sábado, 2 de novembro de 2019

Série: A Fé Gnóstica - Parte 6 - Apocalíptica: origem zoroastriana e influência grega.

OS TRABALHOS E OS DIAS, DE HESÍODO, UM DOS PRIMEIROS AUTORES DA GRÉCIA ANTIGA (POR VOLTA DO SÉC. VIII ANTES DE CRISTO), É UM POEMA ÉPICO QUE CONTÉM NARRATIVAS MÍTICAS QUE SERVIRAM DE INSPIRAÇÃO PARA OS AUTORES DA APOCALÍPTICA JUDAICA E CRISTÃ.


As expressões literárias básicas do gênero apocalípticoe seus paralelos antigos.


D. S. Russel afirma que o gênero apocalíptico “era, essencialmente, um fenômeno literário que emergiu no Judaísmo durante o domínio do rei selêucida Antíoco Epífanes (175-163 a.C.)” (cf. RUSSELL, 1978, p. 3).

(...)

A expressão “apocalíptica” é usada, além da função adjetiva, também como substantivo coletivo, designando tanto a “literatura apocalíptica” como o conjunto de ideias que a produziu, ocasionando confusão no debate apocalíptico no correr dos anos. John Joseph Collins apresenta três razões desse uso indistinto do termo: o uso do nome “apocalipse” para designar um amálgama de elementos literários, sociais e fenomenológicos; a falta de clareza no reconhecimento e na classificação desse gênero na Antiguidade (rotulado como gênero somente a partir do Apocalipse neotestamentário); e o fato de os próprios apocalipses judaicos abrangerem várias formas literárias distintas, como visões, preces, legendas, testamentos e outros (COLLINS, 1984, p. 2-3). Klaus Koch define o termo genérico “apocalíptico” como “especulação que – frequentemente em forma alegórica (...) – pretende interpretar o curso da história e revelar o fim do mundo” (KOCH, 1972, p. 33). Ele trouxe certa clareza a essa confusão terminológica; o “apocalipse” trata-se de um “macrogênero”, do qual se faz necessário distinguir os diversos tipos literários que o compõem. Distingue “apocalipse” (tipo ou gênero literário) e “apocalíptica” (“movimento intelectual”). Ele tomou  como referência os escritos apocalípticos compostos em hebraico ou aramaico (ou que mostrassem claramente essa influência), os quais identificou como Daniel, 1 Enoque, 2 Baruque, 4 Esdras, o Apocalipse de Abraão e o Apocalipse de João (KOCH, 1972, p. 18-35).

(...)

Entretanto, esse “movimento” se expressa de diversas maneiras como resultado de condições históricas que se modificam, não sendo possível, assim, dar uma definição formal cognitiva do apocalipsismo; abrange diferentes temas, tradições e gêneros, sendo que “o resultado é com frequência uma coleção de conceitos e motivos de alta natureza eclética e caracterizada pelo esotérico, bizarro e arcano” (HANSON, 1976, p. 30; HANSON, 1979, p. 433). Hanson acrescenta ainda que esses movimentos apocalípticos podem ser de dois tipos: um grupo marginalizado ou oprimido dentro de uma sociedade, ou uma nação inteira sob o jugo de um poder estrangeiro (como em Daniel 7-12) (HANSON, 1979, p. 434-435). A base do apocalipsismo é a alienação (exclusão e opressão), e a resposta a essa situação é a adoção da perspectiva da escatologia apocalíptica. Os apocalipsistas judeus antigos criaram um novo “universo simbólico” em resposta à experiência de alienação e opressão que viviam, subjugados às autoridades políticas e religiosas de sua época. Para Gerhard Von Rad, a apocalíptica não representaria um “gênero” específico do ponto de vista literário. Pela história das formas ela é, na verdade, um mixtum compositum que levaria a uma pré-história muito complexa do ponto de vista da história das tradições (VON RAD, 2006, p. 738). Von Rad aceita que a literatura apocalíptica em Israel recebeu influências estrangeiras, especialmente a iraniana; mas assevera que essa influência já estaria presente na sabedoria israelita desde a época de Salomão, sendo mais acentuada no Império Persa, principalmente em relação às ideias cosmológicas de caráter claramente escatológico.

(...)

Dado todo o exposto, podemos verificar a falta de clareza e a diversidade de opiniões no tratamento do tema entre esses principais autores. Apesar disso, podemos distinguir o apocalipse enquanto gênero e a apocalíptica enquanto mentalidade, deixando a escatologia como um tema à parte, já que não é um tema exclusivo da apocalíptica nem um tema que, embora muito recorrente, necessariamente nela apareça. A definição mais apropriada do gênero, ao que nos parece, é a dada por Collins, citada acima. Podemos asseverar, então, clareando tudo o que foi exposto acima, que apocalipse trata-se de um gênero literário, e apocalíptica trata-se de uma mentalidade, uma forma de pensar específica, cuja expressão se dá por diversas formas literárias.


Como especificação do gênero literário apocalíptico, conforme apresente mais marcadamente o aspecto temporal ou geográfico (o mundo sobrenatural, conforme definição acima), Collins sugere como significativa a distinção entre os apocalipses “históricos” (Daniel, Livro dos Jubileus, 4 Esdras, 2 Baruque e, no 1 Enoque, o Livro dos sonhos e o Apocalipse das semanas) e os apocalipses de viagens a outro mundo (2 Enoch, 3 Baruque, o Testamento de Abraão, o Apocalipse de Abraão, o Apocalipse de Sofonias, o Testamento de Levi 2-5 e, no 1 Enoque, o Livro das sentinelas( 1Enoch 1-36), o Livro de astronomia (1Enoch 72-82) e Livro das Parábolas ou Similitudes de Enoch (1Enoch 37-71) (COLLINS, 1984, p. 6-19).


Segundo ele, esses dois são os tipos básicos do gênero apocalíptico. No primeiro, é feita uma inspeção da história enquanto conducente a uma crise escatológica sem referência à viagem a outro mundo; no segundo, estão aqueles que descrevem viagens para outro mundo e podem se referir à inspeção histórica, a fenômenos cósmicos ou à sorte do indivíduo após a morte.


Os apocalipses históricos podem ter como meio de revelação a visão de um sonho simbólico (como em Daniel 2 e 7), a epifania, um discurso angelical, um diálogo de revelação, midraxe, pesher, e relato de revelação. O conteúdo da revelação pode ser a profecia ex-eventu (que pode ser de dois tipos: periodização da história, como em Daniel 2 e 7, e a profecia relativa a reinado) e as predições escatológicas.

Já os apocalipses de “viagens” a outro mundo, cujas “formas componentes frequentemente sobrepõem-se com aquelas dos apocalipses ‘históricos’” (COLLINS, 1984, p. 14), podem ter como meio de revelação a transportação do visionário e a narrativa de revelação, e como conteúdo listas de coisas reveladas, as visões das moradias dos mortos, cenários de juízo, visões de trono, e listas de vícios e virtudes.

Em ambos os casos, ocorrem paralelos com escritos persas. No caso das visões de sonho simbólico, elas podem “ser vistas como uma adaptação dos sonhos simbólicos que são atestados por todo o Oriente Próximo” (COLLINS, 1984, p. 7). No Bahman Yasht persa (yasht significa “ritualmente recitado”, parte do Avesta (uma parte da Escrituras do Zoroastrismo) que contém orações dirigidas aos deuses, recitadas nas festas), Zaratustra (ou Zoroastro) tem uma visão simbólica de uma árvore com quatro ramos (no capítulo primeiro, pois no terceiro há uma variante em que aparece uma árvore com sete ramos). Ahura Mazda interpreta os ramos como períodos que virão. Esse yasht, na forma em que se apresenta atualmente, é uma composição tardia, da era cristã, mas é largamente aceito que ele preserva material muito antigo do Avesta.


Diferentemente de outros paralelos, o yasht se parece com os apocalipses judaicos tanto na forma quanto no conteúdo; a influência persa é possível, mas a dificuldade de datação do material persa deixa a discussão em aberto. De qualquer modo, a influência da interpretação de sonhos no Oriente Próximo e a possibilidade de fontes persas na literatura apocalíptica devem ser admitidas, o que não deixa de revelar, em qualquer caso, a considerável criatividade dos escritos apocalípticos judaicos.


Verifica-se uma espécie de “moldura” comum no Oriente Próximo, desde a Suméria do terceiro milênio até o Egito ptolemaico, da Mesopotâmia em direção ao Oeste, até a Grécia. A moldura consiste numa introdução acerca do sonhador, o local e outras circunstâncias importantes do sonho; após o conteúdo da visão, há uma parte final da moldura, a qual, além de descrever o final do sonho, frequentemente inclui uma seção que diz respeito à reação do sonhador, ou ao cumprimento real da predição ou promessa apregoada no sonho.


O mesmo ocorre no caso de sonhos do tipo viagens a outro mundo, somente incluindo, após as circunstâncias do sonho, a ascensão ou descida do visionário e, ao final, o seu retorno ao lugar de origem. Vale ressaltar que a moldura não é completa em todos os casos.

O sonho com viagem ao mundo dos mortos é atestado já no caso de Enkidu, do poema épico Gilgamesh (Cf. PRITCHARD, 1969, p. 72-99). Fora de relatos em sonho, há outros exemplos. Entre os próprios babilônios, há as descidas ao mundo dos mortos atribuídas à deusa Ishtar (PRITCHARD, 1969, p. 106-109); entre os sumérios, há as descidas ao mundo dos mortos atribuídas à deusa Inana (PRITCHARD, 1969, p. 52-57).5 No mundo greco-romano, descidas ao mundo inferior são encontradas em Homero (Odisseia, Canto XI) e Virgílio (Eneida, Canto VI).

COMENTÁRIO: A história órfica de Orfeu e Eurídice, onde Orfeu vai ao mundo dos mortos (Hades) para libertar sua amada ninfa Eurídice é claramente usada como a base da história da ida de Cristo aos infernos para libertar as almas. A cópia (não chega nem a ser inspiração de tão parecida) é tão óbvia que não há como negar. Vale lembrar que o Orfismo já era conhecido por Pitágoras, Platão (que tirou dessa religião muitas de suas concepções filosóficas) e muitos outros filósofos, e ambos (Platão, Pitágoras e os Órficos) interpretavam alegoricamente a mitologia grega, como veremos na postagem sobre os Mistérios Gregos e sua forte influência na filosofia grega e no gnosticismo.

Considera-se que a deusa que os sumérios conheciam por Inana era a mesma Ishtar acádia — Astarte (cf. COHN, 1996, p. 63). Sabe-se que ambas compartilhavam a dupla natureza de serem deusas guerreiras e do amor, ou seja, da fecundidade, no panteão mesopotâmico: “O caráter guerreiro de Ishtar é particularmente predominante na Assíria a partir do décimo-primeiro século a.C. quando ela é associada com o próprio deus nacional, Ashur (...). Seu caráter guerreiro e de fertilidade é claramente indicado pela sua associação ao deus da fertilidade, Min, e ao deus feroz Reseph, o qual matou milhares de homens através de guerra e epidemia” (GRAY, 1973, p. 23). 6.

Cf. o relato da ida de Ulisses às portas do Hades, na forma narrativa, em Homero (1997, p. 121-134).

Cf. o relato narrativo em Virgílio (s/d., p. 94-111).


No Novo Testamento, há a descida de Cristo ao mundo dos mortos (1 Pedro 3,18-20). Entretanto, o melhor exemplo se dá entre os persas, no Livro de Arda Viraf, o qual é um apocalipse desenvolvido (Cf. COLLINS, 1984, p. 15); na forma atual, o livro é do IX século, mas o tema da ascensão é antigo na tradição persa.

Em relação ao conteúdo das revelações, também há paralelos antigos. As predições escatológicas são já encontradas no chamado (erroneamente) “Apocalipse de Isaías” (Isaías 24-27, que, apesar de ser uma das seções mais tardias do livro, é bem anterior ao período dos Macabeus).


Outros exemplos são os presságios e agouros (comuns nas predições escatológicas), encontrados, por exemplo, no Livro dos Jubileus (II século a.C.), em 23,25 (“as cabeças das crianças serão brancas com cabelos grisalhos”)*, com paralelo em Hesíodo, nos Erga, 181: “quando nascerem já em sua plenitude, com fontes encanecidas”.**


* O Livro de Jubileus 23, 25 relata: “As cabeças das crianças serão brancas com cabelos grisalhos, a criança de três semanas parecerá um ancião de cem anos, e sua estatura será aniquilada por tribulação e opressão” (cf. CHARLES, 1913, p. 49. A versão espanhola está em DIEZ MACHO, 1984, p. 137).

**. Tradução nossa de eût’ án geinómenoi poliokrótaphoi teléthôsin (cf. o texto na edição crítica de WEST, M. L. Hesiod, works and days, p. 103).

O gênero apocalíptico compartilha, ainda, algumas características e motivações com os pseudoepígrafos, os escritos de Qumran e os Oráculos Sibilinos (Cf. esse relato em COLLINS, 1983, p. 317-472), os quais, levando-se em consideração tais semelhanças, também podem ser designados como literatura apocalíptica.


No caso dos Manuscritos de Qumran, a comunidade ligada a eles era “uma ‘comunidade apocalíptica’, que teve sua origem no ambiente dos movimentos apocalípticos, muito difundidos naquela época” (MARTÍNEZ; BARRERA, 1996, p. 81). Para alguns, os manuscritos oferecem “a única oportunidade para estudar o ambiente institucional do pensamento apocalíptico” (COLLINS, 1998, p. 145), bem como “juntamente com os escritos do cristianismo primitivo, proveem nossa principal evidência antiga de uma comunidade na qual as crenças apocalípticas desempenharam um papel importante” (COLLINS, 1998, p. 175).

Em verdade, a comunidade vivia entre o nomismo e o apocalipsismo, numa tensão entre essas duas tendências: o cumprimento estrito das normas legais da comunidade e a esperança escatológica num fim previsto pelas Escrituras que haveria de se concretizar na comunidade. O Mestre da Justiça, um tipo de sacerdote instituído por Deus para guiar os membros da comunidade, comunicava ao grupo as revelações pertinentes a tudo o que fosse sagrado. Sua conduta era pautada na fidelidade às normas e na repulsa ao sacerdócio de Jerusalém. O interesse pelos aspectos legais da Torá levou-os a ser identificados com o grupo religioso chamado de assideus (em grego) ou hasîdîm (em hebraico), homens piedosos do período macabaico, considerados os precursores dos fariseus e dos essênios.


Uma das principais características do apocalipsismo presente nos documentos de Qumran é o dualismo. A Regra da Guerra (uma das obras dos essênios de qumran encontradas nas cavernas do mar morto), conhecida também como “A guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas”, propõe que Deus aniquilará as forças do mal numa guerra escatológica que precederá a era vindoura. Essa noção de batalha final entre bem e mal acompanha a escatologia apocalíptica. Os membros da comunidade viviam um ambiente escatológico bastante acentuado. No Manual de Disciplina, por exemplo, chamado também de Regra da Comunidade (principal livro que contém as normas reguladoras da vida da comunidade), os filhos da justiça são exortados a andar de acordo como o “espírito da verdade”, pois o “espírito de perversidade” acompanha os maus; os homens adotam um entre esses dois caminhos. Os filhos da justiça são dirigidos pelo Príncipe da Luz e, portanto, andam num caminho de luz, ao passo que os filhos da perversidade são regidos pelo Anjo das Trevas e trilham o seu caminho. Esse anjo que regula o caminho mau se opõe constantemente aos filhos da justiça, os quais são ajudados constantemente por Deus e pelo Anjo da Verdade (Cf. RUSSELL, 1964, p. 43).


Outras características apocalípticas encontradas em Qumran são: a crença em que todas as coisas estão reguladas de acordo com os mistérios de Deus, a periodização da história em vista a uma batalha final em que os poderes da luz  derrotarão os poderes das trevas (referência o já citado dualismo), a expectativa messiânica, e alguma noção de continuidade da vida no pós-morte, com paz e luz eternas para os bons e terror e desonra eternos para os maus.

http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/download/425/835..



A outra forma característica dos escritos apocalípticos é o arrebatamento. Dizer que “os céus estão fechados” é um modo semítico para falar do fracasso da história de Israel. Mas, se são inspirados os autores fictícios da apocalíptica, como se dá esta inspiração? O autor é “arrebatado” ao céu. Se o Espírito não desce, vai-se até ele para escrever e fazer história.
Paulo, polemizando com outros apóstolos que discordam do seu evangelho, se diz autêntico e até se dá o direito de, insensatamente, se vangloriar: “É preciso gloriar-se? Por certo, não convém. Todavia mencionarei as visões e revelações do Senhor. Conheço um homem em Cristo que, há quatorze anos, foi arrebatado (arpagénta, do verbo arpázô, “raptar”, “arrebatar”) ao terceiro céu -, se em seu corpo, não sei; se fora do corpo, não sei; Deus o sabe! E sei que esse homem – se no corpo ou fora do corpo, não sei; Deus o sabe! – foi arrebatado até o paraíso e ouviu palavras inefáveis, que não é lícito ao homem repetir” (2Cor 12,1-4).
Livro Eslavo de Henoc, escrito apocalíptico do século I d.C., diz que Henoc estava em sua casa dormindo, quando “surgiram dois homens de estatura descomunal”, na verdade dois anjos, que lhe disseram: “Henoc, tenha ânimo de verdade e não te assustes, pois o Senhor da eternidade nos enviou a ti: hoje vais subir ao céu conosco” (1,8).
Então os dois anjos conduzem Henoc através dos sete céus, explicando-lhe tudo o que vê. E no sétimo céu ele é levado por Miguel diante do Senhor e preparado para uma importante missão[25].
Em seguida, Vrevoil, o mais sábio dos arcanjos, escriba oficial do Senhor, pega livros e pena para que Henoc escreva. “Em seguida, foi recitando todas as obras do céu, da terra e de todos os elementos, seu movimento e suas trajetórias (…) o número dos anjos, as canções das milícias armadas, todo assunto humano, toda língua dos cânticos, as vidas dos homens, os mandamentos e ensinamentos (…) Vrevoil me instruiu durante trinta dias e trinta noites, sem parar de falar, e eu não tive um momento de descanso, consignando por escrito todos os sinais da criação” (10-4-5).
Depois disto, por mais trinta dias e trinta noites, Henoc registra por escrito as almas humanas, inclusive as que ainda não nasceram, e os lugares que lhes estão predestinados desde antes da criação da terra. No final, são escritos 366 livros.
Em seguida, Henoc escuta do próprio Senhor um relato da criação em sete dias e do pecado de Adão e Eva no paraíso. O Senhor lhe diz, então: “Entenda pois, Henoc, e tome consciência de quem está te falando: pega esses livros que você mesmo escreveu (…) desça à terra e conte a teus filhos tudo o que eu te disse e tudo o que vistes do céu mais baixo até meu trono (…) Entregue-lhes os livros escritos com tua mão e letra e que eles os leiam e me reconheçam como Criador do universo e compreendam que não há outro (criador) além de mim, e transmitam os livros escritos por ti de filhos para filhos, de geração em geração, de parentes para parentes” (11,87-92).
A Henoc, conduzido pelos dois anjos novamente à terra, é dado um prazo de 30 dias para executar o mandato do Senhor, ao fim do qual ele será arrebatado definitivamente aos céus.
Falando aos seus filhos, entre outras coisas, diz Henoc: “Tomai estes livros escritos por vosso pai, lede-os, e neles reconhecereis todas as obras do Senhor. Existiram muitos livros desde o começo da criação e ainda existirão até o fim do mundo, porém nenhum deles vos revelará (tanto) como estes, escritos por minha mão: se os seguirdes com firmeza, não pecareis contra o Senhor” (13,60-61). “Que estes livros que acabo de vos dar sejam a recompensa de vosso descanso. Não os escondais; ensinai-os a todos os que queiram (vê-los), para ver se assim reconhecem (como tais) as obras mirabilíssimas do Senhor (…) Amanhã subirei ao céu empíreo, à minha herança sempiterna” (13,110-112). “Então os anjos pegaram apressadamente Henoc e levaram-no até o céu mais alto, onde o Senhor o acolheu e o colocou diante de si por toda a eternidade” (18,2). Henoc vivera 365 anos[26] .
Para terminar este capítulo, quero lembrar que a apocalíptica torna-se possível pela aculturação helenística do judaísmo, que sofre influências babilônicas, persas e gregas, levadas pela unificação imperial de Alexandre Magno a partir de 332 a.C.
Influências persas, típicas da especulação zoroástrica, podem ser vistas na explicação que o Livro Eslavo de Henoc dá sobre a origem da criação (cf. 11,6-20;17,2-6). Aí, luz e trevas  - Adoil e Ar(u)chas são dois princípios calcados nas figuras de Ahura-Mazda (deus do bem) e seu irmão gêmeo Angra Mainyu (deus do mal).
É para combater a helenização que a apocalíptica assimila elementos gregos mais do que qualquer outra tendência judaica da época, permanecendo, contudo, fiel às concepções vétero-testamentárias.
COMENTÁRIO: A concepção vétero-testamentária de Deus se modifica mais claramente com Fílon e os platonistas judaicos, que vão adicionar à teologia judaica o conceito de Logos, Sophia e outros termos da filosofia grega, inclusive o próprio Demiurgo de Platão. É a partir dessas especulações metafísicas que correntes de pensamento heterodoxas judaicas se separam definitivamente do judaísmo, como veremos, dando origem às primeiras comunidades gnósticas, dentre as quais o próprio cristianismo.
Um exemplo interessante de influência grega na literatura apocalíptica pode ser visto no capítulo 14 do IV Livro de Esdras, escrito apócrifo do final do século I d.C.
Acredita-se, no século I d.C., que a Lei fora queimada com a destruição do Templo em 586 a.C. pelos babilônios. De novo, agora, em 70 d.C., o Templo é mais uma vez destruído, acabando com as últimas esperanças judaicas. E o assunto está, então, na moda.
Como fazer para ter de novo a Lei, se apenas Moisés é o autor autorizado, inspirado? Existe Esdras, o grande restaurador da Lei na época persa. Ele é o herói certo. Esdras é, então, encarregado de refazer a obra de Moisés. Sendo refeita a obra, refaz-se a continuidade da história de Israel, de novo possível.
Diz o capítulo 14 que uma voz celeste se dirige a Esdras nos seguintes termos: “Esdras: os sinais que te mostrei, os sonhos que viste, explica-os imediatamente aos sábios, e os escribas os guardarão! Porque tu serás arrebatado para longe dos homens, para ficares, até o fim dos tempos, junto com o meu Servo e com os que se parecem contigo”.
Em seguida, inspirado no mito das raças de Hesíodo, diz o texto: “É que realmente o mundo perdeu a sua juventude. Aproximam-se os tempos de sua decrepitude! Porque o mundo foi dividido em dez partes! Chegamos ao tempo da décima parte: resta apenas a metade dessa décima parte (…) À medida que o mundo decai em sua velhice, os males se acumulam sobre os seus habitantes”.
Então, diz o texto, Esdras questiona o Senhor:“Pois que a tua lei foi queimada pelo fogo, haverá ainda alguém para conhecer as maravilhas que fizeste e os decretos que promulgastes? Se encontrei graça diante de ti, envia o Espírito Santo ao meu coração, e escreverei tudo o que aconteceu desde o início do mundo, como estava escrito na tua Lei”.
Esdras recebe assim a ordem de preparar as tabuinhas e de convocar cinco especialistas em escrita criptográfica que trabalharão com ele durante 40 dias, nos quais ninguém deve procurá-los.


As cinco raças
“Primeiro de ouro a raça dos homens mortais
criaram os imortais, que mantêm olímpicas moradas.
Eram do tempo de Cronos, quando no céu este reinava;
como deuses viviam, tendo despreocupado coração,
apartados, longe de penas e misérias; nem temível
velhice lhes pesava, sempre iguais nos pés e nas mãos,
alegravam-se em festins, os males todos afastados (…)
Então uma segunda raça bem inferior criaram,
argêntea, os que detêm olímpia morada;
à áurea, nem por talhe nem por espírito semelhante (…)
E Zeus Pai, terceira, outra raça de homens mortais
brônzea criou em nada se assemelhando à argêntea;
era do freixo, terrível e forte, e lhe importavam de Ares
obras gementes e violências, nenhum trigo
eles comiam e de aço tinham resistente o coração (…)
Mas depois também a esta raça a terra cobriu,
de novo ainda outra, quarta, sobre fecunda terra
Zeus Cronida fez mais justa e mais corajosa
raça divina de homens heróis e são chamados
semideuses, geração anterior à nossa na terra sem fim (…)
Antes não estivesse eu entre os homens da quinta raça,
mais cedo tivesse morrido ou nascido depois.
Pois agora é a raça de ferro e nunca durante o dia
cessarão de labutar e penar e nem à noite de se
destruir; e árduas angústias os deuses lhes darão”
HESÍODO, Os trabalhos e os dias[27].

No dia seguinte, estando isolado no campo com os cinco homens, diz uma voz a Esdras: “‘Abre a tua boca e bebe o que quero  dar-te a beber!’ Abrindo a boca, vi que me era estendido um cálice que parecia cheio de água cor-de-fogo. Tomei-o e bebi! Ora, enquanto eu o bebia, o meu coração fazia brotar a inteligência e o meu coração fazia jorrar a sabedoria; meu espírito conservava a recordação e minha boca proferia a ciência (…) E eu me pus a falar e os cinco homens se puseram a escrever o que eu dizia, em criptografia, isto é, usando caracteres desconhecidos. Permanecemos lá quarenta dias!”
Pode ser percebida aqui a analogia entre Esdras e Moisés: a Lei é dada por Deus a ambos em quarenta dias; os cinco escribas lembram os cinco livros da Lei… Mas chama igualmente a atenção a influência do mito grego de Dioniso.
Dioniso é filho de Zeus e da princesa Sêmele, filha de Cadmo, rei de Tebas. Nascido de uma mortal, Dioniso não poderia pertencer ao panteão dos deuses olímpicos, mas o consegue através de várias peripécias. Dioniso é o deus da natureza, descobridor do vinho, o Baco dos romanos. Mas é principalmente o deus da vida que quebra todas as convenções sociais através da “loucura”, do “entusiasmo”. Nos rituais orgiásticos, “o êxtase dionisíaco significa antes de qualquer coisa a superação da condição humana, a descoberta da libertação completa, a obtenção de uma liberdade e de uma espontaneidade inacessíveis aos homens”[28] .
Entretanto, prossegue o capítulo 14 do IV Esdras: “Nesses quarenta dias, foram escritos noventa e quatro livros. Quando os quarenta dias terminaram, o Altíssimo me falou e disse: ‘Os primeiros vinte e quatro livros que foram escritos, tu os revelarás de modo que possam lê-los sábios e não sábios! Os outros setenta, tu os ocultarás, transmitindo-os aos sábios do povo! Porque neles está a fonte da inteligência e a nascente da sabedoria e o canal da recordação e o rio da ciência’. Foi o que fiz”.
É importante observamos que os 24 livros acessíveis a todos correspondem exatamente aos 24 livros da Bíblia Hebraica, agrupados na Lei, nos Profetas e nos Escritos: estes tratam do mundo atual. Os outros 70 livros são secretos e guardados para o fim dos tempos, o mundo que virá. Agora são acessíveis só aos justos e sábios[29].
[25]. No primeiro céu estão os depósitos de neve, gelo e nuvens guardados por anjos; no segundo estão presos anjos rebeldes; no terceiro céu Henoc vê o paraíso, reservado para os justos e, na sua região boreal, o lugar terrível reservado aos ímpios, onde “os guardiães – brutais e implacáveis, portam armas crueis e torturam sem compaixão” (5,11); no quarto céu está o controle do sol e da lua; no quinto céu estão os anjos que pecaram com as filhas dos homens, condenados a uma tristeza enorme; no sexto céu estão os anjos guardiães do universo, da terra e dos homens; no sétimo céu, finalmente – cercado por virtudes, dominações, principados, potestades, querubins, serafins, tronos, otanim e dez esquadrões de anjos de muitos olhos – está o Senhor, sentado em seu altíssimo trono. “E vi o Senhor face a face, sua face irradiava poder e glória, era admirável e terrível e inspirava, ao mesmo tempo, temor e pavor” (9,10).
[26]. Cf. o texto completo do Livro Eslavo de Henoc em DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento IV, p. 147-202.
[27]. Hesíodo é um poeta grego que vive na Beócia no final do século VIII ou começo do século VII a.C. Em Os trabalhos e os dias – em que descreve o mundo humano de sua época – ele fala das cinco raças. Cf. HESÍODO Os trabalhos e os dias. 4. ed. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 31-35.
[28]. ELIADE, M. História das crenças e das ideias religiosas I,2. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 209.
[29]. No Livro Etiópico de Henoc 104,12-13 se diz: “Eu conheço outro mistério, pois aos justos e sábios são dados livros para alegria, retidão e grande sabedoria. A eles se dão os livros, creem neles e se alegram, e são retribuídos todos os justos que neles conheceram os caminhos retos”.
http://airtonjo.com/site1/apocaliptica-5.htm

Série: A Fé Gnóstica - Parte 5 - Testamento (discurso de despedida) e pseudepigrafia

O APOCALIPSE DE ADÃO É UM EXEMPLO DE TEXTO PSEUDEPÍGRAFO. ESSA ESCRITURA GNÓSTICA APRESENTA UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA, OU MELHOR, UMA EXPLICAÇÃO CORRETA DO QUE OCORREU NO JARDIM DO EDEN, SENDO UMA REVELAÇÃO-TESTAMENTO QUE ADÃO PROFERIU AO SEU AMADO FILHO SETH.  TESTEMUNHA UM GNOSTICISMO PRÉ-CRISTÃO, JUDAICO E APOCALÍPTICO.



4. Testamento e arrebatamento

Os livros bíblicos, tanto os do AT quanto os do NT, não trazem, com raras exceções, como o Eclesiástico, a assinatura de seu autor. Mas os livros apocalípticos são assinados. Só que também não com os nomes de seus autores e sim com o nome de um personagem importante do passado que, em geral, é a figura central do livro. Este é um recurso literário conhecido como pseudonímia. A pseudonímia é o uso de um “nome falso”, processo através do qual antigos heróis da história israelita intervêm no momento presente, o momento vivido pelo escritor. Deste modo, Henoc, Salomão, Moisés, Baruc, Esdras, Jó, Adão, Abraão, Elias, Isaías e tantos outros aparecem como autores e personagens centrais de livros escritos entre 200 a.C. e 100 d.C.
COMENTÁRIO: A pseudepigrafia se refere a textos ANTIGOS e importantes do ponto de vista filosófico-religioso, aos quais são atribuídos falsas autorias. Já a pseudonímia é a mesma coisa, só que não necessariamente sobre textos antigos e importantes, mas se refere a qualquer texto de qualquer época. Portanto, podem ser usados como sinônimos atentando-se a isso.
Em o NT, com exceção de sete cartas comprovadamente autênticas de Paulo (Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, 1 Tessalonicenses, Filipenses e Filêmon), os “autores”, como Mateus, João, Lucas etc são atribuições posteriores da tradição. “Assim, o primeiro evangelho canônico não deveria chamar-se Evangelho de Mateus (designação essa que lhe foi dada a posteriori, por critérios extrínsecos aos da redação propriamente dita), mas ‘Livro da origem de Jesus Cristo’ (de suas primeiras palavras: Bíblos genéseos Iesou Christou); e a última obra da Bíblia cristã, o Apocalipse de João, deveria chamar-se: ‘Revelação de Jesus Cristo’ (conforme suas primeiras palavras: Apokálypsis Iesou Christou)[20].
Basta olharmos os títulos de alguns livros apocalípticos judaicos para termos uma noção da extensão do uso da pseudonímia. Vejamos:
O Livro Etiópico de Henoc (que é o mesmo 1HENOC ou 1ENOCH em sua versão traduzida para o etíope)

. origem: Palestina

. autor : ambiente judaico

. data: século II a.C.-I d. C.

. língua: original hebraico ou aramaico; versões: grego e etíope

Os Testamentos dos Doze Patriarcas

. origem: Palestina

. autor: ou um judeu-cristão do século II que teria reunido uma coletânea de testamentos” já existentes; ou foram feitas interpolações cristãs em obra judaica pré-cristã; ou é uma obra essênia

. data: 130-63 a.C.

. língua: original hebraico ou aramaico; versão: grego

O Livro dos Jubileus

. origem: Palestina

. autor: um sacerdote (?) com ideário essênio

. data: 100 a.C.

. língua: original hebraico; versões: grego, conservado em etíope

Os Salmos de Salomão

. origem: Palestina

. autor: possivelmente um fariseu

. data: 63-40 a.C.

. língua: original hebraico; versões: grego e siríaco

Testamento (ou Assunção) de Moisés

. origem: Palestina

. autor: ambiente farisaico

. data: 3 a.C.-30 d.C.

. língua: original hebraico ou aramaico; versões: grego e latim

O Livro Eslavo de Henoc

. origem: Palestina? Egito?

. autor: um judeu ou judeu-cristão

. data: século I d.C.

. língua: original grego; versão: eslavo antigo

O Apocalipse Siríaco de Baruc

. origem: Palestina

. autor: um fariseu

. data: 75-100 d.C.

. língua: original hebraico ou aramaico; versões: grego e siríaco

O IV Livro de Esdras

. origem: Palestina

. autor: um fariseu

. data: fim do século I d.C.

. língua: original hebraico ou aramaico; versões: grego,que originou 6 outras, sendo a latina a melhor


Veremos que em IV Esdras os judeus assimilaram e copiaram do zoroastrismo as suas concepções apocalípticas e messiânicas.


Além destes poucos mencionados, porque mais importantes e conhecidos, há inúmeros outros livros deste período que utilizam o recurso da pseudonímia, como: Ascensão de Isaías, Apocalipse de Elias, Apocalipse de Abraão, Apocalipse de Adão, Testamento de Isaac, Testamento de Jó, Testamento de Salomão, Testamento de Jacó etc.
Assinar um livro tardio com o nome de um personagem importante das origens é uma eficiente forma de legitimá-lo. Os grandes personagens do passado do povo, através desta intervenção, asseguram a continuidade da história israelita, eles que são seus criadores e condutores. Eles se fazem presentes através do livro, processo no qual a “sociabilidade” da escritura é essencial.
A continuidade da história, através da pseudonímia, se afirma de dois modos: pelo testamento e pelo arrebatamento, que, às vezes, aparecem unidos.
Os apocalipses tomam frequentemente a forma de testamento ou “discurso de despedida”, gênero bastante usado em Israel. Está presente tanto no Antigo quanto em o Novo Testamento.
Em Gn 47,29-50,14 Jacó se despede de seus filhos. Gn 49,1-2 diz: “Jacó chamou seus filhos e disse: “Reuni-vos, eu vos anunciarei o que vos acontecerá nos tempos vindouros. Reuni-vos, escutai, filhos de Jacó, escutai Israel, vosso pai'”.
Depois de descrever a bênção de Jacó para cada um dos filhos, o texto conclui em 49,28: “Todos estes formam as tribos de Israel, em número de doze, e eis o que lhes disse seu pai. Ele os abençoou: a cada um deu uma bênção que lhes convinha”.
O testamento de Moisés em Dt 33,1-29 começa assim: “Esta é a bênção com que Moisés, homem de Deus, abençoou os filhos de Israel, antes de morrer”(v. 1).
O testamento de Paulo em At 20,17-38, mais conhecido como o “Discurso de Mileto”, dirigido aos anciãos de Éfeso, diz, entre outras coisas: “Vós bem sabeis como procedi para convosco todo o tempo, desde o primeiro dia em que cheguei à Ásia (…) Agora, acorrentado pelo Espírito, dirijo-me a Jerusalém, sem saber o que lá me sucederá (…) Agora, porém, estou certo de que não mais vereis minha face, vós todos entre os quais passei proclamando o Reino” (At 20,18b.22.25).
O evangelho de João, nos capítulos 13-17, traz um longo discurso de despedida de Jesus aos seus discípulos. Começa assim: “Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (13,1).
Mas “é sobretudo na literatura do judaísmo tardio que vemos os grandes heróis de Israel se dirigirem, antes de sua morte e de sua subida ao céu (ascensão), aos que lhe são caros ou ao seu povo”, nos lembra A. Paul[21].
No Testamento dos Doze Patriarcas podemos ler, por exemplo: “Cópia do testamento de Rúben e das recomendações a seus filhos, antes de morrer aos cento e vinte e cinco anos de idade. Dois anos após a morte de José, estando doente Rúben, reuniram-se seus filhos e netos para visitá-lo” (Testamento de Rúben, 1,1-2).
“Cópia das palavras de Judá dirigidas a seus filhos antes de sua morte. Reuniram-se todos e foram vê-lo. Então ele lhes disse… “ (Testamento de Judá, 1,1-2).
“Cópia das palavras de Levi, de tudo o que ele ordenou a seus filhos antes de sua morte, de tudo o que deveriam fazer e de tudo o que lhes aconteceria até o dia do juízo” (Testamento de Levi, 1,1)[22].
O Testamento de Moisés, escrito entre 3 a.C. e 30 d.C. – portanto, contemporâneo de Jesus que vive entre 8-6 a.C. e 30 d.C. – é muito interessante para exemplificarmos como funciona o gênero testamentário. No capítulo I, de um total de 12, o texto fala da criação do mundo e da escolha de Israel, além de colocar Moisés como preexistente ao próprio mundo para ser o mediador da aliança, sendo ele o profeta por excelência. Diz Moisés a Josué em 1,10-18: “Esforça-te e tenha ânimo conforme o afã que te caracteriza, para que tudo o que foi ordenado o realizes de forma irrepreensível para Deus. Isto diz o Senhor do universo. Pois ele criou o universo por amor a seu povo, porém não quis revelar tal propósito da criação desde o começo do mundo, para que nela os gentios se sintam rejeitados e vilmente se refutem entre si com disputas. Consequentemente elaborou seu plano e me escolheu, eu que desde o começo do mundo fui preparado para ser o mediador de sua aliança. E agora te declaro que se cumpriu o tempo dos anos de minha vida e vou dormir com meus pais na presença de todo o povo. Tu, porém, receba este escrito, para que saibas como conservar os livros que vou te transmitir, livros que organizarás, ungirás com óleo de cedro e colocarás dentro de vasilhas de argila no lugar que ele fez desde o começo da criação do mundo, para que se invoque seu nome até o dia do arrependimento, no tempo da visita na qual o Senhor os visitará na consumação do final dos dias”.
No capítulo X, o livro fala do fim e do juízo final que punirá os ímpios e glorificará Israel: “Então se manifestará seu reino sobre toda a sua criação, então o diabo terá seu fim e a tristeza se afastará com ele. Então será investido o Enviado, que no mais alto se acha estabelecido (…) Pois se levantará o Celeste de seu trono real e sairá de sua santa morada inflamado de cólera em favor de seus filhos (…) Pois o Altíssimo Deus eterno se levantará sozinho, aparecerá para se vingar das nações e destruirá todos os seus ídolos. Então tu, Israel, serás feliz” (10,1-2a.3.7-8a)[23].
Aliás, Moisés é extremamente celebrado nesta época, como se pode ver em um texto de Fílon de Alexandria, o filósofo judeu que vive de 20 a.C. a 54 d.C.: “Falaremos de Moisés? Não é ele celebrado em toda parte como profeta? Eis o que foi dito: ‘Se um de vós se tornasse profeta, eu o Senhor, a ele me revelaria em visão e lhe falaria em sonhos. Mas… com meu servo Moisés… eu falo face a face… e não por figuras’ (Nm 12,6-8). E em outro lugar: ‘Nunca mais surgiu em Israel um profeta igual a Moisés, com quem o Senhor tratasse face a face’ (Dt 34,10)”[24].
[20]. PAUL, A. O que é o Intertestamento, p. 69.
[21]. Idem, ibidem, p. 70. 
[22]. TESTAMENTO DOS DOZE PATRIARCAS, em DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento V, p. 9-158.
[23]. TESTAMENTO DE MOISÉS, em DIEZ MACHO, A. ibidem, p. 215-275.
[24]. FÍLON DE ALEXANDRIA, Quid rerum divinarum heres sit LIII, 262, citado em PAUL, A. O que é o Intertestamento, p. 71.
http://airtonjo.com/site1/apocaliptica-4.htm

Série: A Fé Gnóstica - Parte 4 - O pensamento Apocalíptico e sua influência na Gnose

MANUSCRITO GREGO DO LIVRO DE ENOCH (1 ENOCH). O LIVRO DE ENOCH É CITADO NO NOVO TESTAMENTO EM VÁRIAS OCASIÕES: NA EPÍSTOLA DE JUDAS, 2 PEDRO,  EV. LUCAS E EPISTOLA AOS HEBREUS. O APOCALIPSE DE JOÃO QUASE QUE CITA TRECHOS INTEIROS DE 1 ENOCH. MUITAS IDEIAS DO APOCALIPSE DE JOÃO SÃO CLARAMENTE COPIADAS DE 1 ENOCH.  1 ENOCH FOI USADO MACIÇAMENTE PELOS ESSÊNIOS QUASE QUE COMO SUA PRINCIPAL E BÁSICA ESCRITURA, DA QUAL TIRAVAM ENSINAMENTOS MÍSTICOS E ASTRONÔMICOS. QUEM ESCREVEU O APOCALIPSE DE "JOÃO" PLAGIOU DESCARADAMENTE 1 ENOCH, QUE É CERCA 300 ANOS MAIS ANTIGO QUE O LIVRO DO NOVO TESTAMENTO.



3. O fim dos tempos

Para o pensamento apocalíptico, a história não é uma série de acontecimentos isolados, mas um todo unificado, um processo contínuo de Adão ao fim do mundo. Seu tempo é mítico: início e fim (do mundo) encontram-se em um lugar teórico – mítico -, onde tudo começa enquanto tudo termina. O mundo está sempre nascendo como novo. A morte deste mundo, para o surgimento de um mundo novo, assegura a existência do mundo. A oposição, ou melhor, a continuidade entre “este mundo” e o “mundo que virá”, a passagem de um mundo para o outro é típico da apocalíptica[14].
M. Hengel observa que marcante característica da apocalíptica dos assideus – judeus fiéis que lutam ao lado dos Macabeus no século II a.C. – é sua visão da história mundial como uma unidade, cujo centro é Israel.

Comentário: vemos essa "visão da história mundial como uma unidade" de forma bem clara nos Apocalipses gnósticos encontrados em Nag Hammadi. Nos apocalipses gnósticos, quase sempre vemos uma HISTÓRIA DE SALVAÇÃO DA ALMA. Como veremos no futuro na postagem sobre o Zoroastrismo e sua influência no Judaísmo e na cultura mundial, essa religião foi a primeira a expressar de forma clara e ricamente teológica uma ESCATOLOGIA da alma humana de forma apocalíptica, sendo (a religião zoroastriana) a primeira a criar o gênero literário Apocalipse. Como já vimos e veremos novamente, o gnosticismo surge no seio do judaísmo, porém fortemente sincretizado com o zoroastrismo e a filosofia grega, além de muitas outras filosofias e religiões. Essa escatologia apocalíptica se desenvolverá no judaísmo dando origem às Histórias de Salvação da Alma Gnósticas, encontradas em abundância nos textos de Nag Hammadi. O Apócrifo de João é o primeiro texto que apresenta uma História de Salvação Gnóstica ( origem celestial da alma, sua paixão, queda, arrependimento e posterior redenção e retorno ao céu). Grosso modo, os textos gnósticos podem ser divididos entre: Apocalipses, Discursos de Revelação, Diálogos de Revelação e Histórias de Salvação. Esses gêneros nem sempre estão claramente delimitados e muitas vezes se confundem uns com os outros e se misturam com Aretologias, Evangelhos, Tratados Filosóficos, Homilias, Diatribes e outros gêneros filosóficos e religiosos típicos do mundo helenístico e romano. Veremos no futuro uma estranhíssima e reveladora semelhança entre os Diálogos de Revelação Gnósticos, os Diálogos Platônicos e a Bhagavad Gita e outros textos hindus.

Depois do Apócrifo de João, a Hipóstase dos Arcontes se mostra um Discurso de Revelação construído sob uma forma básica de tratado filosófico-esotérico tipicamente helenista. Sobre a Origem do Mundo se mostra um tratado de Escatologia Universal misturado com História de Salvação da Alma gnóstica. A Exegese da Alma é uma História de Salvação gnóstico-cristã. O Livro de Tomé o Contendor é um Diálogo de Revelação de Jesus. O Evangelho dos Egípcios é um tratado sobre uma História de Salvação do gnosticismo sethiano, e assim por diante...
A base epistemológica da apocalíptica, pensa M. Hengel, é a revelação de uma “sabedoria” divina especial acerca da história, do cosmos e do destino dos homens, ocultada à razão humana. É uma típica reação contra o racionalismo grego, inclusive usando a astrologia como meio válido para atingir um conhecimento superior através da revelação[15].

Como veremos em postagem posterior sobre os Manuscritos de Qumran, os Essênios e os Terapeutas de Alexandria, foram encontrados nos Manuscritos de Qumran, datados de cerca do ano 130 antes de Cristo,  em hebraico e aramaico, calendários astronômicos baseados nos capítulos astronômicos do Livro de Enoc mais conhecido como 1Enoch ou 1Henoc, e HORÓSCOPOS, evidenciando que, além de ser um grupo apocalíptico (e portanto, fruto de intenso sincretismo entre judaísmo e zoroastrismo), os essênios também assimilaram a astrologia babilônica e não viam problema algum em usar a Torah e os Profetas, textos produzidos tardiamente por outros grupos apocalípticos judaicos (como o Livro de Henoc)  como também estudo, interpretação e aplicação da astrologia em suas doutrinas e práticas.
B. Frost diz: “Foi a fusão do mito e da escatologia que produziu o que chamamos de apocalíptica. Na realidade podemos definir a apocalíptica como a mitologização da escatologia”[16].

ORA! Os textos apocalípticos, judaicos, cristãos e gnósticos, todos eles são revelações e visões sob forma mitológica, descrevendo lugares fantásticos, seres de outros mundos e viagens a outros universos, que, evidentemente, são simbólicos e requerem uma interpretação para se descobrir o real significado do texto. Grande parte dos textos gnósticos, como visto, são diálogos de revelação contendo os mitos da alma (sua queda e redenção). Os gnósticos judaicos, juntos com cristãos primitivos, essênios, terapeutas e outros, eram todos grupos apocalípticos.
D. Hanson, falando da apocalíptica como filha e sucessora da profecia, diz que enquanto a profecia consegue integrar uma visão dos eventos cósmicos com os acontecimentos históricos, a apocalíptica perde esta tensão dialética e se refugia no mito, procurando saídas numa ordem cósmica supratemporal.

Essa busca por um refúgio atemporal, transcendente, místico, verdadeiro, longe das mazelas da vida humana, mágico, inteligível, é totalmente evidenciada pelos escritos gnósticos. A busca por um mundo superior, um tempo longe do mundo material e da Terra, procurando abrigo na esperança de um mundo melhor após a morte, ao lado dos deuses e de Deus, tudo isso grita ao leitor dos textos gnósticos. É o desprezo total e absoluto pela política, economia, sociedade, tudo que diz respeito à vida social e política é vista como a mais diabólica artimanha de Yaldabaoth para prender as almas divinas no corpo decadente e corruptível que é a matéria.


Na Pistis Sophia, Jesus ensina isso claramente, cheio de energia e certeza:

"Amém, eu vos digo: Por causa da raça dos homens, porque ela é material, eu me preocupei e trouxe-lhe todos os mistérios da Luz, para que possa purificar-se, pois os homens são o resíduo de toda a matéria de sua matéria.  Caso contrário nenhuma alma de toda a raça dos homens teria sido salva e não seria capaz de herdar o reino da Luz se eu não tivesse trazido os mistérios da purificação.
Porque as emanações da Luz não têm necessidade dos mistérios, pois elas são puras.  Mas é a raça dos homens que tem necessidade deles, porque todos os homens são resíduos materiais.  Por esta razão eu vos disse outrora: 'O sadio não tem necessidade do médico, mas o doente’ isto é: aqueles (que estão) na Luz não têm necessidade dos mistérios, porque eles são luzes purificadas; mas é a raça dos homens que tem necessidade deles, porque são resíduos materiais.
Por esta razão, portanto, pregai a toda a humanidade, dizendo: não cessai de buscar, dia e noite, até encontrardes os mistérios purificadores.  E dizei à raça dos homens: 'renunciai ao mundo e a toda sua matéria.  Pois aquele que dá e recebe no mundo, que come e bebe de sua matéria e que lhe presta excessiva atenção em seus relacionamentos adiciona outras matérias à sua.  Porque todo este mundo, tudo que nele se encontra e todas suas associações são resíduos materiais, e cada um será questionado a respeito de sua pureza'.
Por esta razão eu vos disse outrora: 'renunciai ao mundo e a toda a matéria nele, para que não acumuleis matéria adicional ao restante da vossa matéria.'  Em virtude disto, anunciai a todos os povos, dizendo:  'renunciai ao mundo e a todos seus relacionamentos, para que não acumuleis matéria adicional ao resto da matéria que se encontra em vós'.  E dizei-lhes: 'não pareis de buscar dia e noite e não descanseis até encontrardes os mistérios purificadores que vão vos purificar e tornar-vos luz pura, para que possais ir ao alto e herdar a luz de meu reino.'
Portanto, André e todos os teus irmãos e condiscípulos, por causa de todas as renúncias e sofrimentos que passastes em cada região, por causa de vossas mudanças em cada região, sendo transferidos de um corpo para outro, por causa de todas vossas aflições, depois de tudo isto, vós recebestes os mistérios purificadores, tornando-vos luz pura extremamente purificada.  Por esta razão, ireis para o alto e penetrareis em todas as regiões das grandes emanações da Luz e sereis reis no Reino da Luz para sempre.
- Pistis Sophia 2:100
“A escatologia profética se transforma em apocalíptica no momento em que se renuncia à tarefa de traduzir a visão cósmica para as categorias da realidade do mundo (…) Pois em sua forma não traduzida, o mito falava de uma salvação que alçava as pessoas humanas acima do fluxo da esfera mundana, uma salvação adquirida a nível atemporal, cósmico, que oferecia um escape desta ordem caída para uma nova criação que fazia a pessoa voltar para a segurança do estado primevo da natureza antes de sua queda na corrupção e mudança. Gradualmente os descendentes pós-exílicos dos profetas cederam a essa tentação e assim abdicaram do seu ofício político de integrar a mensagem ao âmbito político histórico”[17].

Enquanto o antigo judaísmo não se importava com a vida após a morte mas apenas com o estabelecimento de um Estado Judeu e da esperança de uma vida de prosperidade material, riqueza e abundância terrenas, a Apocalíptica e seus grupos (seitas judaicas como os essênios, cristãos, gnósticos, terapeutas e outros) vão justamente colocar toda sua esperança no mundo após a morte e rejeitar o mundo material como mundano e corrupto. É esta a interpretação que os Essênios de Qumran dão a Israel. Para os essênios, Israel não é uma coisa política, um país, estado ou nação. Israel é uma comunidade de pessoas, uma assembleia, uma Ecclesia, uma Sangha, uma Igreja de pessoas que abandonam os apegos ao mundo material e se unem para obedecer aos mandamentos de Deus, adquirir sabedoria e conhecimento e assim poderem ser salvos do sofrimento, da metempsicose (reencarnação), dos mundos inferiores, das trevas. A Lei de Moisés foi dada para estabelecer uma assembléia de seres puros e santos, e não um país de políticos corruptos e comerciantes ladrões. Os essênios são os verdadeiros judeus e cabe a eles restaurar o verdadeiro sentido da Lei de Moisés, corrompida pelos sacerdotes do Templo, pelos Macabeus, fariseus, saduceus, zelotes, publicanos e outros.
Éschaton, em grego, significa “último”, éschata “as últimas coisas”. O termo hebraico correspondente é ahrît: “fim”, “conclusão”, “resultado”, “desfecho”.Éschaton como “fim do tempo do mundo”, “destruição total do mundo” é um conceito que o Antigo Testamento ignora. É que para o pensamento hebraico, mesmo um acontecimento intra-histórico tem o valor de definitivo, é ahrît. A escatologia é, no AT, a transformação do mundo e da história, atingindo um “novo estado de coisas”, sem um encerramento definitivo das coisas. A escatologia está, assim, ligada à história, vista como um processo de intervenções de Iahweh em favor de Israel[18].

A antiga escatologia judaica estava ligada ao restabelecimento de Israel no mundo. A apocalíptica destrói essa mentalidade, essa esperança em uma renovação do Israel terreno. Os grupos apocalípticos buscam um Israel Transcendente, celestial, e não terreno...
Podemos dizer, neste sentido, que a apocalíptica é a radicalização da escatologia. Isaías 65,17;66,22 fala que Iahweh vai criar “novos céus e nova terra”, tema que é retomado em o Novo Testamento, em textos com forte coloração apocalíptica.
Mateus 19,28, por exemplo, diz que Jesus promete recompensar os discípulos que o seguem “quando as coisas forem renovadas, e o Filho do Homem se assentar no seu trono de glória”. Paulo, em Rm 8,19.22, diz que “a criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus”, pois “a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente”. 2Pd 3,13 fala dos novos céus e da nova terra: “O que nós esperamos, conforme a sua promessa, são novos céus e nova terra, onde habitará a justiça”, enquanto Ap 21,1 escreve: “Vi então um céu novo e uma nova terra…”
A apocalíptica costuma dividir a história em períodos, especialmente em uma sucessão de 4 impérios (cf. Dn 2), na convicção de que o homem não é eterno (o número 4 simboliza as coisas do mundo e, portanto, a caducidade do poder) e de que Deus dirige a história e toma iniciativas a seu respeito.
Em Dn 7,1-28, o nosso herói sonha com quatro animais terríveis que saem do mar e que representam 4 impérios:
10: semelhante a um leão: império babilônico
20: semelhante a um urso: império medo
30: semelhante a um leopardo: império persa
40: um animal diferente, com 10 chifres e mais um 110 chifre pequeno que derruba três dos outros : império grego
Este quarto animal é o reino de Alexandre Magno. Os 10 chifres são os reis selêucidas. O chifre menor – que tem boca e olhos – é Antíoco IV Epífanes, que derruba três dos outros, provavelmente três reis vencidos por ele: Ptolomeu IV Filometor, Ptolomeu VII Evergetes e Artaxes, rei da Armênia.
Mas aí acontece a reviravolta a partir do v. 9: assenta-se a corte celeste em sessão solene de um tribunal. Os v. 11-12 dizem que o 40  animal é morto e que, embora os três primeiros ainda sobrevivam, são agora inofensivos: “Eu continuava olhando, então, por causa do ruído das palavras arrogantes que proferia aquele chifre, quando vi que o animal fora morto, e seu cadáver destruído e entregue no abrasamento do fogo. Dos outros animais também foi retirado o poder, mas eles receberam um prolongamento de vida, até uma data e um tempo determinados”.
Os vv. 13-14 descrevem o reino do Filho do Homem – em aramaico bar nasha’ = “ser humano”, “homem” -, assim como descreveu os reinos anteriores. O Filho do Homem não é, no contexto de Dn 7, um indivíduo, mas uma figura de linguagem para um coletivo. O que o livro de Daniel faz é opor uma figura da raça humana às quatro feras anteriores. Esta figura simboliza o reino dos “santos” (= povo santo) que se concretiza como eterno.
Quando, no futuro, falarmos da Epístola de Eugnosto e do gnosticismo propriamente dito, já formulado como doutrina esotérica judaica pré-cristã com seus pressupostos delimitados, esclareceremos as questões a respeito do Filho do Homem, que muito tem a ver com a noção platônica da Ideia Inteligível... apenas posteriormente esse conceito será sincretizado com o Saoshyant zoroastriano (messias no judaísmo).

Diz Dn 7,13-14: “Eu continuava contemplando, nas minhas visões noturnas, quando notei, vindo sobre as nuvens do céu, um como Filho de Homem. Ele adiantou-se até o Ancião e foi introduzido à sua presença. A ele foi outorgado o império a honra e o reino, e todos os povos, nações e línguas o serviram. Seu império é um império eterno que jamais passará e seu reino jamais será destruído”.
No livro etiópico de Henoc já se fala de um “Filho do Homem” como indivíduo e personificação do Messias. Em 46,1-8 é descrito o Filho do Homem: “Este é o Filho do Homem, de quem era a justiça e a justiça morava com ele. Ele revelará todos os tesouros do oculto, pois, o Senhor dos espíritos o escolheu, e é aquele cujo destino é superior a todos para sempre por sua retidão frente ao Senhor dos espíritos. Este Filho do Homem que vistes tirará os reis e poderosos de seus leitos e os fortes de seus assentos, afrouxará os freios dos poderosos e despedaçará os dentes dos pecadores. Arrancará os reis de seus tronos e reinos, porque não o exaltam nem o louvam, nem dão graças porque lhes foi dado o reino” (46,3-5).
“Parece claro que o autor das Parábolas [seção do Livro Etiópico de Henoc, capítulos 37-41] representa uma linha de tradição que evolui para além das concepções de Dn 7, unindo em uma só pessoa as figuras, primitivamente separadas, do Messias – Rei Eleito – Servo de Iahweh – Juiz Justo (+ ‘Filho do Homem’)”, comenta A. Diez Macho[19].
Esta figura é o precedente imediato do uso neotestamentário, onde frequentemente Jesus se refere a si mesmo como o Filho do Homem (cf. Mt 8,20; 11,19; 20,28; 24,30; Jo 3,14).
A apocalíptica, por outro lado, acredita que o “fim do mundo” será precedido por um período de grande sofrimento e domínio do mal, que se concretiza através de anjos decaídos, na esfera divina, e chefes poderosos, na esfera humana. Além do que, o escritor apocalíptico vê o sofrimento de sua época com sentido cósmico e universal, donde decorre que os que sofrem perseguições estão fazendo algo além de sua própria vida, estão conduzindo os acontecimentos globais do homem.

Anjos maléficos, chefes (governantes ou arcontes) poderosos que perseguem a alma humana, grande sofrimento na vida terrena, acontecimentos globais e cataclísmicos... tudo isso é a base da maioria dos textos gnósticos, numa arrepiante e horripilante visão pessimista da realidade: a alma humana está presa num mundo falso inventado por um falso deus que a odeia e a quer levá-la para mundos piores e mais tenebrosos ainda. Esse falso deus tem uma hoste inimaginável de anjos maléficos e espíritos poderosos que oprimem a alma e fazem de tudo pra mantê-la presa no mundo material. A visão apocalíptica do conflito cósmico no fim dos tempos é vista pelos gnósticos como o arquétipo do sofrimento que o gnóstico vive no presente.
Mt 24-25 descreve a queda de Jerusalém em 70 d.C. combinada com a ideia de fim do mundo. Diz Mt 24,21: “Pois naquele tempo haverá uma grande tribulação, tal como não houve desde o princípio do mundo até agora, nem tornará a haver jamais”.
E Mt 24,29-31 completa:“Logo após a tribulação daqueles dias, o sol escurecerá, a lua não dará a sua claridade, as estrelas cairão do céu e os poderes do céu serão abalados. Então aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem e todas as tribos da terra baterão no peito e verão o Filho do Homem vindo sobre as nuvens do céu com poder e grande glória. Ele enviará os seus anjos que, ao som da grande trombeta, reunirão os seus eleitos dos quatro ventos, de uma extremidade até a outra extremidade do céu”.
A Regra da Comunidade de Qumran, escrita no século II a.C., diz que “Deus, nos mistérios de seu conhecimento e na sabedoria de sua glória, fixou um fim para a existência da injustiça, e no tempo de sua visita a destruirá para sempre. Então a verdade se levantará para sempre no mundo que se contaminou em caminhos de maldade durante o domínio da injustiça até o momento decretado para o juízo” (1QSIV 18-20).
O tema do mal como consequência da união de anjos com mulheres, já presente em Gn 6,1-4, é bem desenvolvido no Livro Etiópico de Henoc. Em 6,1-2 se lê: “Naqueles dias, quando se multiplicaram os filhos dos homens, aconteceu que lhes nasceram filhas belas e formosas. Viram-nas os anjos, os filhos dos céus, desejaram-nas e disseram: ‘Vamos, escolhamos entre os humanos e geremos filhos'”.
Em 7,1-6, o Livro Etiópico de Henoc diz: “E tomaram mulheres; cada um escolheu a sua e começaram a conviver e a unir-se a elas, ensinando-lhes ensalmos e esconjuros e treinando-as na coleta de raízes e plantas. Ficaram grávidas e geraram enormes gigantes de três mil côvados de altura cada um. Consumiam todo o produto dos homens, até que foi impossível para estes alimentá-los. Então os gigantes voltaram-se contra eles e comiam os homens. Começaram a pecar com aves, feras, répteis e peixes, consumindo sua carne e bebendo o seu sangue. Então a terra se queixou dos iníquos”.
Outro elemento: na visão apocalíptica da história há um sentido de urgência, pois é para já o estabelecimento do Reino de Deus. Todos nós conhecemos Mc 1,14-15: “Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galileia proclamando o Evangelho de Deus: ‘Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho”.
Se já está na hora da virada, é necessário que se mantenha uma rigorosa conduta pessoal. É uma ética sem concessões. Em Qumran, onde se exige máximo rigor no comportamento dos membros da comunidade, as punições por desobediência às normas estabelecidas são severíssimas (cf. 1QS VI, 24-VII,27). Só um exemplo: “Aquele cujo espírito se aparta do fundamento da comunidade para trair a verdade e caminhar na obstinação de seu coração, se voltar, será castigado dois anos; durante o primeiro ano não se aproximará do alimento puro dos Numerosos. E durante o segundo não se aproximará da bebida dos Numerosos, e sentar-se-á atrás de todos os homens da comunidade” (1QSVII, 20-22).
Na apocalíptica a esperança no futuro é expressa através do tema da ressurreição. As definições de como e quando, entretanto, variam de livro para livro. Também se faz necessário, segundo o pensamento apocalíptico, um grande julgamento no término da história, quando os ímpios serão condenados e os justos salvos e recompensados na era messiânica que se estabelece definitivamente.
Mt 25,31-32.34.41 diz que “Quando o Filho do Homem vier em sua glória, e todos os anjos com ele, então se assentará no trono de sua glória. E serão reunidos em sua presença todas as nações e ele separará os homens uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos (…) Então dirá o rei aos que estiverem à sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo’ (…) Em seguida, dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos'”.
No Livro Etiópico de Henoc 91,7-8 se diz que “Quando crescer a iniquidade, o pecado, a blasfêmia e a violência em todas as nações, e aumentar a perversidade, a culpa e a impureza, virá o castigo do céu contra todos eles, e sairá o Santo Senhor com cólera e castigo para julgar a terra. Nestes dias será cortada a violência pela raiz, e as raízes da iniquidade com as da mentira serão aniquiladas sob o céu”.
E em 47,3-4: “Nestes dias vi o ‘Princípio dos dias’ sentar-se no trono de glória e os livros dos vivos foram abertos diante dele. E toda a coorte do céu superior e seu cortejo estava de pé diante dele. O coração dos santos encheu-se de alegria, pois se cumprira o cômputo da justiça, tinha sido ouvida a oração dos justos e o sangue dos inocentes era reclamado diante do Senhor dos espíritos”“Nestes dias vi o ‘Princípio dos dias’ sentar-se no trono de glória e os livros dos vivos foram abertos diante dele. E toda a coorte do céu superior e seu cortejo estava de pé diante dele. O coração dos santos encheu-se de alegria, pois se cumprira o cômputo da justiça, tinha sido ouvida a oração dos justos e o sangue dos inocentes era reclamado diante do Senhor dos espíritos”.

[14]. Cf. PAUL, A. O que é o Intertestamento, p. 67; ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica, p. 157-188.
[15]. Cf. HENGEL, M. Judaism and Hellenism I, p. 250.
[16]. FROST, S. B. Old Testament Apocalyptic: Its Origins and Growth. London, 1952, p. 33, citado em PAUL, A. O que é o Intertestamento, p. 67.
[17]. HANSON, P. D. Apocalíptica no Antigo Testamento: um reexame, em VV. AA. Apocalipsismo, p. 50-51.
[18]. Cf. DINGERMANN, F. Origem e desenvolvimento da escatologia no AT, em SCHREINER, J. (org.) Palavra e Mensagem. São Paulo: Paulus,1978, p. 430-443.
[19]. DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento IV. Madrid: Cristiandad, 1984, p. 30.
http://airtonjo.com/site1/apocaliptica-3.htm