ARTE APOCALÍPTICA |
1. Filha e herdeira da profecia
O verbo grego kalýpto significa “cobrir”, “esconder”, “ocultar”, “velar”. Neste sentido ele é usado, por exemplo, em Lc 23,30 ou 2Cor 4,3. Aqui, Paulo diz:“Por conseguinte, se o nosso evangelho permanece velado (kekalymménon) está velado (kekalymménon) para aqueles que se perdem…”.
Na LXX (Septuaginta), kalýpto é usado no mesmo sentido em Ex 24,15;27,2; Nm 9,15; 1Rs 19,13 e em muitos outros lugares. Ex 24,14 diz: “Depois, Moisés e Josué subiram à montanha. A nuvem cobriu (ekálypsen) a montanha“. Nm 9,15 diz: “No dia em que foi levantada a Habitação, a Nuvem cobriu (ekálypsen) a Habitação, ou seja, a Tenda da Reunião…”. O verbo hebraico assim traduzido é khâsah, “cobrir”, “ocultar”[1].
A preposição grega apó indica um movimento de afastamento ou retirada de algo que está na parte externa de um objeto. Assim é usada em Mt 5,29:“Caso o teu olho direito te leve a pecar, arranca-o e lança-o para longe de ti (apó sou)”.
Em hebraico, o verbo gâlâh é usado com o significado de “despir”, “descobrir”, “revelar”, “desvelar”. Ex 20,26 diz: “Nem subirás o degrau do meu altar, para que não se descubra (thigâleh) a tua nudez”. E 1Sm 2,27: “Um homem de Deus veio a Eli e lhe disse: ‘Assim diz Iahweh. Eis que me revelei (nighlêthî) à casa de teu pai…'”.
Dn 2,29 usa o verbo gâlâh para a revelação do que deve acontecer: “Enquanto estavas sobre o teu leito, ó rei, acorriam-te os pensamentos sobre o que deveria acontecer no futuro, e aquele que revela (weghâlê’) os mistérios te deu a conhecer o que deve acontecer”.
LXX traduz o verbo gâlâh pelo grego apokalýptô, que significa “descobrir”, “revelar”, “desvelar”, “retirar o véu”.
O NT usa o mesmo verbo neste sentido. Mt 10,26, por exemplo: “Não tenhais medo deles, portanto. Pois nada há de encoberto que não venha a ser descoberto (apokalyfthêsetai)”. Ou Lc 10,22: “Tudo me foi entregue por meu Pai e ninguém conhece quem é o Filho senão o Pai, e quem é o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar (apokalýpsai)”.
Deste verbo deriva o substantivo feminino grego apokálypsis, “revelação”, “apocalipse”. Em Gl 2,2 Paulo diz a propósito de sua ida a Jerusalém: “Subi em virtude de uma revelação (apokálypsin)…”. E o livro do Apocalipse começa assim: “Revelação (apokálypsis) de Jesus Cristo…”.
De “apocalipse” deriva “apocalíptica” e é exatamente com esse nome que designamos uma corrente de pensamento e uma literatura surgidas em Israel entre os anos 200 a.C. e 100 d.C., mais ou menos.
Os israelitas sempre haviam considerado fundamental para a comunicação com Iahweh a existência dos profetas. Dt 18,18 diz que a Moisés Iahweh garantira: “Vou suscitar para eles um profeta como tu, do meio dos seus irmãos. Colocarei as minhas palavras em sua boca e ele lhes comunicará tudo o que eu lhes ordenar”. Sem Iahweh não existe Israel e sem profecia não se pode saber a vontade de Iahweh.
Ezequiel, falando da crise que se aproxima no confronto com a Babilônia, no século V a.C., já alerta: “Os desastres se sucederão; haverá boato sobre boato. Buscar-se-á uma visão de profeta, mas a lei fará falta ao sacerdote, e o conselho aos anciãos” (Ez 7,26).
O Sl 74,9, lamentando a destruição do Templo de Jerusalém pelos babilônios em 586 a.C., diz: “Já não vemos nossos sinais, não existem mais profetas. E dentre nós ninguém sabe até quando”.
Também Lm 2,9, descrevendo o desastre de 586 a.C., diz de Jerusalém:“Por terra derrubou suas portas, destruiu e quebrou seus ferrolhos, seu rei e seus príncipes estão entre os gentios: não há Lei! E seus profetas já não recebem visão de Iahweh”.
Já na difícil volta do exílio babilônico, o Sl 77,9-10 joga a seguinte pergunta: “Seu amor esgotou-se para sempre?Terminou a Palavra para gerações de gerações? Deus esqueceu-se de ter piedade ou fechou as entranhas com ira?”.
1 Macabeus, obra escrita entre 90 e 70 a.C., e que relata a crise desencadeada, na Judeia, pela helenização forçada, no século II a.C., faz repetidas alusões ao fim da profecia.
Quando, em dezembro de 164 a.C., Judas Macabeu recupera o controle do Templo – que estava nas mãos do partido helenizante – e o purifica, há o problema do altar dos holocaustos que fora profanado e precisa ser demolido. “Demoliram-no, pois, e puseram as pedras no monte da Morada, em lugar conveniente, à espera de que viesse algum profeta e se pronunciasse a esse respeito”, diz 1Mc 4,46.
Após a morte de Judas Macabeu, o partido helenizante assume novamente o controle da Judeia, enquanto Jônatas, irmão de Judas e seu sucessor na luta, se refugia no deserto de Técua. 1Mc 9,27 avalia a situação com as seguintes palavras: “Foi esta uma grande tribulação para Israel, qual não tinha havido desde o dia em que não mais aparecera um profeta no meio deles”.
Alguns anos mais tarde, quando o rei selêucida Demétrio confirma o macabeu Simão no sumo sacerdócio, diz 1Mc 14,41 que “os judeus e seus sacerdotes haviam achado por bem que Simão fosse o seu chefe e sumo sacerdote para sempre, até que surgisse um profeta fiel”.
Pode-se perceber que, para os judeus desta época, a profecia silenciara. Após Ageu, Zacarias e Malaquias não surgiam mais profetas. Na linguagem da época se diz que “os céus estão fechados” e o Espírito de Iahweh não mais se manifesta. Os judeus esperam, portanto, a chegada da era messiânica, pois só com o Messias os céus se abrirão e ele poderá receber o Espírito de Iahweh.
Na obra conhecida como Testamentos dos Doze Patriarcas, escrita entre 130 e 63 a.C., o tema da abertura dos céus e da presença do Espírito na era messiânica é frequente, especialmente nos Testamentos de Levi e de Judá.
Diz o Testamento de Levi em 2,3.6: “Quando pastoreávamos nossos rebanhos em Abelmaul, veio sobre mim o espírito da sabedoria do Senhor (…) Então os céus se abriram e…”
E em 18,6 há um texto muito interessante, se comparado com a cena do batismo de Jesus nos evangelhos: “Os céus se abrirão e do templo glorioso descerá sobre ele a santificação com a voz do Pai, como a de Abraão a Isaac”.
Comentário: isso se deve ao fato de que os evangelhos ditos "sinóticos" (Mateus, Marcos, Lucas e João), bem como várias outras literaturas judaicas e cristãs, são PSEUDEPÍGRAFOS. Pseudo-epigrafias são falsas autorias, ou seja, se atribui a um texto um autor que não foi quem realmente o escreveu. A pseudepigrafia virou moda no período helenístico e filósofos como Pitágoras, Platão, Aristóteles e outros foram "vítimas" de admiradores posteriores de suas doutrinas, que, para fazer suas teorias serem bem recebidas ou pelo menos chamarem a atenção para seu pensamento, atribuíam a autoria de suas obras a personagens e personalidades ilustres do passado. Essa moda atingiu em cheio o cristianismo e, tanto a dita ortodoxia quanto o gnosticismo, se baseiam em grande parte em textos pseudepígrafos. Isso significa que, no exemplo dado, os autores dos evangelhos sinóticos de jeito nenhum poderiam ser os apóstolos, pois são escritos tardios, parciais, evidenciando uma clara interpretação posterior e modificação de sentido de acordo com o pensamento do autor. Assim, tirando fatos e teorias narradas em outros textos, os autores dos evangelhos sinóticos os encaixaram e os aplicaram conforme bem queriam na sua doutrina. É o caso da identificação de Jesus como Messias. Sabemos que um grupo gnóstico pré-cristão, os Sabeus também chamados Mandeanos (que existem até hoje e sobrevivem no Iraque!!!) negaram que Jesus seria o Messias e veneram, ao invés, João o Batista, o mestre iniciador de Jesus, homem que retirou sua doutrina claramente das práticas essênias e gimnosofistas (indianas). Essa história do Messias é uma mitologia zoroastriana que entrou no Judaísmo via sincretismo após o cativeiro babilônico. Nem na Torah e noutros textos pré-cativeiro bíblicos existe qualquer menção a esse mito. À personalidade de Jesus foi incorporado o mito do Messias do zoroastrismo, via judaísmo. E não é à toa que os Testamentos dos Doze Patriarcas vêm sendo atribuídos como de autoria dos Essênios, pois estes, como visto pelos seus escritos reencontrados em Qumran, assimilaram fortemente o DUALISMO ZOROASTRIANO e a mitologia do messias salvador. No entanto, não sabemos se a interpretavam somente literalmente ou também alegoricamente, como símbolo e imagem de processos interiores, visto que os Terapeutas de Alexandria, conforme Filon (claramente um grupo "dissidente" dos essênios - ou melhor, uma evolução de parte dos essênios - que desenvolveu uma interpretação própria das escrituras) adotaram totalmente a interpretação alegórica, o que nos é dito por Fílon em sua De Vita Contemplativa (Os Terapeutas).
No Testamento de Judá 24,1-3 se lê: “Depois disto se levantará em paz um astro da linhagem de Jacó e surgirá um homem de minha semente como sol justo, caminhando junto com os filhos dos homens em humildade e justiça e não se encontrará nele nenhum pecado. Os céus se abrirão sobre ele para derramar as bênçãos do Espírito do Pai Santo. Ele mesmo derramará também o espírito de graça sobre vós. Sereis seus filhos na verdade e caminhareis pelo caminho de seus preceitos, os primeiros e os últimos”[2].
Nos Manuscritos do Mar Morto, encontrados nas vizinhanças de Qumran, e supostamente escritos pelos essênios entre os séculos II a.C. e I d.C., há várias referências ao Messias e à era messiânica.
Explicando Is 11,1-5 diz 4QpIsa III,11-22, um comentário de Isaías encontrado na gruta 4 de Qumran: “[Sairá um broto do to]co de Jessé e brotará de sua ra[iz um rebento. Pousará] sobre ele o espí[rito] [do Senhor: espírito] de prudência e sabedoria, espírito de con[selho e valentia], espírito de conhecimento [e temor do Senhor, e seu prazer estará no temor do] Senhor. [Não julgará] pelas aparências [nem sentenciará só por escutas]; julgará [com justiça os pobres e decidirá] [com retidão para os mansos da terra. Destruirá com o bastão de sua boca e com o alento de seus lábios] [executará o malvado. A justiça será o cinturão de] seus lombos e a fi[delidade o cinturão de suas costas]. […][A interpretação da citação se refere ao rebento] de Davi que brotará [nos dias futuros, posto que] [com o alento de seus lábios executará os] seus inimigos e Deus sustentará com [o espírito de] valentia […] trono de glória, coroa [santa] e vestes bordadas […] em sua mão. Dominará sobre todos os povos e Magog […] sua espada julgará todos os povos”.
Já o manuscrito classificado como 4Q521, espécie de apocalipse messiânico, diz em II, 1-6: “[Pois os cé]us e a terra escutarão o seu Messias, [e tudo] o que há neles não se apartará dos preceitos santos. Alentai-vos, os que buscais ao Senhor em seu serviço. Acaso não encontrareis nisso o Senhor, (vós) todos os que esperam em seu coração? Porque o Senhor observará os piedosos, e chamará pelo nome os justos, e sobre os pobres pousará seu espírito, e aos fiéis os renovará com sua força”.
O que se verifica é a esperança de que a situação de calamidade que se prolonga desde o exílio, possa ter um fim com a chegada do Messias que vem libertar aquele Israel que permanece fiel a Iahweh. Este tema parece generalizado nos últimos dois séculos antes de Cristo e no século I d. C.[3].
Alguns profetas pós-exílicos comprometem-se com a reconstrução do Templo e de Jerusalém, como Ageu e Zacarias. Outros procuram manter a comunidade judaica na observância das normas do javismo e esperam a libertação do país através de uma ação divina. Mas o próprio Templo, depois de reconstruído, acaba se transformando em instrumento de manutenção do domínio persa, depois grego, traindo os planos proféticos. Além do que, a instituição de uma Lei escrita, a partir de Esdras, marginaliza o profeta, que é um “carismático” e, portanto, sempre perigoso para leis estabelecidas.
G. Von Rad já apontava algumas das causas da falência da profecia na sua “Teologia do Antigo Testamento”:
* após Alexandre Magno nenhum grande acontecimento histórico mundial significativo afeta a Palestina. E é à sombra destes acontecimentos que surgem os grandes profetas
* Ageu e Zacarias ainda veem a reconstrução do Templo como um acontecimento escatológico, que possibilitaria a mudança da situação. mas vem o escrito sacerdotal (P), talvez trazido pelos sacerdotes que voltam do exílio, e sua teologia do culto, nada escatológica, abafa as expectativas proféticas de uma reviravolta
* a consolidação da comunidade pós-exílica, baseada na aristocracia sacerdotal – embora seja uma comunidade modesta – marginaliza as ideias de uma mudança necessária defendida pelos profetas
* e, por último, a Lei vai se transformando em valor absoluto, acabando com o espaço profético[4].
R. R. Wilson acredita que o conceito de profecia presente na teologia deuteronomista seja um dos responsáveis pelo descrédito da profecia pós-exílica. Pois diz Dt 18,22: “Se o profeta fala em nome de Iahweh, mas a palavra não se cumpre, não se realiza, trata-se então de uma palavra que Iahweh não disse. Tal profeta falou com presunção. Não o temas!”.
Palavras como as de Jeremias e outros profetas que diziam ser inevitável a catástrofe do exílio se cumpriram. Mas, e as promessas de restauração que tantos fizeram? E a invencibilidade de Jerusalém defendida por muitos? E a era de grande prosperidade que não chegava?
“Para a população em geral a demora em se cumprirem as promessas proféticas pré-exílicas e exílicas simplesmente levantou dúvidas sobre a autoridade dos próprios profetas, dúvidas que foram reforçadas pelo fato de os oráculos dos profetas jerosolimitanos não se terem cumprido. Por esta razão, ao povo pode ter diminuído constantemente a vontade de reconhecer a autoridade de profetas de qualquer tipo, e, faltando o necessário apoio social, os profetas deixaram de existir”[5].
COMENTÁRIO: Se as Escrituras contêm profecias e tais profecias não se cumprem, é óbvio que haverá uma crise religiosa. Porém, os judeus não vão abandonar imediatamente sua religião tradicional, mas REINTERPRETAR as suas escrituras de acordo com o momento em que vivem. As profecias passam a ser interpretadas de forma a dar novos significados que supram as necessidades psico-espirituais. Não é atoa que surge a Apocalíptica após a descrença nas profecias. Se a salvação de Estado de Israel não ocorrerá, no entanto os judeus podem ser salvos INDIVIDUALMENTE. Suas almas passam a ser o objeto de estudo e preocupação, em uma evolução doutrinal claramente inspirada em outras religiões e filosofias (zoroastrismo, filosofia grega, gimnosofismo, budismo, entre outros). Não se pode simplesmente desistir de ser judeu. As Escrituras são verdadeiras, o erro foi de interpretação... É preciso redefinir o conceito de Judeu e de Israel que não comportam mais os antigos significados, que se tornaram vazios, inúteis e até mesmo mentirosos.
Mas a falência da profecia deixa um vazio que precisa ser preenchido, pois os problemas continuam. É aí que surge a apocalíptica. Neste sentido, a apocalíptica é filha e herdeira da profecia. Parece que grupos proféticos marginalizados pelo crescente poder sacerdotal vão sendo empurrados na direção da apocalíptica[6].
É interessante como isso se repete no cristianismo primitivo: quando a proto-ortodoxia católica inventa suas falsificadas e adulteradas escrituras e coloca A IGREJA INSTITUCIONALIZADA como o centro do universo, numa clara analogia ao estado do antigo Israel (isso é claramente lido nos tratados dos padres da igreja, - como por exemplo Cidade de Deus de santo Agostinho - principalmente os posteriores à oficialização do cristianismo como religião do império romano), a alma humana e cristã perde espaço e se vê obrigada a se submeter a um poder temporal, o poder eclesiástico, fortemente ligado com o poder político. Então ela se reagrupa em novas comunidades que acentuam o anticlericalismo das religiões mistéricas e escolas de filosofia, buscando preservar a pureza da religião original evangélica do Cristo. Nesse sentido, os gnósticos são empurrados pelo catolicismo a uma marginalização (falida nos 3 primeiros séculos, pois a multidão de gnósticos, conforme Ireneu, será a maior corrente do cristianismo primitivo) e, posteriormente ao ocultismo devido às perseguições..
“Com a apocalíptica – e é aí que se situa a grande diferença – operava-se, portanto, a passagem do profeta que fala para o profeta que escreve, da era do oráculo para a era do livro”, observa A. Paul[7]. O Apocalipse do NT se diz um livro apocalíptico (1,1: “Revelação…”) e, ao mesmo tempo, um livro profético (1,3: “Feliz o leitor e os ouvintes das palavras desta profecia…”).
G. Von Rad tenta demonstrar, em hipótese de pouco sucesso, que seria da corrente de pensamento sapiencial judaico-helenista que nasce a apocalíptica. Acredita Von Rad que “a apocalíptica parece estar enraizada de maneira particular nas tradições da sabedoria”[8].
As razões para tal afirmação:
* de Daniel se diz, em seu livro (Dn 1,3ss), que é formado com os sábios da corte, tornando-se, mais tarde, “chefe supremo de todos os sábios de Babilônia” (Dn 2,48)
* Henoc é considerado um “escriba”, “um escriba justo” (1Hen 12,3-4;15,1;92,1), cuja sabedoria supera a de todos os homens (1Hen 37,4)
* Esdras é considerado um escriba da ciência do Altíssimo (4Esd 14)
* estes personagens ocupam-se com problemas astronômicos e cosmológicos e com a ordem dos eventos históricos e dão grande importância aos livros (1Hen 14,1;33,4;72,1 etc; 4Esd 14,24.44)
* 1Hen 37-71 se define como um discurso de sabedoria (37,2)
* a busca de conhecimento é uma constante nos livros apocalípticos, característica da sabedoria
* a concepção de história dos livros apocalípticos – tudo já está definido desde o começo dos tempos – é inconciliável com a concepção profética de que isto depende do comportamento de Israel
P. D. Hanson, entretanto, recusa esta hipótese – e também a de uma influência iraniana imediata – e diz que o método de comparação direta entre a profecia e a apocalíptica fatalmente leva à conclusão de descontinuidade entre um pensamento do século sétimo e outro do século segundo. Segundo Hanson, as raízes da apocalíptica podem ser claramente detectadas no pensamento profético, havendo, é claro, uma evolução na sua forma.
“As origens da apocalíptica não podem ser explicadas por um método que justapõe textos do sétimo e do segundo séculos e, em seguida, procura as características dos últimos na relação com seu contexto imediato. A literatura apocalíptica do século segundo e posteriores é o resultado de um longo desenvolvimento que começa no pré-exílio, e não um recém-nascido filho de pais estrangeiros do século segundo. Não somente suas origens, mas também a própria natureza das obras apocalípticas mais recentes só podem ser compreendidas através da reconstrução de seu longo desenvolvimento através dos séculos, no qual a escatologia apocalíptica nasce da profecia e até mesmo de outras raízes mais arcaicas”[9].
2. Literatura de resistência
Mas é a partir do século II a.C., no momento das grandes crises nacionais, quando Israel, agredido por outros povos, corre o risco de desaparecer como nação, que a apocalíptica floresce com grande força.
Poderíamos dizer que há, assim, três fases marcantes na história da apocalíptica:
* a época da guerra dos Macabeus contra Antíoco IV Epífanes e o partido helenizante, no séc. II a.C.
* a partir do domínio romano, que se inicia com Pompeu em 63 a.C.
* durante as guerras judaicas contra os romanos em 66-73 d.C. e 131-135 d.C.
Deste modo, a literatura apocalíptica funciona como uma literatura de resistência: através da escrita, Israel se manifesta vivo e atuante. Os céus estão fechados? A história, porém, é ainda possível: através do livro, manifesta-se o Espírito, que garante a identidade do povo de Israel.
Podemos ver aí a origem da ideia gnóstica de que todos podem escrever livros sagrados, até mesmo o mais simples e humilde fiel de uma igreja gnóstica, pode expressar pela escrita as suas experiências místicas, êxtases, visões, sonhos e interpretações e concepções da realidade, o que irritava profundamente os católicos que, à imitação dos chefes da sinagoga judaica, repreendiam os grupos que produziam novas escrituras. Como se a igreja católica não mudasse suas próprias escrituras através de seus padres da igreja e teólogos... Se o centro de tudo sai de Israel e passa para a alma humana, logo o ser humano é o centro do universo e do Espírito de Deus. São os seres humanos capazes de manifestar a Divindade ao mundo, e não mais este ou aquele estado ou povo.
Provavelmente a mais antiga obra da apocalíptica judaica, o livro de Daniel é uma peça literária de resistência escrita na época da luta dos Macabeus contra a helenização no século II a.C.[10].
Daniel não é o autor do livro. Estamos frente a um texto apocalíptico, escrito em 164 a.C., cujo autor se esconde por trás de um pseudônimo.
Já falamos sobre a pseudepigrafia. É interessante notar que os ignorantes e atrasados protestantes/evangélicos, sem nenhum conhecimento básico que seja, leem a bíblia de uma forma tão esdrúxula e deficiente. Acreditam que os fatos narrados são TODOS fatos históricos, independente do absurdo mitológico que ali esteja. Eles acreditam que o Livro de Daniel foi escrito realmente por Daniel e que essa pessoa realmente existiu... e fazem isso com outros textos bíblicos. Sem nenhuma prova ou argumento que justifique, tomam como verdade coisas absolutamente falsificadas e evidentemente inventadas por outros. No fim das contas, ainda há muito de catolicismo no protestantismo, e este parece não pretender renegar sua filiação católico-romana. São "canais secos", como diz o Apocalipse de Pedro (em Biblioteca de Nag Hammadi), numa fantástica profecia sobre os rumos que iriam tomar a falsa religião dos "que se autodenominam Bispos e Diáconos, como se tivessem recebido sua autoridade de Deus" (Apocalipse de Pedro 79:10-11) e que "abrem caminho em nome do homem morto, pensando que se tornarão puros", numa clara alusão à ênfase católica do Cristo Crucificado, dilacerado e moribundo, como é de fato a ignorância católica.
"Porém, se tornarão altamente corrompidos e cairão no nome do erro e na mão do demônio, no homem astuto e no dogma emaranhado, e serão governados hereticamente"
- Apocalipse de Pedro 74:5-7
Daniel talvez jamais tenha existido, embora haja pistas de um certo Danel em Ez 14,14.20;28,3 e um Dnil que aparece no poema de Aqhat encontrado em Ugarit, e que podem ter inspirado o legendário personagem bíblico[11].
Ez 14,14.20 cita Danel ao lado de Noé e Jó: três homens justos, três heróis populares. Eles são lembrados aqui para dizer que nem estes três justos conseguiriam salvar do castigo uma sociedade que abandonasse Iahweh. Ez 28,3 qualifica-o como sábio, em um oráculo contra o rei de Tiro, quando diz:“Certo, és mais sábio do que Danel, nenhum sábio há que se iguale a ti”.
Entretanto, o sábio Daniel (= Deus julga), um jovem judeu de Jerusalém, é o protagonista desta narrativa que estrategicamente é situada na época dos reis babilônicos e persas, no tempo do exílio.
No capítulo 1 o texto conta como, após a deportação dos judeus de Jerusalém para a Babilônia, alguns jovens judeus de famílias nobres são escolhidos e educados durante três anos para, em seguida, servirem ao rei. Entre eles – terão os nomes trocados – estão Daniel (Baltassar), Ananias (Sidrac), Misael (Misac) e Azarias (Abdênego). Só que a descrição do período babilônico feita pelo livro é imprecisa e seu conhecimento das cortes babilônica e persa superficiais.
Não houve, como o livro afirma, uma deportação em 605 a.C.; Baltasar é filho de Nabônides e não de Nabucodonosor; Dario, que é persa e não medo, é um dos sucessores de Ciro e não seu predecessor… Além do que, a doutrina sobre os anjos, o costume de evitar o nome de Iahweh e outros elementos não são daquele tempo, o exílico, mas bem posteriores.
Enfim, uma série de dados que acabam mostrando que a finalidade do livro e seu gênero literário não são históricos. É um escrito da resistência judaica, no duro período da perseguição selêucida. Daniel quer mostrar que, apesar de tudo, é preciso ter uma fé inabalável em Iahweh, porque mais cedo ou mais tarde os judeus sairão vitoriosos e engrandecidos.
2.1. Conteúdo de Daniel
:: Dn 1,1-21: Nabucodonosor + Daniel, Ananias, Misael e Azarias
Corte de Nabucodonosor: jovens judeus escolhidos por Nabucodonosor para servirem na corte – destacam-se Daniel (Baltassar), Ananias (Sidrac), Misael (Misac) e Azarias (Abdênego).
:: Dn 2,1-49: Nabucodonosor + Daniel
Corte de Nabucodonosor: Nabucodonosor sonha com uma estátua de quatro metais, simbolizando os impérios – Daniel interpreta o sonho.
:: Dn 3,1-30: Nabucodonosor + Sidrac, Misac e Abdênego
Corte de Nabucodonosor: Nabucodonosor manda fazer enorme estátua de ouro que todos os dignitários devem adorar na cerimônia de inauguração – Sidrac, Misac e Abdênego se recusam, são lançados em uma fornalha acesa, mas nada sofrem, protegidos por Deus.
:: Dn 3,31-4,34: Nabucodonosor + Daniel
Corte de Nabucodonosor: Nabucodonosor comunica aos súditos o sonho premonitório de sua loucura, a interpretação de Daniel, a realidade da loucura e sua cura ao reconhecer a soberania de Deus.
:: Dn 5,1-6,1: Baltazar + Daniel
Corte de Baltazar, na Babilônia, “filho de Nabucodonosor”: o rei, no meio de uma festa em que usa os utensílios do Templo de Jerusalém, tem a visão de sua queda – Daniel interpreta a visão e é recompensado – o rei é assassinado na mesma noite.
:: Dn 6,2-29: Dario + Daniel
Corte de Dario: os inimigos de Daniel conseguem uma proibição de se adorar qualquer deus durante 30 dias. Daniel, o principal ministro, desobedece, é preso e jogado para os leões, que nada lhe fazem – Dario exige de todos que se respeite o deus de Daniel.
:: Dn 7,1-29: governo de Baltazar + Daniel
Babilônia, governo de Baltazar: Daniel sonha com quatro animais terríveis que saem do mar, com a intervenção do Ancião e o poder do Filho do Homem, que é o povo santo que afinal vencerá.
:: Dn 8,1-27: governo de Baltazar + Daniel
Susa, no Elam, governo de Baltazar: Daniel tem a visão do carneiro e do bode – o anjo Gabriel explica-lhe a visão.
:: Dn 9,1-27: governo de Dario + Daniel
Governo de Dario, “filho de Xerxes”, o medo: Daniel procura o significado dos 70 anos até a restauração de Jerusalém, segundo Jeremias – o anjo Gabriel explica o significado a Daniel
:: Dn 10,1-12,13: governo de Ciro + Daniel
Governo de Ciro, rei da Pérsia: Daniel vê um homem vestido de linho etc, conversa com um anjo e ouve as explicações do que está escrito no “Livro da Verdade” sobre o governo dos Ptolomeus e Selêucidas (com grandes detalhes), sobre Antíoco IV Epífanes e sobre o destino do povo judeu…
2.2. Dn 2, 1-49: a estátua de quatro metais
Um bom exemplo do modo apocalíptico de pensar é Dn 2, 1-49, texto que narra o sonho de Nabucodonosor com a estátua de quatro metais, sonho que é interpretado por Daniel.
O texto pode ser lido em seis sequências. Nelas tentarei mostrar as relações e oposições básicas entre personagens, circunstâncias e valores.
a) 2,1-13
Cenário: corte de Nabucodonosor. O texto conta que Nabucodonosor, ainda no segundo ano de reinado, tem sonhos tão perturbadores que lhe provocam insônia. Convoca então o rei magos e adivinhos e exige deles que lhe contem o sonho e o interpretem para não serem mortos com suas famílias e possam ser magnificamente recompensados. Os especialistas, entretanto, querem primeiro ouvir o sonho, como é natural, para que possam interpretá-lo. Dizem: “O problema que o rei propõe é difícil e ninguém pode resolvê-lo diante do rei senão os deuses, cuja morada não se encontra entre os seres de carne” (v. 11). Então, o rei promulga o decreto de extermínio de todos os sábios da Babilônia, inclusive Daniel e seus companheiros.
Observamos aqui algumas oposições básicas: o poder absoluto e despótico do rei se contrapõe ao servilismo e à impotência dos sábios babilônicos, que são seus servos. Contrapõe-se igualmente o poder dos deuses, que tudo podem e sabem, à limitação dos homens, que não podem saber os pensamentos do rei. Ainda: o despotismo real aparece fortemente no poder do rei de fazer alguém viver em grande honra ou morrer em grande desgraça.
b) 2,14-19a
O texto continua dizendo que, ao se informar com o chefe da guarda encarregado da execução dos sábios, Daniel vai ao rei e lhe pede um prazo, no fim do qual ele mesmo interpretará o sonho para o rei. Adiada a execução, “Daniel voltou para sua casa e comunicou o fato a Ananias, Misael e Azarias, seus companheiros, pedindo-lhes que implorassem a misericórdia do Deus do céu sobre esse mistério…” (vv. 17-18). Então, o mistério é revelado a Daniel numa visão noturna.
Aqui, três atitudes se diferenciam nitidamente: a atitude de força do rei, usando o seu poder militar para punir, o imobilismo dos sábios que nada fazem e a iniciativa de Daniel, que, sabiamente, negocia uma saída para a crise. E se os sábios babilônios nada fazem, é porque não têm a quem recorrer. Daniel e seus companheiros, entretanto, recorrem ao Deus do céu – expressão muito usada no AT para designar Iahweh em ambiente não judaico. Há ainda a oposição entre o “mistério”, o enigma, o segredo (o sonho do rei) que ninguém consegue desvendar e a revelação em visão. O que desequilibra, de fato, as coisas em favor de Daniel e companheiros é “a misericórdia do Deus do céu”.
c) 2,19b-23
Agora Daniel agradece ao Deus do céu, usando a típica fórmula judaica para a “bênção”: uma invocação ao nome de Deus, seguida de uma comemoração de seus benefícios, terminando com a repetição da invocação e breve menção do benefício particular: “Tu me fazes conhecer agora o que de ti havíamos implorado, e o enigma do rei no-lo dás a conhecer” (v. 23b), conclui Daniel.
O ponto central da oração de Daniel encontra-se na convicção de que a sabedoria, a ciência e a força vêm do Deus do céu, que as concedem aos homens, e não de reis (força) e sábios (sabedoria). É Deus quem concede estes dons e ao homem que os recebe compete agradecer: “A Ti, Deus de meus pais, dou graças e te louvo por me teres concedido a sabedoria e a força” (v. 23a), diz Daniel.
d) 2,24-28
Daniel comparece, finalmente, diante do rei e se diz capaz de dar ao rei a interpretação de seu sonho. Como o rei quer, além da interpretação, também o sonho, Daniel lhe diz que este mistério, “nem os sábios nem os adivinhos nem os magos nem os astrólogos podem dá-lo a conhecer ao rei. Mas há um Deus no céu que revela os mistérios, e que dá a conhecer ao rei Nabucodonosor o que deve acontecer no fim dos dias” (vv. 27b-28a).
O contraste principal deste quadro é entre a impotência – mais uma vez – dos sábios, adivinhos, magos e astrólogos e o Deus do céu que vela os acontecimentos e os dá a conhecer a Daniel que lhe é fiel. E isto é ainda mais significativo se lembrarmos que a Babilônia é a terra dos maiores adivinhos e astrólogos da antiguidade. A adivinhação é a maior das ciências nesta época.
e) 2,29-45
Daniel, prossegue o texto, expõe ao rei o seu sonho. Nabucodonosor sonhara com enorme estátua composta de quatro metais: a cabeça, de ouro; o peito e os braços de prata; o ventre e as coxas, de bronze; as pernas, de ferro; e os pés, parte de ferro e parte de argila. Entretanto, uma pedra, não lançada por mão humana, bate na estátua que é pulverizada e levada pelo vento. A pedra torna-se uma grande montanha que enche toda a terra. Em seguida, Daniel explica ao rei que ele, Nabucodonosor, é a cabeça de ouro da estátua; a prata representa um reino inferior ao dele, que será substituído por outro representado pelo bronze, e que, por sua vez, terá como sucessor um reino forte como o ferro que tritura tudo. Os pés de ferro/argila simbolizam um reino parcialmente forte como o ferro e parcialmente fraco como a argila. A pedra que destrói os reinos é um reino suscitado pelo Deus do céu, “um reino que jamais será destruído, um reino que jamais passará a outro povo. Esmagará e aniquilará todos os outros reinos, enquanto ele mesmo subsistirá para sempre” (v. 44).
De maneira alegórica, o livro de Daniel, usando antigos mitos sobre a idade do mundo, descreve a sucessão dos grandes impérios históricos numa relação de valor decrescente: ouro, prata, bronze, ferro/argila. Segundo a visão da época, os impérios são os seguintes:
. cabeça de ouro: império neobabilônico
. peito e braços de prata: reino medo
. ventre e coxas de bronze: império persa
. pernas de ferro e pés de ferro/argila: império grego de Alexandre (ferro), depois dividido entre Ptolomeus e Selêucidas
A pedra simboliza o reino messiânico, o reino divino de Iahweh, definitivo, que destrói os poderes humanos. Esta é a pedra que esmaga o império selêucida que oprime Israel.
f) 2,46-49
O texto termina com Nabucodonosor prostrando-se diante de Daniel e até mesmo oferecendo-lhe sacrifícios, pois reconhece, enfim, que “o vosso Deus é o Deus dos deuses e o senhor dos reis e o revelador dos mistérios, pois tu pudeste revelar este mistério” (v.47b). Daniel é nomeado governador e chefe dos sábios, enquanto seus três companheiros administram os negócios da província de Babilônia.
O gesto de Nabucodonosor diante de Daniel (prostrar-se, inclinar-se e oferecer sacrifícios) é de extrema exaltação do Deus de Israel sobre os outros deuses e sobre o poder real.
Podemos concluir com algumas observações gerais:
. O rei, que tem poder absoluto, que pode mandar os homens viverem com honra ou morrerem na desgraça, não tem poder para conhecer o seu destino, ou melhor, o destino de seu poder e o de seus pares. Então, diante de sua impotência, o rei age pela força
. Por outro lado, o Deus do céu é quem dá a força e a sabedoria, é quem dá o poder e retira o poder, e só quem lhe é fiel, como Daniel, pode conhecer, através da revelação, este mistério
. Finalmente, o texto insiste em que os grandes impérios cairão, os poderes passarão e só restará o poder e o reino dados por Deus. Quem permanecer com Deus, como Daniel e seus três companheiros, será honrado
. Situe-se esta mensagem no contexto da luta dos Macabeus contra Antíoco IV Epífanes e o partido helenizante de Jerusalém no século II a.C. e começaremos a entender os métodos da apocalíptica…
2.3. Salmos de Salomão
Apenas para exemplificar como reagem os grupos de tendência apocalíptica à chegada de Roma na região em 63 a.C., vale a pena dar uma olhada em um escrito chamado de “Salmos de Salomão”, que é desta época.
Salmos de Salomão é o nome de uma obra de origem palestina, de um autor possivelmente ligado ao grupo farisaico, escrita em hebraico entre 63 e 40 a.C., mas só preservada em grego e siríaco. É uma coletânea de 18 hinos, semelhantes aos Salmos, nos quais o autor insiste no louvor a Deus, na justiça do homem como resultado da observância da Lei, no castigo dos pecados e na esperança de uma era melhor, presidida pelo Rei-Messias. É interessante observar que o autor usa a expressão “Filho de Davi” como título messiânico no Salmo 17.
Os Salmos 2 e 17 tratam da tomada da Palestina pelos romanos no ano 63 a.C. e o Salmo 2 alude à morte de Pompeu”: “Cheio de orgulho, o pecador destruiu com seu aríete as sólidas muralhas, e Tu não o impedistes. Povos estrangeiros subiram ao teu altar, pisotearam-no orgulhosamente com suas sandálias. Porque os filhos de Jerusalém mancharam o culto do senhor profanaram com suas impurezas as oferendas à divindade. Por isso disse Deus: afastai-as de mim; nelas não me comprazo. A beleza de sua glória nada significou diante de Deus, Ele as desprezou totalmente. Seus filhos e filhas sofrem rigorosa escravidão, seu pescoço está marcado, marcado entre os gentios. Deus os tratou de acordo com seus pecados, por isso os entregou nas mãos dos vencedores” (2,1-7).
Os vv. 24-29 falam do orgulho e da morte de Pompeu, assassinado no Mons Cassium, próximo a Pelusium, no Egito, em 48 a.C., após a sua derrota para Júlio César em Farsália: “Porque não obraram por zelo, mas por paixão; para derramar sua ira contra nós, espoliando-nos. Não demore, ó Deus, em devolver o mal sobre suas cabeças, para mudar em desonra o orgulho do dragão. Não esperei muito tempo para que Deus fizesse aparecer sua insolência degolada nas colinas do Egito, desprezada como a mais fútil do mar e da terra. Seu cadáver era jogado pelas ondas com grande ignomínia, não havia quem o enterrasse, porque Ele o aniquilou vergonhosamente. Não refletiu que era apenas um homem, não tinha pensado no fim. Falou assim: Sou o dono do mar e da terra; porém não percebeu que Deus é o Grande, o Forte, por seu tremendo poder”[12] .
O Salmo 17,5-13 critica os partidários saduceus do macabeu Aristóbulo II que destronou seu irmão Hircano II da realeza e do pontificado e, em seguida, fala da chegada dos romanos com Pompeu: “Por causa de nossas transgressões levantaram-se contra nós os pecadores; aqueles a quem nada prometestes nos assaltaram e expulsaram, nos despojaram pela força e não glorificaram teu honroso Nome. Organizaram sua casa real com um luxo equivalente a sua excelência, deixaram deserto o trono de Davi com a soberba de mudá-lo. Porém, tu, ó Deus, os derrubas e apagas sua posteridade sobre a terra, suscitando contra eles um estranho à nossa raça. Segundo seus pecados os retribuis, ó Deus, encontram-se com o que suas obras merecem. Deus não teve piedade deles; procurou sua descendência e não deixou um sequer. Justo é o Senhor nas sentenças que dita sobra a terra. Deserta de habitantes deixou o ímpio nossa terra; fizeram desaparecer o jovem, o ancião, as crianças. No calor de sua ira os enviou para o Ocidente, aos grandes da terra os entregou para engano e não os perdoou. O inimigo agiu orgulhosamente em sua barbárie, pois seu coração está distante de nosso Deus”[13].
[1]. Kalýpto vem do indo-europeu *kelu, de *kel, resultando em celo (= esconder, ocultar) no latim, helan no Alto Alemão Antigo, Höhle (= caverna) e Hölle (= inferno) no alemão moderno, hell (= inferno) no inglês. O termo vem para a koiné através do jônico. É muito usado por Homero e pelos poetas líricos e trágicos gregos. Cf. KITTEL, G. (ed.) Theological Dictionary of the New Testament, vol. III . Grand Rapids: Eerdmans, 1981, verbete kalýpto.
[2]. Cf. DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento V. Madrid: Cristiandad, 1987, p. 11-158. É possível, entretanto, que este último texto seja uma reelaboração cristã de um conjunto de textos messiânicos judaicos. “Mas se a passagem não é uma reelaboração cristã, demonstraria que tal profecia sobre o Messias tinha ampla circulação antes de Cristo”, comenta a obra citada, p. 86, na nota a 24,2.
[3]. O Livro Etiópico de Henoc, obra apocalíptica escrita nos séculos II-I a.C., talvez proveniente de um ambiente farisaico, diz, por exemplo, em 52,1-9 que o Eleito (o Messias), quando chegar derrubará seis reinos que dominam o mundo e acolherá os justos e santos.
[4]. Cf. VON RAD, G. Teologia del Antiguo Testamento II. Salamanca: Sígueme, 1972, p. 372-373. Cf. também VON RAD, G. Teologia dell’Antico Testamento I. Brescia: Paideia, 1972, p. 117-127. Aqui Von Rad trabalha o elemento carismático como característico da religião israelita, pois se acredita então na presença do espírito de Iahweh no meio do povo. Este espírito está presente em diversas pessoas e em variadas circunstâncias, como nos juízes e suas ações militares. Mesmo a monarquia israelita tem de si uma visão carismática. Mas a instituição que mais se caracteriza neste sentido é a profética. Só que no pós-exílio o profetismo cederá seu lugar para os sacerdotes e os sábios.
[5]. WILSON, R. R. Profecia e sociedade no antigo Israel. São Paulo: Paulus, 1993, p. 277.
[6]. Cf. ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica. São Paulo: Paulus, 1980, p. 11-53. WILSON, R. R. o. c., p. 278, assinala que “em termos de estrutura sociológica, grupos periféricos de sustentação profética e grupos apocalípticos são estreitamente relacionados entre si, e, sendo assim, não é difícil entender como um tenha podido desenvolver-se rumo ao outro”.
[7]. PAUL, A. O que é o Intertestamento. São Paulo: Paulus, 1981, p. 64.
[8]. VON RAD, G. Teologia del Antiguo Testamento II, p. 383. Cf. os seus argumentos nas p. 381-390.
[9]. HANSON, P. D., The Dawn of Apocalyptic, Philadelphia, Fortress Press, 1983, p. 6. Cf. também a crítica de Peter von der Osten-Sacken a Von Rad em AA. VV., Apocalipsismo, São Leopoldo, Sinodal, 1983, p. 121-170.
[10]. Sobre Daniel, cf. SCHÖKEL, L. A./SICRE DIAZ, J. L., Profetas II, São Paulo, Paulus, 1991, p. 1259-1349; MARCONCINI, B., Daniel, São Paulo, Paulus, 1984; STORNIOLO, I. Como ler o livro de Daniel. Reino de Deus x Imperialismo, São Paulo, Paulus, 1994; GRELOT, P., O livro de Daniel, São Paulo, Paulus, 1995.
[11]. Cf. DEL OLMO LETE, G., Mitos y leyendas de Canaan según la tradición de Ugarit, Madrid, Cristiandad, 1981, p. 325-401. Comenta o autor na p. 356: “Talvez o núcleo histórico possa se radicar na lembrança e exaltação de um príncipe lendário estrangeiro, hábil caçador, morto em idade prematura, filho do não menos lendário rei Dnil”.
[12]. SALMOS DE SALOMÃO 2,1-7.24-29. Cf. o texto em DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento III. Madrid: Cristiandad, 1982, p. 24.
[13]. Idem, ibidem, p. 50-51.
http://airtonjo.com/site1/apocaliptica.htm
Nenhum comentário:
Postar um comentário