sábado, 2 de novembro de 2019

Série: A Fé Gnóstica - Parte 2 - Origens do Gnosticismo: Judaísmo e Helenismo


ARCO DE TITO, ERIGIDO EM ROMA. COMEMORA A DERROTA DOS JUDEUS E A TOMADA DE JERUSALÉM EM 67 D.C.


INTRODUÇÃO

Na sociedade israelita tradicional as relações sociais são reguladas pelo sistema de parentesco. As famílias se agrupam numa formação hierarquizada de tipo patriarcal conhecida como mishpaha (= clã). A reprodução das famílias, a posse da terra, a defesa das propriedades, as festas cultuais e a memória coletiva, por exemplo, são organizadas no interior da estrutura clânica, gerando forte coesão social e intensa solidariedade entre seus membros. Teologicamente, esta estrutura se expressa no tema do êxodo, que é o caminho do Egito para a terra de Israel, mas que também é a passagem da escravidão para a liberdade, caracterizada na destruição de uma engrenagem de opressão e na construção de uma sociedade soberana e solidária.



Porém, com o restabelecimento do domínio estrangeiro a partir do exílio, este projeto social vai se encontrar num tremendo impasse. Especialmente a partir dos domínios grego e romano que helenizam inexoravelmente a Palestina.



Em 332 a.C. o macedônio Alexandre Magno anexa a Palestina ao seu império. Mas morre pouco depois e seus generais travam acirrada luta pela sucessão. O distrito de Judá pertencerá a senhores diversos até 301 a.C., quando será controlado pelos Ptolomeus, reis macedônios que governam a partir de Alexandria, no Egito.

A partir de 198 a.C. a Palestina passa para o domínio dos Selêucidas, reis macedônios que governam a partir de Antioquia, na Síria.



A aristocracia judaica sente-se prejudicada, no seu processo de enriquecimento, pela limitação imposta pelas leis judaicas que continuam em vigor. Aproveitando momento favorável, negocia com os Selêucidas a implantação dos valores e do modo de vida gregos na região da Judeia. A lei judaica é abolida e a prática do judaísmo é proibida. Os judeus fiéis à tradição são perseguidos e mortos.



Isto provoca um levante armado de sacerdotes e camponeses, que, chefiados pelos Macabeus, conseguem tomar o poder no século II a.C.  Durante 79 anos a Judeia será independente e governada pelos Macabeus, que concentram em suas mãos os poderes político, militar e religioso.



A breve e conturbada independência da Judeia encontra seu fim quando o general Pompeu anexa a Roma, em 63 a.C., os territórios do decadente reino selêucida.

A pesquisa em andamento* quer exatamente enfocar qual é a relação entre a Religião e a Sociedade neste contexto específico do judaísmo entre 332 a.C. (anexação da Judeia por Alexandre) e 63 a.C. (anexação da Judeia por Roma).



Como acontecia a resistência e a submissão à nova realidade grega através da mesma religião judaica? O que faz o judaísmo ser o que é? Sua força não viria do papel simbólico da religião que cria identidade através da diferença?

E uma questão muito próxima a nós: como podem as tradições e práticas religiosas de um povo servir como instrumento de resistência à dominação imperialista e classista hoje?



O estudo se desenvolve em duas partes: na primeira abordo a questão histórica em cinco capítulos: a conquista de Alexandre, o governo dos Ptolomeus, a helenização promovida pelos Selêucidas, a resistência dos Macabeus e a independência por eles conseguida até a chegada de Roma.



Na segunda parte, abordo em cinco capítulos, os instrumentos da helenização (tais como o exército, a pólis, a língua grega comum, os cultos reais e o ginásio), a visão grega dos judeus, a visão judaica dos gregos, a apocalíptica e os essênios.



Gostaria de salientar estes dois últimos elementos: o pensamento apocalíptico, tendência presente em variados grupos, como assideus, fariseus, essênios e cristãos é de grande importância para a compreensão da produção bíblica deste período; o outro é mais específico, estranho e fascinante: é o caso dos essênios que desenvolvem uma teologia mais elaborada, recentemente descoberta em Qumran.


Comentário: como veremos no futuro, a APOCALÍPTICA e o desenvolvimento mais elaborado da teologia serão FORTES ELEMENTOS constantes dos textos gnósticos e das doutrinas dos primeiros pensadores da elite judaica letrada e culta, abertos à influência da filosofia e das especulações típicas do pensamento grego antigo, responsáveis pelo nascimento dos primeiros sistemas gnósticos.



Enfim, uma chave de leitura: frequentemente, o helenismo, consequência das conquistas de Alexandre, tem sido lido como uma fusão de culturas e um processo glorioso que favoreceu o desenvolvimento da dominante cultural ocidental via Império Romano e seus herdeiros. Prefiro enfocar o helenismo como um processo imperialista grego, depois romano, que descaracterizou as culturas orientais dominadas, gerando variadas formas de resistência do povo sofrido daquele tempo naqueles países.

http://blog.airtonjo.com/2015/02/judaismo-e-helenismo-ii.html

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INFLUÊNCIA HELENISTA NO PENSAMENTO JUDAICO E NA CRIAÇÃO DE TEXTOS BÍBLICOS

Refletir sobre a história, mesmo a muito antiga, antes de Cristo, pode ser extremamente atual. Pode dar-nos uma nova dimensão da realidade, sugerir analogias, ajudar-nos a compreender o homem no mundo e sua história. Por isso estou falando de judaísmo e helenismo.



Mais atenção ainda deve dar ao tema o cristão que milita hoje neste nosso mundo tão dinâmico e tão pluralista, refletindo-o à luz da fé. É preciso lembrar que nós somos “netos” dos gregos e “herdeiros” dos judeus em nossas práticas culturais e religiosas.



O artigo prossegue com os seguintes itens:

1. A Palestina de Alexandre a Pompeu

2. Os agentes do helenismo na Palestina

3. Frutos da helenização na Palestina

4. As tendências do pensamento judaico em seu confronto com o helenismo

Conclusão

Leituras recomendadas


Vou transcrever aqui apenas o item 4, as tendências do pensamento judaico em seu confronto com o helenismo (omitindo as 5 notas de rodapé deste trecho) e aconclusão.

4. As tendências do pensamento judaico em seu confronto com o helenismo



É bastante difícil demonstrar influências helenísticas diretas nos escritos judaicos da época grega.



Por razões diversas. A dificuldade linguística, em primeiro lugar. Os conceitos gregos são imperfeitamente transmitidos em construções literárias  semitas. Mas não é só. Há ainda incerteza quanto às datas de composição de várias obras, a influência de contatos com os gregos anteriores à época de Alexandre Magno e a parcialidade dos combativos escritos anti-helênicos conservados, como os documentos essênios recuperados na região do Mar Morto ou os escritos dos grupos apocalípticos.



Por outro lado, entre o fim do domínio persa e a chegada de Roma à região, chama a atenção a quantidade e a variedade da literatura produzida pelos judeus. Isto indica surpreendente efervescência na minúscula comunidade judaica.

Por isso, mais do que traçar possíveis influências, procura-se seguir certas linhas de desenvolvimento do pensamento judaico em sua controvérsia com a pressão cultural da época helenística.

COMENTÁRIO: Esse período desde o fim do domínio persa e a chegada de Roma é justamente o período helenístico, em que Alexandre Magno ( ou O GRANDE) vai promover a helenização forçada de todas as regiões dominadas pelos gregos, principalmente os povos orientais, partindo de um pensamento preconceituoso e imperialista de pretender "civilizar" outras civilizações. No entanto, esse projeto social se tornou benéfico pois o mundo grego acabou sendo "invadido" pelas correntes de pensamento orientais e bárbaras e o velho mundo grego da pólis e suas estruturas se corroeram: a verdade da superioridade grega, de seus modos, cultura, política e economia se viu pequena diante da riqueza cultural dos povos recém "conhecidos", abrindo as portas para uma febre de sincretismos, ecletismos e misturas sociais, culturais, religiosas, raciais-étnicas que moldou a história do mundo. Como já foi visto no blog, o conceito de Buddha sofreu uma alteração substantiva quando parte da Índia caiu sob domínio grego-macedônio. Como veremos, o Imperador Ashoka, da dinastia dos Máurias na Índia, promoveu uma globalização cultural ao proibir por Éditos (decretos imperiais) as perseguições religiosas (os famosos Éditos de Ashoka) e instituir a monges e estudantes budistas a tarefa de fundar escolas onde todas as religiões e filosofias eram estudadas, analisadas, comparadas, visando a evolução da doutrina e das práticas ritualísticas, garantindo a liberdade de crença a todos os habitantes do seu império. Quando o império de Alexandre começou a ruir, surgiram onde hoje é Afeganistão, Paquistão e em regiões dos Himalaias, reinos como o Reino Greco-bactriano e outros indo-gregos e greco-budistas (a arte greco-budista em abundância prova a potencialidade sincrética do período), abrangendo áreas com populações tribais politeístas de fisionomia "árabe", semi-tribais de fenótipo chinês dos himalaias, pequenos reinos hindus e populações indianas convertidas ao budismo, todos recebendo educação e cultura grega, tomando ciência das culturas egípcia, celta, eslava, romana, judaica, síria, etc. O sincretismo e a comparação especulativa das filosofias e religiões são práticas "dogmáticas" das igrejas gnósticas.


De imediato, observa-se o aparecimento de novos gêneros literários, todos típicos do mundo grego, incomuns entre os judeus. Como a epístola, o romance histórico, a narrativa aretológica (= elogio do comportamento virtuoso) e a pseudoepigrafia na literatura apocalíptica.

Mas, de modo geral, duas correntes de pensamento podem ser percebidas nesta época: a corrente sapiencial, desenvolvida nas várias “escolas de sabedoria”, com múltiplas tendências, e a corrente apocalíptica, filha da enfraquecida Profecia, leitura camuflada e simbólica, mas contundente, da nova realidade.



Talvez o ponto comum mais evidente nas tendências predominantes de pensamento seja o uso de uma incipiente racionalidade. Que se manifesta, entre outras possibilidades, na absorção de termos abstratos - desconhecidos na estrutura mental semita, mas centrais no pensamento grego - e no começo de uma certa sistematização e regularidade nas descrições da natureza, da história e da própria existência humana.



Isto é mais evidente, é claro, nos escritos sapienciais. Uma forte tendência das escolas de sabedoria, por exemplo, é a de realizar a fusão da Sabedoria (Sophia) internacional com a piedade tradicional, como pode ser visto no Eclesiástico ou em Provérbios 1-9. Ou ainda a tendência crítica e universalista de Jó e Eclesiastes.



Procurou-se, durante muito tempo, estabelecer a possível influência da filosofia grega clássica sobre a sabedoria judaica. Talvez seja mais correto falarmos de um estágio “pré-filosófico” da sabedoria judaica, com maiores afinidades com a filosofia popular grega. Há aí, claro, fortes tendências sincréticas, mas o pensamento grego que mais fortemente penetra nos arraiais judaicos é o estoicismo, em suas versões mais populares.

Um dos aspectos mais populares do estoicismo é a sua pregação de uma fraternidade universal entre os homens, onde não haveria distinção entre gregos e bárbaros, nem entre livres e escravos.



O estoicismo é primordial. Esta filosofia grega, típica do helenismo, é produto de seu tempo, das transformações sociais, políticas, religiosas pelas quais passou o mundo grego e influenciou sobremaneira o cristianismo nascente, em sua raiz. Impossível não ler as epístolas de Paulo e os evangelhos e não perceber o sabor do estoicismo grego abundante nos textos, claro reinterpretado e amoldado ao pensamento individual do autor.



Segundo o estoicismo  “o essencial é distinguir  ‘o que depende de nós’ e  ‘o que não depende de nós’. No segundo grupo fica tudo o que depende das paixões, e o que é preciso aprender a renunciar através de uma longa ascese que vai conduzir ao domínio sobre si mesmo, à apatia (ausência de paixão). O que depende de nós é precisamente a vontade, que faz do sábio um igual a Deus. Moral dura, mas exaltante, que torna o homem independente das circunstâncias, e, em particular, da sua classe e da sua situação. Mas esta moral estoica é fatalista, pois sustenta o conformismo a uma dada ordem.


Falávamos de Sophia. Contudo, mesmo os escritos apocalípticos mais antigos, provenientes dos círculos dos assideus que combatem a helenização na Palestina, só se tornam possíveis através da assimilação de variados elementos sincréticos estrangeiros, como os babilônios, os persas e gregos.



Conclui-se, portanto, que, pelo menos nos primeiros tempos, o helenismo não causou rupturas graves no desenvolvimento do pensamento judaico. Há, isto sim, uma progressiva assimilação e relativa filtragem, que pode ser rastreada desde a metade do séc. III. a.C.

Abordo aqui, a título de exemplo e demonstração do que vem sendo dito sobre a influência grega, com toda a provisoriedade exigida, apenas alguns aspectos da corrente sapiencial, exemplificada através do Eclesiastes  e do Eclesiástico.


No Eclesiastes ou Qohélet observam-se evidentes indícios da nova realidade greco-palestina. A obra é escrita pela metade do séc. III a.C., portanto, no período do boom econômico ptolomaico.


Chama a atenção do leitor o frio ceticismo do autor (sobre ceticismo, veja a postagem http://anaomente.blogspot.com.br/2014/11/raizes-orientais-do-ceticismo-de-pirro.html), sua racionalidade extremamente objetiva, sua desilusão com a teologia otimista da sabedoria tradicional. O sentido do governo divino sobre o mundo não é óbvio e a justiça javista não funciona. O homem fica nas mãos de um destino desconhecido e hostil. Ecl 2,17 afirma: “Detesto a vida, pois vejo que a obra que se faz debaixo do sol me desagrada: tudo é vaidade e correr atrás do vento”.



J. Guinsburg acredita que o Qohélet rejeita três tendências de sua época: o conservadorismo sapiencial do estrato social a que pertence, o radicalismo messiânico e o misticismo apocalíptico - mais tarde típico dos essênios - e o racionalismo filosófico e o ecletismo cosmopolita, defendidos pelos adeptos da helenização.



O Zoroastrismo, religião que primeiramente apresentou uma escatologia de forma apocalíptica pode e deve ser tratado como a principal influência no desenvolvimento da APOCALÍPTICA, tema que será tratado na próxima postagem. Como é provado pela Biblioteca de Nag Hammadi, (ver http://anaomente.blogspot.com.br/2016/01/a-biblioteca-de-nag-hammadi.html) o gênero literário Apocalipse é um dos preferidos dos autores gnósticos e a mentalidade apocalíptica e sua preocupação com o fim do mundo e o destino da alma tem origem não na religião judaica tradicional, mas no judaísmo posterior embebido de Zoroastrismo e, como é sabido, a filosofia iraniana ou persa, surgida da religião zoroastriana, é uma das fortes influências percebidas nos textos gnósticos, sejam cristãos, judaicos ou pagãos.



M. Hengel, por outro lado, opina que a ética do Qohélet é “burguesa”. Por “burguesia” ele entende aquele estrato social que forma a força dominante do mundo helenístico, a “nata social”, que vive de seus investimentos em terras ou outros negócios. Na vida, este grupo busca segurança e prazer. Tem um pensamento racional, mas é basicamente conservador.

Neste contexto, Qohélet representaria o primeiro momento da crise gerada pela helenização. Vê-se a fragmentação e a falência da teologia e da piedade tradicionais, mas sua formação aristocrática e tradicional o impede de romper com Iahweh, a quem ele confirma como o senhor de tudo o que existe e acontece. Embora a lógica da vida seja absurda e desumana.



O Qohélet faz severas críticas ao sistema opressivo do domínio estrangeiro em 4,1: “Observo ainda as opressões todas que se cometem debaixo do sol: aí estão as lágrimas dos oprimidos e não há quem os console; e força do lado dos opressores, e não há quem os console”. É possível que em 5,7-8 ele esteja aludindo às injustiças cometidas pelos seus próprios conterrâneos em nome dos dominadores estrangeiros dentro da típica administração ptolomaica: “Se numa província vês o pobre oprimido e o direito e a justiça violados, não fiques admirado: quem está no alto tem outro mais alto que o vigia, e sobre ambos há outros mais altos ainda”.



R. Michaud, por sua vez, adota interessante hipótese de N. Lohfink acerca do Qohélet. Quando, por volta de 248 a.C., o rico José, o Tobíada, torna-se o coletor de impostos da Celessíria, em nome dos Ptolomeus, ele vem morar em Jerusalém, acelerando a implantação da educação grega na cidade. Além de filho do poderoso Tobias, ele é sobrinho do sumo sacerdote Onias II. Os mestres tradicionais do Templo vão se enfrentar, então, com os inúmeros filósofos ambulantes que invadem a cidade, segundo o costume grego. Nesta ocasião, para escândalo dos tradicionalistas, um dos mestres judeus, o nosso inovador sábio, resolve ir para as ruas, acompanhado por seus discípulos. Adota o mesmo método dos gregos para poder enfrentá-los. Ele se transforma em um sábio ambulante que observa os acontecimentos do cotidiano e tira suas conclusões a partir da fé javista.



Já o Eclesiástico (= Sirácida), escrito no início do séc. II a.C., polemiza com a aristocracia de Jerusalém que está abandonando a fé de seus antepassados em decorrência de sua assimilação da cultura grega. O Eclesiástico considera os grupos da alta sociedade de Jerusalém como apóstatas da Lei e descrentes das ações de Iahweh em favor dos homens.


***ATENÇÃO!!! ECLESIÁSTICO, SIRÁCIDA, SABEDORIA DE JESUS FILHO DE SIRACH, ou simplesmente, JESUS BEN SIRACH ou BEN SIRACH, texto bíblico atribuído a um tal Jesus filho de Sirach, não deve ser confundido com Eclesiastes ou Qohélet, que é outro texto escrito em outro tempo por outro sábio judeu!!!

Contra tal tendência ele justifica a retribuição divina. E desenvolve, sob influência provável das filosofias mais populares da época, uma teodiceia da criação. O mundo foi criado por Iahweh para a salvação do homem com um profundo sentido de harmonia: “Todas as obras do Senhor são magníficas, todas as suas ordens são executadas pontualmente”, afirma Eclo 39,16.



O centro da humanidade é Israel, com sua única e miraculosa história guiada por Iahweh. Na Lei de Moisés, Israel recebe a Sophia divina, o poder que regula toda a criação. Além disso, ele admoesta os filhos do sumo sacerdote Simão que estão em luta pelo poder, intercede em favor do pobre oprimido - “Escasso alimento é o sustento do pobre, quem dele o priva é um homem sanguinário. Mata o próximo o que lhe tira o sustento, derrama sangue o que priva do salário o diarista” (Eclo 34,21-22) - e pede, à maneira dos antigos profetas, a realização da salvação escatológica para Israel.



O Sirácida identifica Sophia à Lei mosaica - “Saí da boca do Altíssimo e como neblina cobri a terra”, diz Eclo 24,3; e 24,23: “Tudo isto é o livro da Aliança do Deus Altíssimo, a Lei que Moisés promulgou, a herança para as assembleias de Jacó” -, garantindo não só que o mundo foi criado por Iahweh para a salvação do homem, mas que Israel é o centro da humanidade com sua exclusiva história comandada por ele.

Ou seja: em sua polêmica com o racionalismo secular grego, o Eclesiástico procura salientar a superioridade da fé e da tradição israelitas codificadas na Lei.



Conclusão



Certamente esse é apenas um rápido e insuficiente tratamento do problema. Mas, para terminar, quero chamar a atenção, neste jogo de assimilação e combate às ideias helênicas, para a tendência absolutizante da Torá.

Quando, na tradição farisaica, é feita a identificação da Lei com a Sophia “divina”, revelada a Israel e ocultada à razão humana, o que está em ação é uma ontologização da Torá, que terá múltiplas consequências históricas e teológicas.

Há, no judaísmo pós-exílico, uma perda evidente da consciência histórica, levando à segregação progressiva do judaísmo rabínico, especialmente após a dispersão do ano 70 d.C.



A ação eficaz do “fazer justiça”, construindo uma sociedade solidária, tão típica da teologia mosaica e profética, perde seu impulso. No seu lugar desenvolve-se a ideia do “ser justo”. Ser judeu, agora, na época greco-romana, é ser justo. E ser justo é observar com o maior rigor possível os preceitos da Torá. Especialmente as regras da pureza ritual, as obras de piedade e de misericórdia, o sábado, a circuncisão, as festas.



Os Essênios são típico exemplo disso, com sua obsessão em obedecer à Lei não por causa do Estado Judeu mas porque Israel para eles é uma comunidade de pessoas que se esforçam em se purificar das imundícies da vida terrena.



É a falência do projeto javista, pois o judeu poderá manter sua identidade sem precisar construir uma sociedade nova, onde o direito, a justiça e a solidariedade regem as estruturas políticas, sociais e econômicas. 



Como visto em http://anaomente.blogspot.com.br/2016/01/deus-no-antigo-testamento-fusao-de.html, a religião judaica é fruto de um processo POLÍTICO de unificação de povos e tribos que comungavam de dialetos, deuses e práticas culturais em comum, quais sejam, os cananeus, não excluindo alguns árabes, sírios, fenícios e outros. A religião judaica antiga tinha como objetivo moldar a sociedade, estabelecendo um Estado Teocrático. Este espírito do antigo judaísmo começa a perder força no período helenístico (como iremos ver com maiores detalhes na postagem sobre a Apocalíptica). Com o contato com filosofias estrangeiras, e principalmente com a sabedoria grega, os judeus irão reinterpretar a seu modo as escrituras judaicas e suas práticas. O judeu se enxerga como tal a partir de instâncias da filosofia grega e o espírito da filosofia grega é extremamente especulativo, buscando rejeitar a influência de elementos que "sujem" a pureza da especulação. O método alegórico (de origem egípcia mas assimilado pelos gregos) passa a ser o instrumento primordial de interpretação da Lei e dos Profetas. Vemos aí todos os ingredientes essenciais da Gnose e da ruptura dela com o judaísmo tradicional, abrindo as portas para o surgimento de figuras revolucionárias como Jesus Cristo, Simão Mago e outros que oficial e abertamente se desligaram do judaísmo e suas ramificações para formar novos grupos religiosos, sendo por isso bastante perseguidos pelos judeus.



É, por outro lado, o preço pago para salvar a raça, realimentada pelo despertar de uma consciência que liga fortemente o povo de Israel à religião judaica.

É o bloqueio das dissidências e do sincretismo, pelo menos na Judeia, concretizado na ruptura com os grupos que apresentavam projetos sociais alternativos, tais como os cristãos primitivos.




http://blog.airtonjo.com/2015/02/judaismo-e-helenismo-iii.html

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