termo genérico “apocalíptico” como “especulação que – frequentemente em forma alegórica (...) – pretende interpretar o curso da história e revelar o fim do mundo” (KOCH, 1972, p. 33). Ele trouxe certa clareza a essa confusão terminológica; o “apocalipse” trata-se de um “macrogênero”, do qual se faz necessário distinguir os diversos tipos literários que o compõem. Distingue “apocalipse” (tipo ou gênero literário) e “apocalíptica” (“movimento intelectual”). Ele tomou como referência os escritos apocalípticos compostos em hebraico ou aramaico (ou que mostrassem claramente essa influência), os quais identificou como Daniel, 1 Enoque, 2 Baruque, 4 Esdras, o Apocalipse de Abraão e o Apocalipse de João (KOCH, 1972, p. 18-35).
(...)
Entretanto, esse “movimento” se expressa de diversas maneiras como resultado de condições históricas que se modificam, não sendo possível, assim, dar uma definição formal cognitiva do apocalipsismo; abrange diferentes temas, tradições e gêneros, sendo que “o resultado é com frequência uma coleção de conceitos e motivos de alta natureza eclética e caracterizada pelo esotérico, bizarro e arcano” (HANSON, 1976, p. 30; HANSON, 1979, p. 433). Hanson acrescenta ainda que esses movimentos apocalípticos podem ser de dois tipos: um grupo marginalizado ou oprimido dentro de uma sociedade, ou uma nação inteira sob o jugo de um poder estrangeiro (como em Daniel 7-12) (HANSON, 1979, p. 434-435). A base do apocalipsismo é a alienação (exclusão e opressão), e a resposta a essa situação é a adoção da perspectiva da escatologia apocalíptica. Os apocalipsistas judeus antigos criaram um novo “universo simbólico” em resposta à experiência de alienação e opressão que viviam, subjugados às autoridades políticas e religiosas de sua época. Para Gerhard Von Rad, a apocalíptica não representaria um “gênero” específico do ponto de vista literário. Pela história das formas ela é, na verdade, um mixtum compositum que levaria a uma pré-história muito complexa do ponto de vista da história das tradições (VON RAD, 2006, p. 738). Von Rad aceita que a literatura apocalíptica em Israel recebeu influências estrangeiras, especialmente a iraniana; mas assevera que essa influência já estaria presente na sabedoria israelita desde a época de Salomão, sendo mais acentuada no Império Persa, principalmente em relação às ideias cosmológicas de caráter claramente escatológico.
(...)
Dado todo o exposto, podemos verificar a falta de clareza e a diversidade de opiniões no tratamento do tema entre esses principais autores. Apesar disso, podemos distinguir o apocalipse enquanto gênero e a apocalíptica enquanto mentalidade, deixando a escatologia como um tema à parte, já que não é um tema exclusivo da apocalíptica nem um tema que, embora muito recorrente, necessariamente nela apareça. A definição mais apropriada do gênero, ao que nos parece, é a dada por Collins, citada acima. Podemos asseverar, então, clareando tudo o que foi exposto acima, que apocalipse trata-se de um gênero literário, e apocalíptica trata-se de uma mentalidade, uma forma de pensar específica, cuja expressão se dá por diversas formas literárias.
Como especificação do gênero literário apocalíptico, conforme apresente mais marcadamente o aspecto temporal ou geográfico (o mundo sobrenatural, conforme definição acima), Collins sugere como significativa a distinção entre os apocalipses “históricos” (Daniel, Livro dos Jubileus, 4 Esdras, 2 Baruque e, no 1 Enoque, o Livro dos sonhos e o Apocalipse das semanas) e os apocalipses de viagens a outro mundo (2 Enoch, 3 Baruque, o Testamento de Abraão, o Apocalipse de Abraão, o Apocalipse de Sofonias, o Testamento de Levi 2-5 e, no 1 Enoque, o Livro das sentinelas( 1Enoch 1-36), o Livro de astronomia (1Enoch 72-82) e Livro das Parábolas ou Similitudes de Enoch (1Enoch 37-71) (COLLINS, 1984, p. 6-19).
Segundo ele, esses dois são os tipos básicos do gênero apocalíptico. No primeiro, é feita uma inspeção da história enquanto conducente a uma crise escatológica sem referência à viagem a outro mundo; no segundo, estão aqueles que descrevem viagens para outro mundo e podem se referir à inspeção histórica, a fenômenos cósmicos ou à sorte do indivíduo após a morte.
Os apocalipses históricos podem ter como meio de revelação a visão de um sonho simbólico (como em Daniel 2 e 7), a epifania, um discurso angelical, um diálogo de revelação, midraxe, pesher, e relato de revelação. O conteúdo da revelação pode ser a profecia ex-eventu (que pode ser de dois tipos: periodização da história, como em Daniel 2 e 7, e a profecia relativa a reinado) e as predições escatológicas.
Já os apocalipses de “viagens” a outro mundo, cujas “formas componentes frequentemente sobrepõem-se com aquelas dos apocalipses ‘históricos’” (COLLINS, 1984, p. 14), podem ter como meio de revelação a transportação do visionário e a narrativa de revelação, e como conteúdo listas de coisas reveladas, as visões das moradias dos mortos, cenários de juízo, visões de trono, e listas de vícios e virtudes.
Em ambos os casos, ocorrem paralelos com escritos persas. No caso das visões de sonho simbólico, elas podem “ser vistas como uma adaptação dos sonhos simbólicos que são atestados por todo o Oriente Próximo” (COLLINS, 1984, p. 7). No Bahman Yasht persa (yasht significa “ritualmente recitado”, parte do Avesta (uma parte da Escrituras do Zoroastrismo) que contém orações dirigidas aos deuses, recitadas nas festas), Zaratustra (ou Zoroastro) tem uma visão simbólica de uma árvore com quatro ramos (no capítulo primeiro, pois no terceiro há uma variante em que aparece uma árvore com sete ramos). Ahura Mazda interpreta os ramos como períodos que virão. Esse yasht, na forma em que se apresenta atualmente, é uma composição tardia, da era cristã, mas é largamente aceito que ele preserva material muito antigo do Avesta.
Diferentemente de outros paralelos, o yasht se parece com os apocalipses judaicos tanto na forma quanto no conteúdo; a influência persa é possível, mas a dificuldade de datação do material persa deixa a discussão em aberto. De qualquer modo, a influência da interpretação de sonhos no Oriente Próximo e a possibilidade de fontes persas na literatura apocalíptica devem ser admitidas, o que não deixa de revelar, em qualquer caso, a considerável criatividade dos escritos apocalípticos judaicos.
Verifica-se uma espécie de “moldura” comum no Oriente Próximo, desde a Suméria do terceiro milênio até o Egito ptolemaico, da Mesopotâmia em direção ao Oeste, até a Grécia. A moldura consiste numa introdução acerca do sonhador, o local e outras circunstâncias importantes do sonho; após o conteúdo da visão, há uma parte final da moldura, a qual, além de descrever o final do sonho, frequentemente inclui uma seção que diz respeito à reação do sonhador, ou ao cumprimento real da predição ou promessa apregoada no sonho.
O mesmo ocorre no caso de sonhos do tipo viagens a outro mundo, somente incluindo, após as circunstâncias do sonho, a ascensão ou descida do visionário e, ao final, o seu retorno ao lugar de origem. Vale ressaltar que a moldura não é completa em todos os casos.
O sonho com viagem ao mundo dos mortos é atestado já no caso de Enkidu, do poema épico Gilgamesh (Cf. PRITCHARD, 1969, p. 72-99). Fora de relatos em sonho, há outros exemplos. Entre os próprios babilônios, há as descidas ao mundo dos mortos atribuídas à deusa Ishtar (PRITCHARD, 1969, p. 106-109); entre os sumérios, há as descidas ao mundo dos mortos atribuídas à deusa Inana (PRITCHARD, 1969, p. 52-57).5 No mundo greco-romano, descidas ao mundo inferior são encontradas em Homero (Odisseia, Canto XI) e Virgílio (Eneida, Canto VI).
COMENTÁRIO: A história órfica de Orfeu e Eurídice, onde Orfeu vai ao mundo dos mortos (Hades) para libertar sua amada ninfa Eurídice é claramente usada como a base da história da ida de Cristo aos infernos para libertar as almas. A cópia (não chega nem a ser inspiração de tão parecida) é tão óbvia que não há como negar. Vale lembrar que o Orfismo já era conhecido por Pitágoras, Platão (que tirou dessa religião muitas de suas concepções filosóficas) e muitos outros filósofos, e ambos (Platão, Pitágoras e os Órficos) interpretavam alegoricamente a mitologia grega, como veremos na postagem sobre os Mistérios Gregos e sua forte influência na filosofia grega e no gnosticismo.
COMENTÁRIO: A história órfica de Orfeu e Eurídice, onde Orfeu vai ao mundo dos mortos (Hades) para libertar sua amada ninfa Eurídice é claramente usada como a base da história da ida de Cristo aos infernos para libertar as almas. A cópia (não chega nem a ser inspiração de tão parecida) é tão óbvia que não há como negar. Vale lembrar que o Orfismo já era conhecido por Pitágoras, Platão (que tirou dessa religião muitas de suas concepções filosóficas) e muitos outros filósofos, e ambos (Platão, Pitágoras e os Órficos) interpretavam alegoricamente a mitologia grega, como veremos na postagem sobre os Mistérios Gregos e sua forte influência na filosofia grega e no gnosticismo.
Considera-se que a deusa que os sumérios conheciam por Inana era a mesma Ishtar acádia — Astarte (cf. COHN, 1996, p. 63). Sabe-se que ambas compartilhavam a dupla natureza de serem deusas guerreiras e do amor, ou seja, da fecundidade, no panteão mesopotâmico: “O caráter guerreiro de Ishtar é particularmente predominante na Assíria a partir do décimo-primeiro século a.C. quando ela é associada com o próprio deus nacional, Ashur (...). Seu caráter guerreiro e de fertilidade é claramente indicado pela sua associação ao deus da fertilidade, Min, e ao deus feroz Reseph, o qual matou milhares de homens através de guerra e epidemia” (GRAY, 1973, p. 23). 6.
Cf. o relato da ida de Ulisses às portas do Hades, na forma narrativa, em Homero (1997, p. 121-134).
Cf. o relato narrativo em Virgílio (s/d., p. 94-111).
No Novo Testamento, há a descida de Cristo ao mundo dos mortos (1 Pedro 3,18-20). Entretanto, o melhor exemplo se dá entre os persas, no Livro de Arda Viraf, o qual é um apocalipse desenvolvido (Cf. COLLINS, 1984, p. 15); na forma atual, o livro é do IX século, mas o tema da ascensão é antigo na tradição persa.
Em relação ao conteúdo das revelações, também há paralelos antigos. As predições escatológicas são já encontradas no chamado (erroneamente) “Apocalipse de Isaías” (Isaías 24-27, que, apesar de ser uma das seções mais tardias do livro, é bem anterior ao período dos Macabeus).
Outros exemplos são os presságios e agouros (comuns nas predições escatológicas), encontrados, por exemplo, no Livro dos Jubileus (II século a.C.), em 23,25 (“as cabeças das crianças serão brancas com cabelos grisalhos”)*, com paralelo em Hesíodo, nos Erga, 181: “quando nascerem já em sua plenitude, com fontes encanecidas”.**
* O Livro de Jubileus 23, 25 relata: “As cabeças das crianças serão brancas com cabelos grisalhos, a criança de três semanas parecerá um ancião de cem anos, e sua estatura será aniquilada por tribulação e opressão” (cf. CHARLES, 1913, p. 49. A versão espanhola está em DIEZ MACHO, 1984, p. 137).
**. Tradução nossa de eût’ án geinómenoi poliokrótaphoi teléthôsin (cf. o texto na edição crítica de WEST, M. L. Hesiod, works and days, p. 103).
O gênero apocalíptico compartilha, ainda, algumas características e motivações com os pseudoepígrafos, os escritos de Qumran e os Oráculos Sibilinos (Cf. esse relato em COLLINS, 1983, p. 317-472), os quais, levando-se em consideração tais semelhanças, também podem ser designados como literatura apocalíptica.
No caso dos Manuscritos de Qumran, a comunidade ligada a eles era “uma ‘comunidade apocalíptica’, que teve sua origem no ambiente dos movimentos apocalípticos, muito difundidos naquela época” (MARTÍNEZ; BARRERA, 1996, p. 81). Para alguns, os manuscritos oferecem “a única oportunidade para estudar o ambiente institucional do pensamento apocalíptico” (COLLINS, 1998, p. 145), bem como “juntamente com os escritos do cristianismo primitivo, proveem nossa principal evidência antiga de uma comunidade na qual as crenças apocalípticas desempenharam um papel importante” (COLLINS, 1998, p. 175).
Em verdade, a comunidade vivia entre o nomismo e o apocalipsismo, numa tensão entre essas duas tendências: o cumprimento estrito das normas legais da comunidade e a esperança escatológica num fim previsto pelas Escrituras que haveria de se concretizar na comunidade. O Mestre da Justiça, um tipo de sacerdote instituído por Deus para guiar os membros da comunidade, comunicava ao grupo as revelações pertinentes a tudo o que fosse sagrado. Sua conduta era pautada na fidelidade às normas e na repulsa ao sacerdócio de Jerusalém. O interesse pelos aspectos legais da Torá levou-os a ser identificados com o grupo religioso chamado de assideus (em grego) ou hasîdîm (em hebraico), homens piedosos do período macabaico, considerados os precursores dos fariseus e dos essênios.
Uma das principais características do apocalipsismo presente nos documentos de Qumran é o dualismo. A Regra da Guerra (uma das obras dos essênios de qumran encontradas nas cavernas do mar morto), conhecida também como “A guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas”, propõe que Deus aniquilará as forças do mal numa guerra escatológica que precederá a era vindoura. Essa noção de batalha final entre bem e mal acompanha a escatologia apocalíptica. Os membros da comunidade viviam um ambiente escatológico bastante acentuado. No Manual de Disciplina, por exemplo, chamado também de Regra da Comunidade (principal livro que contém as normas reguladoras da vida da comunidade), os filhos da justiça são exortados a andar de acordo como o “espírito da verdade”, pois o “espírito de perversidade” acompanha os maus; os homens adotam um entre esses dois caminhos. Os filhos da justiça são dirigidos pelo Príncipe da Luz e, portanto, andam num caminho de luz, ao passo que os filhos da perversidade são regidos pelo Anjo das Trevas e trilham o seu caminho. Esse anjo que regula o caminho mau se opõe constantemente aos filhos da justiça, os quais são ajudados constantemente por Deus e pelo Anjo da Verdade (Cf. RUSSELL, 1964, p. 43).
Outras características apocalípticas encontradas em Qumran são: a crença em que todas as coisas estão reguladas de acordo com os mistérios de Deus, a periodização da história em vista a uma batalha final em que os poderes da luz derrotarão os poderes das trevas (referência o já citado dualismo), a expectativa messiânica, e alguma noção de continuidade da vida no pós-morte, com paz e luz eternas para os bons e terror e desonra eternos para os maus.
http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/download/425/835..
A outra forma característica dos escritos apocalípticos é o arrebatamento. Dizer que “os céus estão fechados” é um modo semítico para falar do fracasso da história de Israel. Mas, se são inspirados os autores fictícios da apocalíptica, como se dá esta inspiração? O autor é “arrebatado” ao céu. Se o Espírito não desce, vai-se até ele para escrever e fazer história.
Paulo, polemizando com outros apóstolos que discordam do seu evangelho, se diz autêntico e até se dá o direito de, insensatamente, se vangloriar: “É preciso gloriar-se? Por certo, não convém. Todavia mencionarei as visões e revelações do Senhor. Conheço um homem em Cristo que, há quatorze anos, foi arrebatado (arpagénta, do verbo arpázô, “raptar”, “arrebatar”) ao terceiro céu -, se em seu corpo, não sei; se fora do corpo, não sei; Deus o sabe! E sei que esse homem – se no corpo ou fora do corpo, não sei; Deus o sabe! – foi arrebatado até o paraíso e ouviu palavras inefáveis, que não é lícito ao homem repetir” (2Cor 12,1-4).
O Livro Eslavo de Henoc, escrito apocalíptico do século I d.C., diz que Henoc estava em sua casa dormindo, quando “surgiram dois homens de estatura descomunal”, na verdade dois anjos, que lhe disseram: “Henoc, tenha ânimo de verdade e não te assustes, pois o Senhor da eternidade nos enviou a ti: hoje vais subir ao céu conosco” (1,8).
Então os dois anjos conduzem Henoc através dos sete céus, explicando-lhe tudo o que vê. E no sétimo céu ele é levado por Miguel diante do Senhor e preparado para uma importante missão[25].
Em seguida, Vrevoil, o mais sábio dos arcanjos, escriba oficial do Senhor, pega livros e pena para que Henoc escreva. “Em seguida, foi recitando todas as obras do céu, da terra e de todos os elementos, seu movimento e suas trajetórias (…) o número dos anjos, as canções das milícias armadas, todo assunto humano, toda língua dos cânticos, as vidas dos homens, os mandamentos e ensinamentos (…) Vrevoil me instruiu durante trinta dias e trinta noites, sem parar de falar, e eu não tive um momento de descanso, consignando por escrito todos os sinais da criação” (10-4-5).
Depois disto, por mais trinta dias e trinta noites, Henoc registra por escrito as almas humanas, inclusive as que ainda não nasceram, e os lugares que lhes estão predestinados desde antes da criação da terra. No final, são escritos 366 livros.
Em seguida, Henoc escuta do próprio Senhor um relato da criação em sete dias e do pecado de Adão e Eva no paraíso. O Senhor lhe diz, então: “Entenda pois, Henoc, e tome consciência de quem está te falando: pega esses livros que você mesmo escreveu (…) desça à terra e conte a teus filhos tudo o que eu te disse e tudo o que vistes do céu mais baixo até meu trono (…) Entregue-lhes os livros escritos com tua mão e letra e que eles os leiam e me reconheçam como Criador do universo e compreendam que não há outro (criador) além de mim, e transmitam os livros escritos por ti de filhos para filhos, de geração em geração, de parentes para parentes” (11,87-92).
A Henoc, conduzido pelos dois anjos novamente à terra, é dado um prazo de 30 dias para executar o mandato do Senhor, ao fim do qual ele será arrebatado definitivamente aos céus.
Falando aos seus filhos, entre outras coisas, diz Henoc: “Tomai estes livros escritos por vosso pai, lede-os, e neles reconhecereis todas as obras do Senhor. Existiram muitos livros desde o começo da criação e ainda existirão até o fim do mundo, porém nenhum deles vos revelará (tanto) como estes, escritos por minha mão: se os seguirdes com firmeza, não pecareis contra o Senhor” (13,60-61). “Que estes livros que acabo de vos dar sejam a recompensa de vosso descanso. Não os escondais; ensinai-os a todos os que queiram (vê-los), para ver se assim reconhecem (como tais) as obras mirabilíssimas do Senhor (…) Amanhã subirei ao céu empíreo, à minha herança sempiterna” (13,110-112). “Então os anjos pegaram apressadamente Henoc e levaram-no até o céu mais alto, onde o Senhor o acolheu e o colocou diante de si por toda a eternidade” (18,2). Henoc vivera 365 anos[26] .
Para terminar este capítulo, quero lembrar que a apocalíptica torna-se possível pela aculturação helenística do judaísmo, que sofre influências babilônicas, persas e gregas, levadas pela unificação imperial de Alexandre Magno a partir de 332 a.C.
Influências persas, típicas da especulação zoroástrica, podem ser vistas na explicação que o Livro Eslavo de Henoc dá sobre a origem da criação (cf. 11,6-20;17,2-6). Aí, luz e trevas - Adoil e Ar(u)chas são dois princípios calcados nas figuras de Ahura-Mazda (deus do bem) e seu irmão gêmeo Angra Mainyu (deus do mal).
É para combater a helenização que a apocalíptica assimila elementos gregos mais do que qualquer outra tendência judaica da época, permanecendo, contudo, fiel às concepções vétero-testamentárias.
COMENTÁRIO: A concepção vétero-testamentária de Deus se modifica mais claramente com Fílon e os platonistas judaicos, que vão adicionar à teologia judaica o conceito de Logos, Sophia e outros termos da filosofia grega, inclusive o próprio Demiurgo de Platão. É a partir dessas especulações metafísicas que correntes de pensamento heterodoxas judaicas se separam definitivamente do judaísmo, como veremos, dando origem às primeiras comunidades gnósticas, dentre as quais o próprio cristianismo.
Um exemplo interessante de influência grega na literatura apocalíptica pode ser visto no capítulo 14 do IV Livro de Esdras, escrito apócrifo do final do século I d.C.
Acredita-se, no século I d.C., que a Lei fora queimada com a destruição do Templo em 586 a.C. pelos babilônios. De novo, agora, em 70 d.C., o Templo é mais uma vez destruído, acabando com as últimas esperanças judaicas. E o assunto está, então, na moda.
Como fazer para ter de novo a Lei, se apenas Moisés é o autor autorizado, inspirado? Existe Esdras, o grande restaurador da Lei na época persa. Ele é o herói certo. Esdras é, então, encarregado de refazer a obra de Moisés. Sendo refeita a obra, refaz-se a continuidade da história de Israel, de novo possível.
Diz o capítulo 14 que uma voz celeste se dirige a Esdras nos seguintes termos: “Esdras: os sinais que te mostrei, os sonhos que viste, explica-os imediatamente aos sábios, e os escribas os guardarão! Porque tu serás arrebatado para longe dos homens, para ficares, até o fim dos tempos, junto com o meu Servo e com os que se parecem contigo”.
Em seguida, inspirado no mito das raças de Hesíodo, diz o texto: “É que realmente o mundo perdeu a sua juventude. Aproximam-se os tempos de sua decrepitude! Porque o mundo foi dividido em dez partes! Chegamos ao tempo da décima parte: resta apenas a metade dessa décima parte (…) À medida que o mundo decai em sua velhice, os males se acumulam sobre os seus habitantes”.
Então, diz o texto, Esdras questiona o Senhor:“Pois que a tua lei foi queimada pelo fogo, haverá ainda alguém para conhecer as maravilhas que fizeste e os decretos que promulgastes? Se encontrei graça diante de ti, envia o Espírito Santo ao meu coração, e escreverei tudo o que aconteceu desde o início do mundo, como estava escrito na tua Lei”.
Esdras recebe assim a ordem de preparar as tabuinhas e de convocar cinco especialistas em escrita criptográfica que trabalharão com ele durante 40 dias, nos quais ninguém deve procurá-los.
As cinco raças
“Primeiro de ouro a raça dos homens mortais
criaram os imortais, que mantêm olímpicas moradas.
Eram do tempo de Cronos, quando no céu este reinava;
como deuses viviam, tendo despreocupado coração,
apartados, longe de penas e misérias; nem temível
velhice lhes pesava, sempre iguais nos pés e nas mãos,
alegravam-se em festins, os males todos afastados (…)
Então uma segunda raça bem inferior criaram,
argêntea, os que detêm olímpia morada;
à áurea, nem por talhe nem por espírito semelhante (…)
E Zeus Pai, terceira, outra raça de homens mortais
brônzea criou em nada se assemelhando à argêntea;
era do freixo, terrível e forte, e lhe importavam de Ares
obras gementes e violências, nenhum trigo
eles comiam e de aço tinham resistente o coração (…)
Mas depois também a esta raça a terra cobriu,
de novo ainda outra, quarta, sobre fecunda terra
Zeus Cronida fez mais justa e mais corajosa
raça divina de homens heróis e são chamados
semideuses, geração anterior à nossa na terra sem fim (…)
Antes não estivesse eu entre os homens da quinta raça,
mais cedo tivesse morrido ou nascido depois.
Pois agora é a raça de ferro e nunca durante o dia
cessarão de labutar e penar e nem à noite de se
destruir; e árduas angústias os deuses lhes darão”
HESÍODO, Os trabalhos e os dias[27].
No dia seguinte, estando isolado no campo com os cinco homens, diz uma voz a Esdras: “‘Abre a tua boca e bebe o que quero dar-te a beber!’ Abrindo a boca, vi que me era estendido um cálice que parecia cheio de água cor-de-fogo. Tomei-o e bebi! Ora, enquanto eu o bebia, o meu coração fazia brotar a inteligência e o meu coração fazia jorrar a sabedoria; meu espírito conservava a recordação e minha boca proferia a ciência (…) E eu me pus a falar e os cinco homens se puseram a escrever o que eu dizia, em criptografia, isto é, usando caracteres desconhecidos. Permanecemos lá quarenta dias!”
Pode ser percebida aqui a analogia entre Esdras e Moisés: a Lei é dada por Deus a ambos em quarenta dias; os cinco escribas lembram os cinco livros da Lei… Mas chama igualmente a atenção a influência do mito grego de Dioniso.
Dioniso é filho de Zeus e da princesa Sêmele, filha de Cadmo, rei de Tebas. Nascido de uma mortal, Dioniso não poderia pertencer ao panteão dos deuses olímpicos, mas o consegue através de várias peripécias. Dioniso é o deus da natureza, descobridor do vinho, o Baco dos romanos. Mas é principalmente o deus da vida que quebra todas as convenções sociais através da “loucura”, do “entusiasmo”. Nos rituais orgiásticos, “o êxtase dionisíaco significa antes de qualquer coisa a superação da condição humana, a descoberta da libertação completa, a obtenção de uma liberdade e de uma espontaneidade inacessíveis aos homens”[28] .
Entretanto, prossegue o capítulo 14 do IV Esdras: “Nesses quarenta dias, foram escritos noventa e quatro livros. Quando os quarenta dias terminaram, o Altíssimo me falou e disse: ‘Os primeiros vinte e quatro livros que foram escritos, tu os revelarás de modo que possam lê-los sábios e não sábios! Os outros setenta, tu os ocultarás, transmitindo-os aos sábios do povo! Porque neles está a fonte da inteligência e a nascente da sabedoria e o canal da recordação e o rio da ciência’. Foi o que fiz”.
É importante observamos que os 24 livros acessíveis a todos correspondem exatamente aos 24 livros da Bíblia Hebraica, agrupados na Lei, nos Profetas e nos Escritos: estes tratam do mundo atual. Os outros 70 livros são secretos e guardados para o fim dos tempos, o mundo que virá. Agora são acessíveis só aos justos e sábios[29].
[25]. No primeiro céu estão os depósitos de neve, gelo e nuvens guardados por anjos; no segundo estão presos anjos rebeldes; no terceiro céu Henoc vê o paraíso, reservado para os justos e, na sua região boreal, o lugar terrível reservado aos ímpios, onde “os guardiães – brutais e implacáveis, portam armas crueis e torturam sem compaixão” (5,11); no quarto céu está o controle do sol e da lua; no quinto céu estão os anjos que pecaram com as filhas dos homens, condenados a uma tristeza enorme; no sexto céu estão os anjos guardiães do universo, da terra e dos homens; no sétimo céu, finalmente – cercado por virtudes, dominações, principados, potestades, querubins, serafins, tronos, otanim e dez esquadrões de anjos de muitos olhos – está o Senhor, sentado em seu altíssimo trono. “E vi o Senhor face a face, sua face irradiava poder e glória, era admirável e terrível e inspirava, ao mesmo tempo, temor e pavor” (9,10).
[26]. Cf. o texto completo do Livro Eslavo de Henoc em DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento IV, p. 147-202.
[27]. Hesíodo é um poeta grego que vive na Beócia no final do século VIII ou começo do século VII a.C. Em Os trabalhos e os dias – em que descreve o mundo humano de sua época – ele fala das cinco raças. Cf. HESÍODO Os trabalhos e os dias. 4. ed. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 31-35.
[28]. ELIADE, M. História das crenças e das ideias religiosas I,2. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 209.
[29]. No Livro Etiópico de Henoc 104,12-13 se diz: “Eu conheço outro mistério, pois aos justos e sábios são dados livros para alegria, retidão e grande sabedoria. A eles se dão os livros, creem neles e se alegram, e são retribuídos todos os justos que neles conheceram os caminhos retos”.
http://airtonjo.com/site1/apocaliptica-5.htm