4. Testamento e arrebatamento
Os livros bíblicos, tanto os do AT quanto os do NT, não trazem, com raras exceções, como o Eclesiástico, a assinatura de seu autor. Mas os livros apocalípticos são assinados. Só que também não com os nomes de seus autores e sim com o nome de um personagem importante do passado que, em geral, é a figura central do livro. Este é um recurso literário conhecido como pseudonímia. A pseudonímia é o uso de um “nome falso”, processo através do qual antigos heróis da história israelita intervêm no momento presente, o momento vivido pelo escritor. Deste modo, Henoc, Salomão, Moisés, Baruc, Esdras, Jó, Adão, Abraão, Elias, Isaías e tantos outros aparecem como autores e personagens centrais de livros escritos entre 200 a.C. e 100 d.C.
COMENTÁRIO: A pseudepigrafia se refere a textos ANTIGOS e importantes do ponto de vista filosófico-religioso, aos quais são atribuídos falsas autorias. Já a pseudonímia é a mesma coisa, só que não necessariamente sobre textos antigos e importantes, mas se refere a qualquer texto de qualquer época. Portanto, podem ser usados como sinônimos atentando-se a isso.
Em o NT, com exceção de sete cartas comprovadamente autênticas de Paulo (Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, 1 Tessalonicenses, Filipenses e Filêmon), os “autores”, como Mateus, João, Lucas etc são atribuições posteriores da tradição. “Assim, o primeiro evangelho canônico não deveria chamar-se Evangelho de Mateus (designação essa que lhe foi dada a posteriori, por critérios extrínsecos aos da redação propriamente dita), mas ‘Livro da origem de Jesus Cristo’ (de suas primeiras palavras: Bíblos genéseos Iesou Christou); e a última obra da Bíblia cristã, o Apocalipse de João, deveria chamar-se: ‘Revelação de Jesus Cristo’ (conforme suas primeiras palavras: Apokálypsis Iesou Christou)“[20].
Basta olharmos os títulos de alguns livros apocalípticos judaicos para termos uma noção da extensão do uso da pseudonímia. Vejamos:
O Livro Etiópico de Henoc (que é o mesmo 1HENOC ou 1ENOCH em sua versão traduzida para o etíope)
. origem: Palestina
. autor : ambiente judaico
. data: século II a.C.-I d. C.
. língua: original hebraico ou aramaico; versões: grego e etíope
Os Testamentos dos Doze Patriarcas
. origem: Palestina
. autor: ou um judeu-cristão do século II que teria reunido uma coletânea de testamentos” já existentes; ou foram feitas interpolações cristãs em obra judaica pré-cristã; ou é uma obra essênia
. data: 130-63 a.C.
. língua: original hebraico ou aramaico; versão: grego
O Livro dos Jubileus
. origem: Palestina
. autor: um sacerdote (?) com ideário essênio
. data: 100 a.C.
. língua: original hebraico; versões: grego, conservado em etíope
Os Salmos de Salomão
. origem: Palestina
. autor: possivelmente um fariseu
. data: 63-40 a.C.
. língua: original hebraico; versões: grego e siríaco
Testamento (ou Assunção) de Moisés
. origem: Palestina
. autor: ambiente farisaico
. data: 3 a.C.-30 d.C.
. língua: original hebraico ou aramaico; versões: grego e latim
O Livro Eslavo de Henoc
. origem: Palestina? Egito?
. autor: um judeu ou judeu-cristão
. data: século I d.C.
. língua: original grego; versão: eslavo antigo
O Apocalipse Siríaco de Baruc
. origem: Palestina
. autor: um fariseu
. data: 75-100 d.C.
. língua: original hebraico ou aramaico; versões: grego e siríaco
O IV Livro de Esdras
. origem: Palestina
. autor: um fariseu
. data: fim do século I d.C.
. língua: original hebraico ou aramaico; versões: grego,que originou 6 outras, sendo a latina a melhor
Veremos que em IV Esdras os judeus assimilaram e copiaram do zoroastrismo as suas concepções apocalípticas e messiânicas.
Além destes poucos mencionados, porque mais importantes e conhecidos, há inúmeros outros livros deste período que utilizam o recurso da pseudonímia, como: Ascensão de Isaías, Apocalipse de Elias, Apocalipse de Abraão, Apocalipse de Adão, Testamento de Isaac, Testamento de Jó, Testamento de Salomão, Testamento de Jacó etc.
Assinar um livro tardio com o nome de um personagem importante das origens é uma eficiente forma de legitimá-lo. Os grandes personagens do passado do povo, através desta intervenção, asseguram a continuidade da história israelita, eles que são seus criadores e condutores. Eles se fazem presentes através do livro, processo no qual a “sociabilidade” da escritura é essencial.
A continuidade da história, através da pseudonímia, se afirma de dois modos: pelo testamento e pelo arrebatamento, que, às vezes, aparecem unidos.
Os apocalipses tomam frequentemente a forma de testamento ou “discurso de despedida”, gênero bastante usado em Israel. Está presente tanto no Antigo quanto em o Novo Testamento.
Em Gn 47,29-50,14 Jacó se despede de seus filhos. Gn 49,1-2 diz: “Jacó chamou seus filhos e disse: “Reuni-vos, eu vos anunciarei o que vos acontecerá nos tempos vindouros. Reuni-vos, escutai, filhos de Jacó, escutai Israel, vosso pai'”.
Depois de descrever a bênção de Jacó para cada um dos filhos, o texto conclui em 49,28: “Todos estes formam as tribos de Israel, em número de doze, e eis o que lhes disse seu pai. Ele os abençoou: a cada um deu uma bênção que lhes convinha”.
O testamento de Moisés em Dt 33,1-29 começa assim: “Esta é a bênção com que Moisés, homem de Deus, abençoou os filhos de Israel, antes de morrer”(v. 1).
O testamento de Paulo em At 20,17-38, mais conhecido como o “Discurso de Mileto”, dirigido aos anciãos de Éfeso, diz, entre outras coisas: “Vós bem sabeis como procedi para convosco todo o tempo, desde o primeiro dia em que cheguei à Ásia (…) Agora, acorrentado pelo Espírito, dirijo-me a Jerusalém, sem saber o que lá me sucederá (…) Agora, porém, estou certo de que não mais vereis minha face, vós todos entre os quais passei proclamando o Reino” (At 20,18b.22.25).
O evangelho de João, nos capítulos 13-17, traz um longo discurso de despedida de Jesus aos seus discípulos. Começa assim: “Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (13,1).
Mas “é sobretudo na literatura do judaísmo tardio que vemos os grandes heróis de Israel se dirigirem, antes de sua morte e de sua subida ao céu (ascensão), aos que lhe são caros ou ao seu povo”, nos lembra A. Paul[21].
No Testamento dos Doze Patriarcas podemos ler, por exemplo: “Cópia do testamento de Rúben e das recomendações a seus filhos, antes de morrer aos cento e vinte e cinco anos de idade. Dois anos após a morte de José, estando doente Rúben, reuniram-se seus filhos e netos para visitá-lo” (Testamento de Rúben, 1,1-2).
“Cópia das palavras de Judá dirigidas a seus filhos antes de sua morte. Reuniram-se todos e foram vê-lo. Então ele lhes disse… “ (Testamento de Judá, 1,1-2).
“Cópia das palavras de Levi, de tudo o que ele ordenou a seus filhos antes de sua morte, de tudo o que deveriam fazer e de tudo o que lhes aconteceria até o dia do juízo” (Testamento de Levi, 1,1)[22].
O Testamento de Moisés, escrito entre 3 a.C. e 30 d.C. – portanto, contemporâneo de Jesus que vive entre 8-6 a.C. e 30 d.C. – é muito interessante para exemplificarmos como funciona o gênero testamentário. No capítulo I, de um total de 12, o texto fala da criação do mundo e da escolha de Israel, além de colocar Moisés como preexistente ao próprio mundo para ser o mediador da aliança, sendo ele o profeta por excelência. Diz Moisés a Josué em 1,10-18: “Esforça-te e tenha ânimo conforme o afã que te caracteriza, para que tudo o que foi ordenado o realizes de forma irrepreensível para Deus. Isto diz o Senhor do universo. Pois ele criou o universo por amor a seu povo, porém não quis revelar tal propósito da criação desde o começo do mundo, para que nela os gentios se sintam rejeitados e vilmente se refutem entre si com disputas. Consequentemente elaborou seu plano e me escolheu, eu que desde o começo do mundo fui preparado para ser o mediador de sua aliança. E agora te declaro que se cumpriu o tempo dos anos de minha vida e vou dormir com meus pais na presença de todo o povo. Tu, porém, receba este escrito, para que saibas como conservar os livros que vou te transmitir, livros que organizarás, ungirás com óleo de cedro e colocarás dentro de vasilhas de argila no lugar que ele fez desde o começo da criação do mundo, para que se invoque seu nome até o dia do arrependimento, no tempo da visita na qual o Senhor os visitará na consumação do final dos dias”.
No capítulo X, o livro fala do fim e do juízo final que punirá os ímpios e glorificará Israel: “Então se manifestará seu reino sobre toda a sua criação, então o diabo terá seu fim e a tristeza se afastará com ele. Então será investido o Enviado, que no mais alto se acha estabelecido (…) Pois se levantará o Celeste de seu trono real e sairá de sua santa morada inflamado de cólera em favor de seus filhos (…) Pois o Altíssimo Deus eterno se levantará sozinho, aparecerá para se vingar das nações e destruirá todos os seus ídolos. Então tu, Israel, serás feliz” (10,1-2a.3.7-8a)[23].
Aliás, Moisés é extremamente celebrado nesta época, como se pode ver em um texto de Fílon de Alexandria, o filósofo judeu que vive de 20 a.C. a 54 d.C.: “Falaremos de Moisés? Não é ele celebrado em toda parte como profeta? Eis o que foi dito: ‘Se um de vós se tornasse profeta, eu o Senhor, a ele me revelaria em visão e lhe falaria em sonhos. Mas… com meu servo Moisés… eu falo face a face… e não por figuras’ (Nm 12,6-8). E em outro lugar: ‘Nunca mais surgiu em Israel um profeta igual a Moisés, com quem o Senhor tratasse face a face’ (Dt 34,10)”[24].
[20]. PAUL, A. O que é o Intertestamento, p. 69.
[21]. Idem, ibidem, p. 70.
[22]. TESTAMENTO DOS DOZE PATRIARCAS, em DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento V, p. 9-158.
[23]. TESTAMENTO DE MOISÉS, em DIEZ MACHO, A. ibidem, p. 215-275.
[24]. FÍLON DE ALEXANDRIA, Quid rerum divinarum heres sit LIII, 262, citado em PAUL, A. O que é o Intertestamento, p. 71.
http://airtonjo.com/site1/apocaliptica-4.htm
Nenhum comentário:
Postar um comentário