Antes de continuar com as postagens dos Princípios e Dogmas Gnósticos acredito ser oportuno expor o que segue nessa postagem, para clarear mais as ideias e muitos entendimentos.
Essa postagem foi inspirada no epílogo do livro Introdução aos Verdadeiros Filósofos: Os Padres Gregos: um continente esquecido do pensamento Ocidental".
Essa postagem foi inspirada no epílogo do livro Introdução aos Verdadeiros Filósofos: Os Padres Gregos: um continente esquecido do pensamento Ocidental".
Esse título é problemático. Nesse livro, Jean Yves Leloup, padre da igreja ortodoxa russa, tenta mostrar que alguns dos vários Padres da Igreja, a chamada Patrística, adotaram um estilo de vida que era contrário ao estilo dos filósofos gregos comuns e semelhante às doutrinas de Buda, Sábios do Oriente e cristãos primitivos ou gnósticos. Ele enaltece as doutrinas dos grandes expoentes da Patrística Grega (contra a patrística latina e a escolastical medieval), mostrando que o verdadeiro filósofo não procede a especulações, nem a manipulações; em vez de procurar ter razão ou modificar o mundo, seu objetivo consiste em transformar-se a si mesmo para participar de seu próprio devir, como fizeram os Sábios do Oriente, Buddha e Cristo, ao contrário dos antigos filósofos gregos pagãos e dos escolásticos ocidentais católicos que seriam filósofos de palavras, teorias e argumentos, e não de vivência prática e exemplo. Demonstra que grande parte dos padres gregos eram gnósticos.
Mas nos padres citados no livro, como João Crisóstomo, Orígenes de Alexandria, Dionísio Areopagita, Clemente de Alexandria, Evágrio Pôntico, João Cassiano, Gregório de Nissa, Máximo o Confessor e Simeão o Novo Teólogo, na verdade nós vemos a gnose praticada em silêncio e discrição nos mosteiros e sendo exposta de maneira bem adaptada e disfarçada sob a vestimenta das elucubrações teológicas da ortodoxia. A parte mais gnóstica das doutrinas não é alardeada ou ensinada para a grande massa dos fiéis ortodoxos, sejam eles russos, gregos, sérvios, búlgaros, georgianos, sírios, etc. Fica restrito a monges e estudiosos que vão atrás desses escritos. A igreja romana então passa longe desses teólogos, ainda mais longe de Simeão o Novo Teólogo pois ele é um dos sistematizadores do Hesicasmo que iria ser condenado por Roma como "magia" além de heresia.
Mas o que vale a pena nesse livro mesmo é o epílogo (intitulado Contribuição Junguiana para a história da Gnose: da "verdadeira filosofia" à psicologia do inconsciente), onde o autor vai mostrando, na sua opinião, as acepções de Gnose ao longo da história, inclusive no meio acadêmico ocidental, na psicologia, psicanálise, principalmente Carl Jung, que o autor admira enormemente e bebe de sua obra para escrever seus outros comentários a textos gnósticos, ortodoxos, orientais, de psicologia, etc. Por isso vou assimilar algumas concepções dele, mas criticá-las, propondo uma nova interpretação baseada nos meus conhecimentos sobre Gnosticismo. É um convite ao leitor para comparar o que encontra por aí tirar suas próprias conclusões.
A - GNOSE COMO EPISTEMOLOGIA
A episteme é o conhecimento científico. Em Platão, a Gnose trata-se de um conhecimento científico, puro e especulativo, que os filósofos medievais vão chamar de "noética", ou seja, Teoria do Conhecimento. Assim, Gnose seria o verdadeiro conhecimento científico, fruto da atividade do Nous ( intelecto, inteligência) que está acima da Psiqué ou alma. O objetivo da Gnose como epistemologia é a intelecção, o conhecimento intelectual, e não o místico. Gnose é a Verdade científica.
B - GNOSE COMO METAFÍSICA
Nesse sentido, Gnose é a metafísica pura. Vários filósofos e místicos ao longo da história tentaram estabelecer os fundamentos da Metafísica como Platão, Aristóteles, Sufis, sábios orientais, místicos budistas, judeus etc, mas nenhum desses conseguiu alcançar o ápice da definição e concepção da metafísica pura encontrada na filosofia Vedanta da Índia, sistematizada por sábios hindus como Shankaracharya e encontrada principalmente nos textos conhecidos como Upanishads. A Gnose nesse sentido é Metafísica Pura: distinção entre Atman (o Eu maior ou Superior de todos os seres sencientes, elemento Imaterial do indivíduo, a Alma que se encontra permeada e coberta pelos pequenos eus subjetivos) e Maya (a Grande Ilusão, ou seja, o próprio Universo material, a substância física, a matéria. É também a percepção da identidade entre o verdadeiro sujeito humano ou Jivatman e o verdadeiro sujeito divino ou Paramatman. Outra forma de expressar isso é através da identificação entre o Atman ou Eu Superior e Brahman, o Ser Superior, mais conhecido como Deus ou Ser. É resumida na famosa expressão hindu TAT TVAM ASI (TU ÉS ISSO).
Na Gnose como metafísica, o objetivo do estudante é se livrar dos apegos e amarras da matéria sensível e da mente humana, ou seja, concentrar o intelecto nas ideias. Aqui, a gnose é intelectiva e ativa, ao invés da gnose iluminativa e passiva que veremos mais adiante.
Do mesmo modo que Deus está presente em tudo, ainda que não vejamos seus vestígios, a Gnose está presente em todas as grandes religiões e filosofias. Devido ao seu caráter transcendental e incorruptível, a Gnose aparece em várias culturas, sociedades, civilizações e religiões ao longo da história e nunca desaparece, sempre reaparecendo e pululando quando necessária. Assim, a perspectiva gnóstica sempre será levantada contra moralismos artificiais e sistemas de poder político, econômico e social, pois ao contrário do moralismo simplificador das concepções humanas que são materiais e relativas, a Gnose é o Esplendor da Verdade, a Grande Luz que ilumina o ser humano. É objetiva e conceitual mas, ao mesmo tempo, subjetiva e existencial pois aparece simbolizada por diferentes formas religiosas, filosóficas e sociais. É preciso, no entanto, saber separar o mental e falível que registra e elabora sistemas do coração e intelecto que percebe e projeta sob diferentes formas aquilo que viu e experimentou com o intelecto. Assim, a Gnose é uma metafísica operativa, ou seja, acesso Ontológico aos verdadeiros Entes, revelando-nos o nosso próprio ser e o conhecimento puro.
C - GNOSE COMO GNOSTICISMO
Gnosticismo é como os estudiosos de filosofia e religião tem chamando o que eu, inclusive, já chamei aqui de Gnosticismo Histórico, que abarca dentro de si o Gnosticismo Clássico. Já usei essa expressão Gnosticismo Histórico em várias postagens como por exemplo:
https://gnosedesi.blogspot.com/2019/02/os-arconticos-parte-2-apocalipse-de_1.html
https://gnosedesi.blogspot.com/2016/07/serie-fe-gnostica-parte-1-as-origens-do.html
https://gnosedesi.blogspot.com/2018/01/gnosticismo-politico-moderno-as.html
https://gnosedesi.blogspot.com/2018/11/revisado-troma-nagmo-chod-pratica-de.html
Gnosticismo é a denominação que se dá às filosofias, seitas religiosas e Igrejas que surgiram entre os séculos 1 a.C. e 5 d.C. Trata-se de uma filosofia religiosa surgida em meio a grupos judaicos heterodoxos que deram origem ao Cristianismo e que posteriormente se caracterizaram como Cristãos ao adotar a figura de Jesus Cristo como seu grande Iluminador (ao perceberem Jesus, por exemplo, como reencarnação de seu grande Salvador, Seth, como fizeram setianos, barbelonitas, ofitas e outros), filosofia esta baseada numa interpretação do mundo a partir da filosofia de Platão.
Esses grupos buscaram explicar a Gnose como Metafísica através de uma linguagem própria, uso de jargões, clichês e palavras próprias caracterizantes de um grupo separado das outras filosofias e religiões - entendam "jargões" e "clichês" aqui não no sentido pejorativo mas no sentido de palavras típicas e expressões próprias recorrentemente e excessivamente usada para caracterizar a doutrina que está sendo ensinada. Esta linguagem própria é um Mito Fundador, um mito das origens do mundo que foca na Alma Humana. Ao longo do tempo esse mito foi sendo cada vez mais elaborado e complexo dando origem ao que se chama de Mito de Pistis Sophia. Nesse Mito Fundador, o gnosticismo busca explicar porque os membros da religião se consideram separados e diferentes do resto da humanidade, cuja alcunha mais famosa receberam dos outros foi a de GNÓSTICOS.
Assim, tudo aquilo que foi dito sobre a Gnose como Metafísica e Epistemologia e ainda outras acepções que aparecerão mais adiante passa a ser explicado e transmitido através de um conjunto de crenças, dogmas, mitos e Escrituras que formam um grupo religioso que é comumente chamado de Gnosticismo Histórico. Esses gnósticos ensinaram que a Gnose estava escondida nas diversas religiões, como uma espécie de saber secreto que cada um deveria encontrar e que eles tentavam passar essa Sabedoria através de seus textos, dogmas e rituais. A obtenção dessa Gnose daria ao portador dela, o gnóstico, a Salvação de sua Alma e sua libertação desse mundo.
Com a redescoberta dos textos escritos pelos próprios gnósticos descobrimos que eles se autodenominavam de várias maneiras e nem todos se autodenominavam de "gnósticos": Filhos da Luz, Geração Inabalável, Raça Imarcescível, Raça Inabalável, Detentores do Conhecimento, Filhos do Pai e da Mãe, Aqueles que receberam o Espírito Vivo, Os Perfeitos, Os Espirituais ou Pneumáticos, Companheiros do Espírito, Descendência de Seth, Raça de Seth, Posteridade de Seth, Semente Sagrada de Seth e outras mais.
A origem gnóstica do Cristianismo é tão evidente que Celso, um filósofo pagão, escreveu uma obra contra os cristãos parcialmente citada por Orígenes em Contra Celso onde demonstra que, além dos que se autodenominavam de gnósticos, havia muitos outros cristãos que não se denominavam assim mas hoje são colocados como gnósticos, como os Marcionitas, Simonianos ou Helenianos, Marcelinianos, Harpocráticos e outros seguidores de Mariamne e os seguidores de Marta. Celso não percebe a existência de algo que poderia se chamar de Igreja Católica separada do gnosticismo pois a massa dos cristãos é basicamente dividida entre gnósticos autodenominados e gnósticos que não se denominavam assim. Isso é uma importante evidência da fraqueza e minoria que era o proto-catolicismo que viria a ser a igreja ortodoxa católica, seita cristã criada posteriormente ao cristianismo original gnóstico cujos fundamentos foram dados pelo imperador romano Constantino e cuja biblia foi inventada pelo bispo Atanasio de Alexandria em 367 d.C.
Celso diz que os Valentinianos se atribuíam o cognome de gnósticos.
Clemente de Alexandria diz que os seguidores de Pródico se autodenominavam gnósticos, Filhos do Rei Por Natureza e Filhos do Primeiro Deus.
Ireneu de Lion diz que os Carpocracianos se autodenominavam Gnósticos.
Hipólito de Roma diz que que os Naasenos, Peratas, Sethianos e os seguidores de Justino, fundador de uma seita ofita, se autodenominavam gnósticos.
Ou seja, eram poucos os cristãos que se autodenominavam de gnósticos. Esse número só veio a aumentar quando os heresiologistas católicos passaram a denominar de gnósticos grupos e seitas que não se autodenominavam assim. Desse jeito, passaram a ser denominados de gnósticos autores e grupos como os Ebionitas, os Nazarenos, Cerdão, Marcião, Luciano de Antioquia, Apeles, Simão Mago, os Nicolaítas, Severianos, Docetas, Encratitas ou Tacianitas, Montanistas ou Catafrígios, Quartodecimanos, Cerinto, Menandro, Saturnino, Hermógenes, Basílides, Isidoro, Bardesanes e alguns outros.
Para caracterizar um grupo como herético e promover sua estigmatização e posterior perseguição e eliminação, os católicos passaram a usar a alcunha "gnóstico" como sinônimo de herege que precisa ser destruído. O mesmo aconteceu com os termos Maniqueísta e Ariano. Todos estes testemunham a gigantesca variedade e multiplicidade do cristianismo pré-concílio de Niceia e da absolutamente improvável exclusividade forçada pela seita católica de Roma e seus papas idolatrados por Constantino e os imperadores seguintes. Assim, 'Gnose" torna-se um termo prático para designar simplesmente o que não se coaduna com os trilhos de determinada igreja - por exemplo, a de Roma.
D - GNOSE COMO ESOTERISMO
A partir do século XVI passou a se chamar de gnósticos documentos antigos reencontrados, tais como pedras gravadas de imagens, tabuletas de chumbo com inscrições, desenhos, frases e papiros. Provinham do Egito e da Síria em seu período greco-romano. Contêm representações humanas e animais, imprecações, exorcismos e, frequentemente, nomes divinos e listas de palavras aparentemente incoerentes, designadas antigamente como Ephesia Grammata. Apesar de muitos deles datarem dos séculos 5 e 4 antes de Cristo, de fato o gnosticismo teve contato com essas culturas de palavras mágicas e nomes místicos a serem invocados em rituais, dando origem às chamadas Pedras de Abraxas e às frases místicas que aparecem em vários textos gnósticos como Pistis Sophia e Evangelho dos Egípcios, além do Corpus Hermeticum.
Uma coleção de livros de Magia foi encontrada, chama-se Papiros Mágicos Gregos, nos quais mencionam feitiços baseados em fórmulas mágicas do mesmo tipo de Ephesia Grammata também chamadas de Voces Magicae. Apesar disso, esses textos não podem ser considerados gnósticos de maneira alguma por que apenas apresentam alguns nomes de divindades em comum com o gnosticismo e não ensinam a doutrina gnóstica mas sim feitiços e ritos do conturbado mundo religioso do Egito romano. Pistis Sophia utiliza de divindades que aparecem nos Papiros Magicos Gregos mas as interpreta num contexto totalmente gnóstico e espiritual. Orígenes chega a dizer em Contra Celso que os Ofitas retiraram da Magia alguns nomes de seres que colocaram no seu sistema mitológico.
Mas essa confusão, já resolvida, não chega perto da audácia que ocorreu também a partir do século XVI de denominar de gnósticas doutrinas novas sem base histórica. Essas novas doutrinas que infelizmente continuam sendo chamadas de "gnósticas" por seus adeptos e por quem estuda isso se referem a todas as correntes esotéricas que, a partir do Renascimento, surgiram na Europa, ou seja, trata-se daquele monte de coisas novas que vivem forçando uma pretensa antiguidade absurdamente improvável como novos desenvolvimentos da Cabala, Iluminismo, Hermetismo (não o Corpus Hermeticum mas o hermetismo que estourou no renascimento, o chamado hermetismo popular ou mágico), alquimia, astrologia, teosofia, numerologia, franco-maçonaria, rosacrucianismo e outros. Os adeptos dessas doutrinas usaram demasiadamente o termo "gnóstico" para denominar a si a suas novas doutrinas e isso acabou entrando em dicionários e enciclopédias destinados ao grande público e não é raro encontrar essa errônea confusão em prateleiras de livros esotéricos em grandes livrarias.
A questão é que, de fato, o gnosticismo possui um elemento esotérico como um dos componentes de si mas isso não significa que todo esoterismo seja ou tenha gnose ou seja gnosticismo! Absolutamente não! Por esotérico aqui chamamos um conteúdo oculto, misterioso, enigmático cuja compreensão é reservada a iniciados e não é passada diretamente á grande massa, sendo então menosprezado e desprezado pela maioria mas considerado verdadeiro por uma minoria.
Mas vamos desde o começo para entender essa moderna confusão entre Gnosticismo e Esoterismo: as Religiões de Mistério.
Religiões de Mistério ou Mistérios Greco-Romanos é como se chamam as religiões espalhadas pelo mundo greco-romano e suas colônias cujas doutrinas e ensinamentos eram reservados aos Iniciados, ou seja, aqueles que passaram por um processo ritual de iniciação devidamente e poderiam então ter acesso ao corpo de doutrinas secretas (Arcanos) daquele culto. Existiram vários cultos de mistério diferentes mas todos eles possuem elementos fortes em comum que permitem que os caracterizemos como tais:
- Prescrição da obrigatoriedade do vegetarianismo e da abstenção de violência contra os animais e seres humanos;
3 - finalmente existe o universo das puras inteligências arcangélicas.
A estes três universos correspondem três órgãos de conhecimento: os sentidos, a imaginação e o intelecto. Essa tríade corresponde à tríade antropológica de Corpo, Alma e Espírito - tríade que regula o triplo crescimento do homem que se estende desde este mundo até as ressurreições em outros mundos. Assim, entre o mundo sensível e o mundo da pura inteligência existe um estágio intermediário, um universo verdadeiramente real, do ponto de vista ontológico, assim como os outros dois. Esse mundo é chamado também de Alam Al-Mithal, o Mundo dos Arquétipos ou da Imagem. Esse mundo requer uma faculdade de percepção própria. Essa faculdade é o poder "imaginativo" que não deve ser confundido com a imaginação humana normalmente chamada de fantasia e que apenas segrega o imaginal. Os sufis vão chamar esse universo de Oitavo Clima. O mundo das percepções sensíveis é o mundo dos Sete Climas. No entanto existe um outro, o Oitavo, que possui extensão, dimensões, figuras, cores, só que não perceptíveis pelos sentidos do mundo sensorial. Esse universo só é acessado por uma percepção imaginativa ou dos "sentidos psicoespirituais" e está dentro do Malakut, sendo seu limiar. Também é chamado de Mothol Mo'Allaqa, mundo das Imagens em Suspenso. A percepção precisa desse mundo depende de experiências espirituais visionárias que, segundo Suhrawardi, deverão merecer toda nossa consideração.
Assim como nas outras acepções, Gnose é também uma experiência espiritual visionária. Essa capacidade de imaginação ativa ou sentido psicoespiritual. Por essa função imaginativa, todos os universos têm a possibilidade de se simbolizarem uns em relação aos outros, além de as mesmas realidades substanciais assumem formas correspondentes, respectivamente, a cada universo. Assim, a Gnose exerce uma função se simbolização; ela faz com que determinados mundos se relacionem com estatutos ontológicos heterogêneos.
O gnosticismo, assim, escapa, e sempre escapou, do dualismo simplista, pobre e banal do "matéria versus espírito" ou "bem versus mal". Os conhecedores do Oitavo Clima, os gnósticos, escapam às armadilhas conceituais simplistas dos sistemas do mundo sensível.
Um exemplo bastante interessante de busca por uma percepção mística é o ritual descrito por Ireneu em Contra as Heresias a respeito de Marcos, um professor valentiniano que fundou sua própria igreja derivada de Valentim. Antes de expor e tentar ridicularizar a metafísica de Marcos como sendo pura especulação numerológica inspirada em Pitágoras e nos pitagóricos, Ireneu descreve o que seria um tipo de Unção de Profecia, um dom espiritual passado de um mestre para seus discípulos e assim por diante. Ele escreve:
" 13,1 Outro, entre eles, que se gaba de corrigir o mestre, chamado Marcos, expertíssimo na arte mágica com a qual seduzia muitos homens e não poucas mulheres, atraindo-os a si como ao gnóstico e perfeito por excelência, e como detentor da Potencia suprema provinda de lugares invisíveis e indescritíveis, é como que o verdadeiro precursor do Anticristo. Misturando os jogos de Anaxilau com as malícias dos assim chamados magos se faz passar por milagreiro aos olhos daqueles que nunca possuíram discernimento ou então o perderam.
13,2. Fingindo consagrar no cálice uma bebida misturada com vinho e pronunciando longas invocações, a faz aparecer de cor púrpura ou vermelha. Assim, pode-se pensar que a Graça, por causa da sua invocação, depositou naquele cálice o seu sangue, vindo das regiões supernas. Os que assistem desejam provar da bebida para que se derrame também neles a Graça invocada por este mágico. Depois, apresentando aquela mistura de bebida às mulheres, ordena que elas dêem graças, na sua presença. Feito isto, pega num cálice muito maior do que aquele sobre o qual a extraviada deu graças e, transferindo a bebida do cálice menor, sobre o qual foi feita a eucaristia, para aquele bem maior que ele de antemão preparara, pronuncia estas palavras: Aquela que está antes de todas as coisas, impensável e inexprimível Graça, encha a tua pessoa interior, multiplique em ti a sua gnose, semeando o grão de mostarda em terra boa. Aquela infeliz, fora de si de estupor ante estas palavras, julga prodígio o fato de o cálice maior ser enchido pelo menor até derramar. Com esta e outras mágicas semelhantes seduziu e atraiu muitos a segui-lo.
13,3 Ele dá a entender que teria um demônio como assistente que o faz profetizar, a ele e a todas aquelas mulheres que julgar dignas de participar da sua Graça. Dedica-se de modo especial às mulheres, e, entre elas, especialmente às mais nobres, intelectuais e ricas, cujas vestes são enfeitadas de púrpura, que lisonjeia, procurando atraí-las com estas palavras: Quero que participes da minha Graça, porque o Pai de todos vê sempre o teu Anjo diante dele. Mas o lugar da tua grandeza está em nós, por isso devemos formar uma coisa só. Recebe primeiramente de mim e por meu intermédio a Graça. Prepara-te como esposa que espera pelo esposo para seres o que eu sou e eu seja o que tu és. Dá lugar na tua cama nupcial à semente da Luz. Recebe de mim o Esposo, dá-lhe lugar em ti, toma-o e sejas tomada por ele. Eis que a Graça desce em ti: abre a boca e profetiza. A mulher responde: Eu nunca profetizei, nem sei profetizar. Então ele repete algumas invocações que arrebatam a infeliz seduzida e diz: Abre a boca, dize qualquer coisa e profetizarás. E aquela, excitada por estas palavras e sentindo ferver na alma a ilusão de começar a profetizar e o coração pulsar mais forte do que de costume, anima-se e se põe a profetizar todas as tolices que lhe vêm à cabeça, sem sentido e sem hesitar, justamente por ser inflamada por espírito vazio. Alguém, melhor do que nós, disse a propósito dessa gente: audaciosa e impudente é a alma aquecida por vãos vapores. A partir deste momento ela julga ser profetisa e agradece a Marcos por torná-la participante da sua Graça e procura recompensá-lo não somente doando-lhe os seus bens (é daqui que vêm as grandes riquezas deste homem), mas também o seu corpo, desejando unir-se em tudo a ele para formar com ele o Uno."
Primeiro de tudo, é preciso saber que esses relatos são parciais e sem prova alguma. Ireneu expõe de forma pejorativa, violenta e agressiva, acrescentando dados sem nenhum respaldo comprobatório e muita coisa é pura fantasia. Isso fica provado logo em seguida pela exposição metafísica dos Marcosianos que é extremamente complexa e filosófica, caminhando entre platonismo e pitagorismo com pitadas de psicologia esotérica das religiões de mistério. Faz um belo estudo "proto-cabalístico" do cristianismo em que estava inserido. É um legítimo valentiniano. A doutrina é realmente elevada e requintada. Não dá pra imaginar um filósofo de raciocínio tão complexo e altíssimo nível intelectual se rebaixando a práticas de feitiçaria grosseiras que qualquer bruxo de esquina faz. Isso é óbvio que se trata de estigmatização forçada por Ireneu dos rituais teúrgicos que muitos gnósticos praticavam. Mas Ireneu em nenhum momento ridiculariza a Eucaristia proto-católica, na qual se acreditava que o pão e o vinho virariam a carne e sangue de Jesus. Qualquer descrição simples da Santa Ceia como as que existem no Novo Testamento leva a crer que se trata de uma despacho de macumba ou de uma bruxaria barata. Mas sabemos que não é isso, assim como sabemos que a Teurgia também não é.
Assim também é extremamente questionável, pra não dizer impossível, o relato sobre a sedução de mulheres. Mas que homem burro seria esse Marcos, seduzindo mulheres ricas e poderosas em uma sociedade onde qualquer sedutor denunciado ou não teria seu órgão decepado ou seria mesmo assassinado sem qualquer cerimônia. Mas Ireneu chama as mulheres intelectuais e ricas de idiotas por preferirem a gnose de Marcos à sua seita proto-católica de escravos ignorantes, fanáticos e fundamentalistas. Parece ser inveja devido às ricas doações que a Igreja de Marcos recebia, ao invés da seita de Ireneu que só recebia escravos famintos para ele manipular. Mas essa realidade iria mudar com as espertezas do psicopata imperador Constantino que fingiu se converter só para obter apoio da massa ignorante e poder reinar absoluto na riqueza e no luxo enquanto os católicos continuavam escravos e miseráveis.
Mas vamos ao ritual. É espantosa a semelhança dessa unção profética de Marcos com as modernas "unções de profecia" dos protestantes pentecostais. Mas o rito Marcosiano parece ser precedido de orações e invocações fixas, uma liturgia apropriada e fixa estabelecida para a unção de profecia, ao contrário dos shows bagunçados dos pentecostais. Não é com o pentecostalismo que começa esse descarado plágio das doutrinas e práticas gnósticas no protestantismo. Entre os Mórmons a noção de uma Mãe Celestial e da preexistência das almas humanas no céu é um plágio descarado do gnosticismo. Não tenho certeza dessa informação mas parece que Joseph Smith andava muito com maçons e membros de sociedades esotéricas e acabou influenciado por crenças dessas organizações. Não é preciso dizer de onde vem essas crenças. É claro que são gnósticas.
Mesmo o pseudo-êxtase carnal dos pentecostais e sua glossolalia (falar em línguas) parecem adulterações materiais e físicas de práticas de êxtase e união mística do gnosticismo, e que existem também em diversas religiões desde tempos imemoriais.
No entanto, para os gnósticos, o êxtase tem como objetivo libertar a alma humana das amarras do mundo material e permitir sua salvação após a morte. Não se trata de "perder o sentido" ou de "cair no espírito". Não se trata de simples manifestação caprichosa e arrogante de deus, para "aparecer" e dar seu show. Trata-se sim de TRANSCENDER o corpo e a mente, e atingir o que os textos gnósticos chamam de Graça e Silêncio, e que os neoplatônicos chamam de Nous. Plotino fala muito sobre o êxtase místico, e para ele ocorre quando sua mente se concentra nas realidades inteligíveis, no mundo das Ideias de Platão. O pentecostalismo gnóstico não é êxtase carnal artificialmente forçado com ritmos musicais, mas sim Vazio Silencioso da Mente sem pensamentos e desejos, que abre as portas da percepção para outras realidades muito mais reais, transcendentais, não-carnais. O conteúdo que vem dessas realidades e é revelado ao viajante se mostra verdadeiro porque está presente nos conteúdos de místicos das grandes tradições religiosas e espirituais do mundo. A Realidade Última é a mesma para todos.
H - GNOSE EM CARL GUSTAV JUNG
Carl Gustav Jung, amigo de Freud, famoso psicanalista suíço e fundador da Psicologia Analítica ficou encantado com o gnosticismo e percebeu nele o ápice da psicologia humana. Para Jung, nenhuma tradição religiosa conseguiu explicar tão bem a questão do inconsciente coletivo e dos arquétipos ou se propôs a desnudar o problema do Mal.
Em resumo, Jung começa explicando que para entender esse caráter psicológico do gnosticismo é necessário encará-lo, e isso ele diz aos doutores em psicologia, como um delírio psicótico, pois, se usarmos somente a filosofia e a teologia, não chegaremos aos conteúdos psicológicos e sua significância atual. Depois ele diz que as ideias gnósticas não são simples sintomas de uma certa evolução histórica mas formas novas e originais produzidas pelo pensamento criador. E justamente, enquanto tais, elas tiveram importância monumental na evolução da consciência ocidental e, como exemplos claros disso, estão as ideias judaico-gnósticas do Apóstolo Paulo no Novo Testamento e do Evangelho Apócrifo de João que permeiam o imaginário Ocidental desde que surgiram até os dias de hoje. A despeito de ser declarado heresia e sofrer as perseguições e acusações por parte da igreja oficializada, o gnosticismo não desapareceu: ao contrário, continuou a desenvolver-se e em alguns momentos chegou a transformar-se em outras tradições bem diferentes como a Alquimia até o tempo de Goethe sob seu aspecto psicológico e filosófico; e na Cabala, que desde Fílon de Alexandria vem sendo gestada no âmbito do judaísmo ortodoxo a partir das ideias gnósticas. Essas duas tradições, apesar de não constituírem estágios anteriores da psicologia analítica, contêm inesgotável fonte de informação e conhecimento para tal psicologia.
Para Jung, a Gnose é manifestação do inconsciente coletivo e de suas dominantes arquetípicas. Ela é a Verdade escondida que todos tentamos negar mas, no fundo, sabemos ser verdadeira. É o conteúdo recalcado pela igreja e pelas outras grandes instituições opressoras que tem medo de perder poder e prestígio a partir do despertar do ser humano e do uso da imaginação e da criatividade liberta.
Gnose, para Jung, é também o fenômeno de RECEPÇÃO psíquica da figura do Cristo. Citando o Evangelho da Verdade, obra de Valentim, encontrado em Nag Hammadi, Jung explica que, para esse texto, Cristo é, antes de tudo, aquele que traz a Luz, nascido do Pai não só para iluminar o torpor, a obscuridade e a inconsciência dos seres humanos, mas também para reconduzir o indivíduo à sua origem através do autoconhecimento. Para explicar isso, o gnosticismo faz uso da AMPLIFICAÇÃO, que seria o uso maciço de alegorias e símbolos, linguagem que o mundo greco-romano estava muito bem acostumado e, para aquela geração, era bastante inteligível. Mas hoje em dia essa linguagem nos parece absurda, agravando e dificultando o entendimento do que os gnósticos queriam dizer. Os gnósticos queriam tornar acessíveis à consciência os conteúdos difíceis do inconsciente. São especulações de natureza intelectual, filosófica e teosófica; mas ao mesmo tempo, analogias, sinônimos, símbolos recheados de natureza psicológica.
Iniciado com o Gnosticismo, este fenômeno da Recepção, onde a personalidade humana faz uma análise ou "raio x" de si mesma e entra em confronto com a imagem que cada um faz de si mesmo, sofreu perseguição na idade média e moderna mas nunca deixou de cessar. Sob a influência de certas situações psíquicas, em particular nos casos de angústia existencial, essa formas ou imagens arquetípicas podem introduzir-se, espontaneamente, na consciência não só dos doentes mas nos que tem saúde.
Cabe aos gnósticos o mérito de terem levantado o problema da origem do mal. Na opinião de Jean Yves Leloup, tanto Valentim quanto Basílides são grandes teólogos que tentaram superar questionamentos que se encontravam submersos no inevitável afluxo do inconsciente coletivo - fato refletido com bastante nitidez no Evangelho Gnóstico de João (Apócrifo de João) assim como pelo Apóstolo Paulo, o Apocalipse de João e o próprio Jesus Cristo no Novo Testamento ( Parábola do Administrador Infiel, Codex Bezae e acréscimo a Lucas 6:4). No estilo de seu tempo, eles hipostasiavam ideias e percepções em entidades metafísicas. A psicologia não hipostasia mas considera tais ideias como asserções psicológicas sobre fatores inconscientes essenciais, inacessíveis à observação imediata.
Jung também atenta para o fato de que o confronto do homem com seu lado sombrio, que se impõe como inelutável na psicologia moderna, garante a continuidade do processo secular do despertar para a consciência introduzido pelo gnosticismo, além de preparar para consequências análogas, a saber, fenômenos de recepção de natureza semelhante aos fenômenos historicamente conhecidos do gnosticismo, da filosofia hermética e da cabala. Tanto a psicologia moderna quanto as tradições gnósticas antigas e medievais apresentam as mesmas tendências: por um lado identificam a figura do Filho do Homem com a mais profunda interioridade de cada indivíduo; por outro, conferem a ele a dimensão de uma alma do mundo, como o Atman-Purusha indiano.
Para Jung, a Gnose é a descoberta do Cristo Interior ou Self como Presença de Cristo ou Imagem de Deus ou Logos. O Self, ou Cristo, está presente, a priori, em cada um de nós, embora, em geral, torna-se um fato consciente apenas tardiamente na vida da pessoa. O acesso a essa realidade não é feito por doutrina ou mera sugestão: torna-se fato apenas quando isso advém. E isso só ocorre quando são retiradas as projeções de cada um relativas a um Cristo exterior, histórico ou metafísico, criando-se assim as condições para despertar o Cristo interior. Este tema gnóstico está subjacente mesmo nos evangelhos bíblicos. O esquecimento do Filho em nós é uma forma de esquecermos nossa verdadeira identidade, ou nossa realidade de estar em relação - "Filho voltado para o Pai no Espírito"; neste caso, a queda é perda de nossa filiação, a incapacidade para viver nosso ser como relação com a Fonte.
Gnosticismo é como os estudiosos de filosofia e religião tem chamando o que eu, inclusive, já chamei aqui de Gnosticismo Histórico, que abarca dentro de si o Gnosticismo Clássico. Já usei essa expressão Gnosticismo Histórico em várias postagens como por exemplo:
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Gnosticismo é a denominação que se dá às filosofias, seitas religiosas e Igrejas que surgiram entre os séculos 1 a.C. e 5 d.C. Trata-se de uma filosofia religiosa surgida em meio a grupos judaicos heterodoxos que deram origem ao Cristianismo e que posteriormente se caracterizaram como Cristãos ao adotar a figura de Jesus Cristo como seu grande Iluminador (ao perceberem Jesus, por exemplo, como reencarnação de seu grande Salvador, Seth, como fizeram setianos, barbelonitas, ofitas e outros), filosofia esta baseada numa interpretação do mundo a partir da filosofia de Platão.
Esses grupos buscaram explicar a Gnose como Metafísica através de uma linguagem própria, uso de jargões, clichês e palavras próprias caracterizantes de um grupo separado das outras filosofias e religiões - entendam "jargões" e "clichês" aqui não no sentido pejorativo mas no sentido de palavras típicas e expressões próprias recorrentemente e excessivamente usada para caracterizar a doutrina que está sendo ensinada. Esta linguagem própria é um Mito Fundador, um mito das origens do mundo que foca na Alma Humana. Ao longo do tempo esse mito foi sendo cada vez mais elaborado e complexo dando origem ao que se chama de Mito de Pistis Sophia. Nesse Mito Fundador, o gnosticismo busca explicar porque os membros da religião se consideram separados e diferentes do resto da humanidade, cuja alcunha mais famosa receberam dos outros foi a de GNÓSTICOS.
Assim, tudo aquilo que foi dito sobre a Gnose como Metafísica e Epistemologia e ainda outras acepções que aparecerão mais adiante passa a ser explicado e transmitido através de um conjunto de crenças, dogmas, mitos e Escrituras que formam um grupo religioso que é comumente chamado de Gnosticismo Histórico. Esses gnósticos ensinaram que a Gnose estava escondida nas diversas religiões, como uma espécie de saber secreto que cada um deveria encontrar e que eles tentavam passar essa Sabedoria através de seus textos, dogmas e rituais. A obtenção dessa Gnose daria ao portador dela, o gnóstico, a Salvação de sua Alma e sua libertação desse mundo.
Com a redescoberta dos textos escritos pelos próprios gnósticos descobrimos que eles se autodenominavam de várias maneiras e nem todos se autodenominavam de "gnósticos": Filhos da Luz, Geração Inabalável, Raça Imarcescível, Raça Inabalável, Detentores do Conhecimento, Filhos do Pai e da Mãe, Aqueles que receberam o Espírito Vivo, Os Perfeitos, Os Espirituais ou Pneumáticos, Companheiros do Espírito, Descendência de Seth, Raça de Seth, Posteridade de Seth, Semente Sagrada de Seth e outras mais.
A origem gnóstica do Cristianismo é tão evidente que Celso, um filósofo pagão, escreveu uma obra contra os cristãos parcialmente citada por Orígenes em Contra Celso onde demonstra que, além dos que se autodenominavam de gnósticos, havia muitos outros cristãos que não se denominavam assim mas hoje são colocados como gnósticos, como os Marcionitas, Simonianos ou Helenianos, Marcelinianos, Harpocráticos e outros seguidores de Mariamne e os seguidores de Marta. Celso não percebe a existência de algo que poderia se chamar de Igreja Católica separada do gnosticismo pois a massa dos cristãos é basicamente dividida entre gnósticos autodenominados e gnósticos que não se denominavam assim. Isso é uma importante evidência da fraqueza e minoria que era o proto-catolicismo que viria a ser a igreja ortodoxa católica, seita cristã criada posteriormente ao cristianismo original gnóstico cujos fundamentos foram dados pelo imperador romano Constantino e cuja biblia foi inventada pelo bispo Atanasio de Alexandria em 367 d.C.
Celso diz que os Valentinianos se atribuíam o cognome de gnósticos.
Clemente de Alexandria diz que os seguidores de Pródico se autodenominavam gnósticos, Filhos do Rei Por Natureza e Filhos do Primeiro Deus.
Ireneu de Lion diz que os Carpocracianos se autodenominavam Gnósticos.
Hipólito de Roma diz que que os Naasenos, Peratas, Sethianos e os seguidores de Justino, fundador de uma seita ofita, se autodenominavam gnósticos.
Ou seja, eram poucos os cristãos que se autodenominavam de gnósticos. Esse número só veio a aumentar quando os heresiologistas católicos passaram a denominar de gnósticos grupos e seitas que não se autodenominavam assim. Desse jeito, passaram a ser denominados de gnósticos autores e grupos como os Ebionitas, os Nazarenos, Cerdão, Marcião, Luciano de Antioquia, Apeles, Simão Mago, os Nicolaítas, Severianos, Docetas, Encratitas ou Tacianitas, Montanistas ou Catafrígios, Quartodecimanos, Cerinto, Menandro, Saturnino, Hermógenes, Basílides, Isidoro, Bardesanes e alguns outros.
Para caracterizar um grupo como herético e promover sua estigmatização e posterior perseguição e eliminação, os católicos passaram a usar a alcunha "gnóstico" como sinônimo de herege que precisa ser destruído. O mesmo aconteceu com os termos Maniqueísta e Ariano. Todos estes testemunham a gigantesca variedade e multiplicidade do cristianismo pré-concílio de Niceia e da absolutamente improvável exclusividade forçada pela seita católica de Roma e seus papas idolatrados por Constantino e os imperadores seguintes. Assim, 'Gnose" torna-se um termo prático para designar simplesmente o que não se coaduna com os trilhos de determinada igreja - por exemplo, a de Roma.
D - GNOSE COMO ESOTERISMO
A partir do século XVI passou a se chamar de gnósticos documentos antigos reencontrados, tais como pedras gravadas de imagens, tabuletas de chumbo com inscrições, desenhos, frases e papiros. Provinham do Egito e da Síria em seu período greco-romano. Contêm representações humanas e animais, imprecações, exorcismos e, frequentemente, nomes divinos e listas de palavras aparentemente incoerentes, designadas antigamente como Ephesia Grammata. Apesar de muitos deles datarem dos séculos 5 e 4 antes de Cristo, de fato o gnosticismo teve contato com essas culturas de palavras mágicas e nomes místicos a serem invocados em rituais, dando origem às chamadas Pedras de Abraxas e às frases místicas que aparecem em vários textos gnósticos como Pistis Sophia e Evangelho dos Egípcios, além do Corpus Hermeticum.
Uma coleção de livros de Magia foi encontrada, chama-se Papiros Mágicos Gregos, nos quais mencionam feitiços baseados em fórmulas mágicas do mesmo tipo de Ephesia Grammata também chamadas de Voces Magicae. Apesar disso, esses textos não podem ser considerados gnósticos de maneira alguma por que apenas apresentam alguns nomes de divindades em comum com o gnosticismo e não ensinam a doutrina gnóstica mas sim feitiços e ritos do conturbado mundo religioso do Egito romano. Pistis Sophia utiliza de divindades que aparecem nos Papiros Magicos Gregos mas as interpreta num contexto totalmente gnóstico e espiritual. Orígenes chega a dizer em Contra Celso que os Ofitas retiraram da Magia alguns nomes de seres que colocaram no seu sistema mitológico.
Mas essa confusão, já resolvida, não chega perto da audácia que ocorreu também a partir do século XVI de denominar de gnósticas doutrinas novas sem base histórica. Essas novas doutrinas que infelizmente continuam sendo chamadas de "gnósticas" por seus adeptos e por quem estuda isso se referem a todas as correntes esotéricas que, a partir do Renascimento, surgiram na Europa, ou seja, trata-se daquele monte de coisas novas que vivem forçando uma pretensa antiguidade absurdamente improvável como novos desenvolvimentos da Cabala, Iluminismo, Hermetismo (não o Corpus Hermeticum mas o hermetismo que estourou no renascimento, o chamado hermetismo popular ou mágico), alquimia, astrologia, teosofia, numerologia, franco-maçonaria, rosacrucianismo e outros. Os adeptos dessas doutrinas usaram demasiadamente o termo "gnóstico" para denominar a si a suas novas doutrinas e isso acabou entrando em dicionários e enciclopédias destinados ao grande público e não é raro encontrar essa errônea confusão em prateleiras de livros esotéricos em grandes livrarias.
A questão é que, de fato, o gnosticismo possui um elemento esotérico como um dos componentes de si mas isso não significa que todo esoterismo seja ou tenha gnose ou seja gnosticismo! Absolutamente não! Por esotérico aqui chamamos um conteúdo oculto, misterioso, enigmático cuja compreensão é reservada a iniciados e não é passada diretamente á grande massa, sendo então menosprezado e desprezado pela maioria mas considerado verdadeiro por uma minoria.
Mas vamos desde o começo para entender essa moderna confusão entre Gnosticismo e Esoterismo: as Religiões de Mistério.
Religiões de Mistério ou Mistérios Greco-Romanos é como se chamam as religiões espalhadas pelo mundo greco-romano e suas colônias cujas doutrinas e ensinamentos eram reservados aos Iniciados, ou seja, aqueles que passaram por um processo ritual de iniciação devidamente e poderiam então ter acesso ao corpo de doutrinas secretas (Arcanos) daquele culto. Existiram vários cultos de mistério diferentes mas todos eles possuem elementos fortes em comum que permitem que os caracterizemos como tais:
- O Mito Fundador: são baseados em um Mito Fundador, um conto mitológico. Esse conto é ensinado pois é o fundamento do culto. Aos poucos, o iniciado vai aprendendo o real significado do conto. Ou seja, é necessário fazer uma interpretação alegórica do Mito pois o seu significado verdadeiro está oculto e requer uma mente inteligente e sábia que consiga entender o mistério da interpretação do Mito. Por exemplo, o Orfismo tinha o seu mito de Orfeu e Eurídice. Os mistérios de Isis tinham o mito de Isis, Osiris e Horus. Os mistérios de Eleusis tinham o mito de Deméter e Perséfone. O mitraísmo Romano tinha o mito de Mitra, e etc.
- A iniciação: o candidato a novo membro do grupo passa por um processo de Iniciação, que consiste em um ritual teatral onde as pessoas interpretam os personagens do Mito Fundador e o Mito é representado como se fosse numa apresentação teatral mesmo, mas o público são os próprios participantes do ritual e os outros membros do Culto. Esse ritual é bastante emocional pois os participantes, principalmente o Iniciando, deve encarnar e sentir realmente a personagem que está interpretando, como um ator de teatro faria, internalizando sentimentos e emocionando a platéia e a si mesmo.
- Os Arcanos: o corpo de conhecimentos secretos. Os iniciados eram absolutamente PROIBIDOS de divulgar os ensinamentos e práticas do grupo, ou seja, os mistérios, às pessoas. Somente poderiam falar sobre isso com os colegas de culto. Entre as justificativas está a de que as pessoas mais ignorantes e despreparadas não entenderiam, blasfemariam, espalhariam boatos e deturpações e os mistérios acabariam dissolvidos e seu real significado seria destruído, acabando assim com o culto.
- Purificações: para participar dos ritos de Iniciação, os iniciandos deveriam praticar rigidas regras de purificação, como se abster de atividade sexual ou comer carne, não falar, se trancar num cômodo escuro, tomar banho ritual à noite num rio ou lago, usar incenso, velas, ervas etc. Esses ritos variavam mesmo dentro de um mesmo tipo de culto, por exemplo os mistérios de Isis que em uma cidade tinham determinados tipos de ritos que em outra eram um pouco diferentes. Haviam também purificações específicas para reuniões comuns de membros já iniciados.
- Contribuição: os iniciados deveriam fazer doações e contribuir com valores e bens para poder participar do culto.
- Eram abertos a todos os tipos de pessoas, desde que aprovadas durante as "entrevistas" e observações de seu comportamento moral durante as reuniões que os neófitos ou aspirantes podiam participar.
- As mulheres eram preferidas para serem as sacerdotisas e organizadoras do culto. Uma exceção é o Mitraísmo no qual as mulheres eram proibidas.
- Apesar de referências antigas até o século 5 antes de Cristo, os cultos de Mistério floresceram bastante na antiguidade tardia, entre o século 2 d.C. até o 5 d.C.
- Recompensas: aos praticantes eram prometidas recompensas nesta vida ou na próxima se praticassem com fidelidade e honestidade os ensinamentos do culto.
- Certas práticas como danças frenéticas de êxtase em público que aconteciam nos mistérios de Dionísio, o sacrifício ritualístico de animais como nos mistérios de Mitra e o ingerir de uma bebida especial possivelmente alucinógena como nos mistérios de Elêusis parecem ser uma tentativa de retorno de práticas xamânicas e animistas de estágios bem primitivos e pré-históricos das religiões locais, como a grega e a egípcia. Há uma tendência "nacionalista" nos mistérios, pois em cada local, cidade ou vilarejo eles tomavam a coloração específica da região e os costumes locais.
Uma rápida lida nesses tópicos já dá para perceber que de fato o Gnosticismo possuía muitos elementos das religiões de Mistério. Mas não dá para colocar o Gnosticismo como uma religião de Mistérios! E eu explico.
O gnosticismo surge como uma mentalidade heterodoxa judaica lentamente gestada a partir da Apocalíptica, como vimos nas 9 postagens sobre A FÉ GNÓSTICA. Contém uma interpretação esotérica das escrituras judaicas mas não se trata de um culto de mistério, mas sim de uma mentalidade que vai tomando forma aos poucos até se transformar em uma religião própria quando se encontra finalmente com a filosofia de Platão no Egito. O apocalipsismo, como vimos, derivou do Profecismo e foi uma resposta do povo judeu às incoerências e falsas promessas de seu Deus, tentando justificar toda a desgraça do povo judeu através de novas interpretações da sua escritura e tradição e, principalmente, através da publicação de novos textos para o novo contexto em que estão inseridos, como é nítido no livro de Daniel que é um típico Apocalipse judaico.
Quando essa mentalidade passa a ser influenciada pela filosofia grega e pela religião egípcia, surgem as primeiras formas do Mito de Sophia. De fato, o Gnosticismo tem seu próprio Mito Fundador. Quando algum judeu, ou alguns, não sabemos quem, resolveram ou resolveu recontar a história da Alma conforme Platão adaptando as doutrinas de Platão e dos medioplatônoicos às doutrinas da Torá e do Velho Testamento e assimilando as concepções religiosas egípcias, dando origem ao primitivo Mito de Sophia como vemos nos textos Barbelonitas, então esse conto específico "explodiu" em popularidade, vindo a influenciar os judeus da própria palestina, como Jesus, se tornando o Mito Fundador não de um culto esotérico de mistérios mas de uma religião organizada separada do judaísmo, cada dia mais complexa e própria, com sua própria linguagem.
De fato, o Mito de Sophia é um Mito Fundador de Mistério e exatamente como nas religiões mistéricas deve ser interpretado. Porém em nenhum relato heresiologista há o elemento da ENCENAÇÃO teatral do Mito! Esse elemento é básico em todas as religiões mistéricas. Porque os gnósticos não encenavam ritualmente com iniciados o seu Mito Fundador? Talvez porque não viam sua religião como Culto de Mistério, mas como religião pública organizada e missionária, como acabou sendo realmente.
Realmente existe relatos nos heresiologistas sobre algumas poucas seitas gnósticas que proibiam a divulgação de seus mistérios e tratavam a si mesmas como cultos de mistério, inclusive adotando práticas das outras religiões de mistério como uma iniciação secreta, arcanos, sacerdócio feminino, etc. Mas essa não era a regra. Os gnósticos ESCREVIAM suas doutrinas e produziam novas escrituras para complementar ou substituir os textos do Velho Testamento! Isso é inadmissível para uma religião de mistérios! Escrever e publicar livremente é a antítese de religião mistérica.
Apesar disso, o Gnosticismo realmente atraiu uma grande massa dos participantes das religiões de mistério. É bastante provável que a teologia da divindade feminina Barbelo é uma derivação do culto de mistério de Isis egípcio mesclado com a doutrina metafísica dos Medioplatônicos. De fato o Barbelonismo parece ser, dentre os cultos formais e organizados de gnósticos, o mais antigo ou um dos dois mais antigos ao lado do Setianismo. E é aqui que precisamos falar do Orfismo.
Não existe culto de mistério mais parecido com o gnosticismo do que o Orfismo. Essa religião existia pelo menos desde o século 5 antes de Cristo pois Platão e Pitágoras falam desse culto como inspiração, ou seja, é provável que existia muito antes ainda. Ambos os filósofos foram iniciados nos mistérios do Orfismo e retiraram deles elementos de sua filosofia e estilo de vida, por exemplo a ênfase que Platão dá no corpo como túmulo da Alma e na matéria como corruptível e a ênfase de Pitágoras no monoteísmo e na transmigração da Alma ou "reencarnação".
O orfismo tinha seu Mito Fundador, o mito de Orfeu. A interpretação do Mito oferecia uma quebra com a religiosidade grega tradicional, uma verdadeira reforma do pensamento grego numa direção bastante egípcia, focada na Jornada da Alma e na vida após a morte. Entre as características e crenças do Orfismo, estão:
- Divindade das Almas Humanas, condenadas ao ciclo de renascimentos por pecados cometidos em vidas passadas;
- Prescrição de uma forma de vida ascética, controlando as paixões e sentimentos, e utilizando de ritos e iniciações para promover esse estilo de vida, impedir os renascimentos e tornar possível à alma comungar finalmente com os Deuses;
- Condenação após a morte por transgressões cometidas durante esta vida;
- Aceitação de escritos sagrados próprios que expunham a doutrina, os mitos e sua interpretação;
- Crença em um "profeta" ou "iluminador", Orfeu, que era filho do Deus Apolo, símbolo grego do monoteísmo. Platão revela na República que comunga das crenças órficas e pitagóricas ao citar, como fez Pitágoras, Apolo como símbolo do Uno, pois o prefixo A na língua grega significa privação, ausência, e Polo vem de Pollon, que quer dizer MUITOS, ou seja, APOLO significa AUSENTE DE MUITOS, AQUELE QUE NÃO É MÚLTIPLO. Em suma, Apolo significa O UNO, o Ser, Deus. Orfeu é filho de Apolo, ou seja, é o profeta, messias e salvador do Único Deus Apolo.
- Prescrição da obrigatoriedade do vegetarianismo e da abstenção de violência contra os animais e seres humanos;
Ora, todos esses elementos estão no Gnosticismo, na verdade são características fundamentais do Gnosticismo!
Citamos o Setianismo. Enquanto o Barbelonismo traz a Trindade Egípcia (Osiris, Isis e Horus) para um contexto judaico através do Medioplatonismo e suas Hipóstases assimiladas por Filon de Alexandria - o filósofo judeu platônico - chamando-os de o Pai, a Mãe e o Filho, os Setianos trazem para dentro do judaísmo elementos do Orfeu grego mesclados com o Horus egípio e as expectativas zoroastrianas do retorno de Zoroastro assimiladas tardiamente pelo judaísmo sob a forma do Messias, o Salvador, Saoshyant.
Os gnósticos judeus setianos recriaram o Mito do Jardim do Éden o transformando num Mito Fundador esotérico. Mas nesse mito, Seth, o terceiro filho de Adão e Eva, é o Messias, o Salvador judeu, que no passado havia recebido do Verdadeiro Deus a doutrina sobre a origem do mundo e seu criador maligno, o demiurgo Yaldabaoth, e como as Almas Humanas estão presas no ciclo de reencarnação devido aos seus pecados, apegos e paixões. Rejeitando todas as outras escrituras hebraicas como invenções de Yaldabaoth para enganar os judeus, os Setianos só aceitam as suas versões de alguns personagens do velho testamento, claramente apenas do Genesis como Adão e Eva, Caim, Abel e Seth, Noé e seus filhos, Melchisedek e outros do livro de Genesis. Todos os outros textos da Torah e do Velho Testamento são citados como exemplo das maldades de Jeová que é Yaldabaoth, o anjo maligno que criou o mundo e se acha Deus e é o filho rebelde e defeituoso de Sophia.
Posteriormente, ao nascer e pregar Jesus Nazareno a sua Gnose cética essênia, na verdade Jesus o Essênio, os judeus gnósticos setianos do Egito vão identificar Jesus como uma reencarnação de seu Salvador Seth que viria posteriormente para Iluminar novamente a humanidade. A partir daí, o Gnosticismo Clássico barbelo-setiano toma a forma Cristã e assimila as doutrinas de Jesus. Os gnósticos que antes bebiam dos cultos de mistério greco-romanos passam a ter a sua própria religião, o Cristianismo e o inverso acontece: parece que os cultos de mistério vão gradualmente se transformando em Igrejas Gnósticas Cristãs, abandonando seus mitos antigos e adotando o Mito de Sophia e a Fé em Jesus além dos rituais cristãos como a Eucaristia. Jesus definitivamente prepondera sobre Seth e nem outros mestres como Buddha conseguem tirar o seu posto de Grande Iluminador. Só o Profeta Mani consegue sobrepujar tanto Jesus quanto Sidarta Gautama, inclusive até hoje em várias seitas budistas do Tibet, China e Japão onde Buddha Moni é mais venerado e importante do que Gautama que foi o "primeiro" Buda.
Não posso afirmar isso mas é notório que as religiões de mistério desaparecem exatamente quando o Gnosticismo alcança seu ápice no mundo greco-romano. Mesmo com perseguições ferrenhas o Gnosticismo lutou bravamente para continuar existindo e sobreviveu no Oriente até hoje, enquanto as escolas de mistério sumiram do mapa para nunca mais. E é bastante provável, pela identidade extrema de doutrinas, que o Orfismo tenha desaparecido quando naturalmente se assimilou ao Gnosticismo, deixando de ser uma religião de mistérios.
Por todos os motivos aqui expostos é claro que Gnosticismo não é uma religião de mistérios, apesar de herdeiro de várias doutrinas delas, principalmente o antiquíssimo Orfismo. O gnosticismo não é religião de mistérios porque é missionário, proselitista, universalista, prega de porta em porta, de rua em rua, de praça em praça, quer converter a todos. O gnosticismo tem Escrituras Sagradas que devem ser divulgadas, replicadas, copiadas, espalhadas, ao contrário dos Mistérios. O gnosticismo tem sua parte esotérica mas é essencialmente Exotérico pois é para todos. O fato de ter seu elemento esotérico não torna o Gnosticismo um tipo de esoterismo, ao contrário das religiões de mistério.
E - GNOSE COMO SINCRETISMO
Da mesma forma que Gnosticismo não é esoterismo só porque possui o elemento esotérico, Gnosticismo não é sinônimo de sincretismo só porque possui o elemento sincrético, como alguns tentam forçar. Leloup cita W. Köhler, segundo o qual Gnose não é um simples ecletismo que procura conciliar correntes diferentes; ao efetuar a fusão ou a simbiose de elementos judaicos, cristãos, zoroastrianos, egípcios e babilônios, ela constitui o próprio sincretismo que se tornou um saber absoluto, uma nova religião, um método de salvação, oriundo de uma reviravolta da história social e política do Oriente, a partir da conquista macedônica.
Outra coisa importante que devemos destacar é que muitos aí pela internet afora adoram ficar espalhando mentiras bem bobas: primeiro, que gnosticismo seria a mesma coisa que maniqueísmo, como se essas palavras fossem sinônimos; segundo, que o gnosticismo surgiu na Pérsia.
Ora, mas só pode ser analfabeto ou preguiçoso. Os próprios padres da Igreja dizem que o gnosticismo surgiu entre judeus samaritanos e outros grupos judaicos batistas da Palestina. Por outro lado, os textos gnósticos mais antigos e que testemunham o estágio mais primitivo do Gnosticismo Clássico mostram que as doutrinas gnósticas derivam do medioplatonismo de Alexandria, teosófico por natureza, e de cultos de mistério e concepções religiosas populares Egípcias. Essas pessoas são preguiçosos covardes, pois não tem a mínima vontade de ler nada e fingem que sabem. Repetem coisas que leem por aí, parágrafos soltos de sites ridículos ao invés de buscar as fontes primárias e verdadeiros estudiosos imparciais do tema.
É óbvio que o Gnosticismo contém o elemento persa Zoroastriano do Dualismo. Mas isso se deu mais por influência indireta proveniente do Medioplatonismo de Alexandria e pelos próprios Essênios do que de fato por uma influência direta persa em terras persas. Já falamos aqui no blog em outra postagem sobre a diferença entre o gnosticismo mitológico do Egito e o gnosticismo cético da Palestina. Ambos tem a mesma concepção da Alma Humana e sua jornada pelo mundo, porém um explica com uma complexa mitologia judaico-egípcia como o Evangelho Apócrifo de João e o outro com provérbios e ditos curtos que requerem uma maior análise para que haja entendimento, como o Evangelho de Tomé. Um é mais egípcio. O outro é mais indiano. Mas ambos são estruturalmente judaico-cristãos. O fato de ter elemento zoroastriano não é prova alguma de que tenha surgido na Pérsia.
F - GNOSE COMO FENOMENOLOGIA
Gnose como fenomenologia é bastante problemática devido ao mal entendimento da questão e de reducionismos forçados que muitos fazem. Nesse sentido, gnose seria a mera transposição mitológica dos dramas e angústias de indivíduos e grupos sociais, cujas correntes ideológicas precederam ou seguiram o cristianismo primitivo. Ela é a expressão de uma experiência humana, profunda e universal, da alienação no sentido fenomenológico, e não marxista, do termo: o homem descobre que é estrangeiro a este mundo e que seu lugar original (Deus) encontra-se em uma radical estranheza.
Seguindo essa acepção fenomenológica, o rótulo de gnóstico é atribuído ao Hermetismo do Corpus Hermeticum, às religiões de mistério, Fílon de Alexandria, neopitagorismo, Plotino e neoplatonismo: este conjunto forma o grupo pagão ou "Egípcio" das gnoses helenísticas.
Seguindo essa acepção fenomenológica, o rótulo de gnóstico é atribuído ao Hermetismo do Corpus Hermeticum, às religiões de mistério, Fílon de Alexandria, neopitagorismo, Plotino e neoplatonismo: este conjunto forma o grupo pagão ou "Egípcio" das gnoses helenísticas.
Por sua vez, o gnosticismo propriamente dito que foi conhecido pelos Padres da Igreja e pelas fontes diretas reencontradas (Nag Hammadi e etc), a parte não-sinóptica do Novo Testamento (Paulo, João, Epístola aos Hebreus), os apócrifos do Antigo e Novo Testamento, a especulação cristã alexandrina (Clemente e Orígenes) e as correntes monásticas (Evágrio Pôntico e os Padres do Deserto) e pneumáticas formam o grupo Cristão ou sírio-palestino das gnoses helenísticas.
Finalmente, a Apocalíptica Judaica, o profetismo samaritano, as seitas judaicas batistas, o montanismo, o mandeísmo, o maniqueísmo, a Cabala e determinadas partes mais "recentes" do Avesta formam o conjunto das gnoses orientais não-cristãs.
De fato, o Mito de Sophia expressa o drama existencial humano, mas não trata-se da transposição egoísta dos próprios sentimentos individuais sob uma forma mitológica. O mito contém elementos do drama existencial humano mas não das vicissitudes do dia-a-dia das pessoas, isso é ridículo. A grandeza do Mito de Sophia está na universalidade da doutrina ali apresentada, jamais vista na história humana. Algo parecido pode ser visto na filosofia Vedanta hindu e nos textos Upanishads, mas o Gnosticismo expressa o drama CÓSMICO da origem, queda e salvação da Alma de forma absolutamente original, profunda e instigante, a ponto de ser fonte da psicologia profunda e da psicanálise moderna, como veremos com Carl Jung.
Infelizmente essa acepção fenomenológica foi amplamente deturpada e absorvida como sendo o verdadeiro significado de Gnose por pessoas muito mal intencionadas, como o néscio Eric Voegelin. Na postagem essencial sobre uma suposta "gnose política" inventada por esse mentecapto ( https://gnosedesi.blogspot.com/2018/01/gnosticismo-politico-moderno-as.html ) já discorremos um pouco sobre isso. Eles são tão néscios, os seguidores dessa mentira retardada, que não percebem que o próprio Novo Testamento está recheado de gnose fenomenológica e muitos de seus padres e doutores da igreja, principalmente os ligados ao monasticismo, pregam isso. Muitos autores, incluindo Blavatsky, percebem o pano de fundo gnóstico nas epístolas do apóstolo Paulo. Sua intensidade psicológica e emotiva, quase romântica, parece que foi assimilada de um gnosticismo cristão extremamente popular com o qual Paulo teve contato direto. Essa percepção de alienação, de se estar preso num mundo estranho é dita expressamente por Paulo, quando em várias passagens de suas cartas fala que estamos temporariamente presos em um mundo corruptível e que Cristo veio nos libertar desse mundo maligno para nos levar ao Céu de seu Pai. Ora, isso é exatamente Gnose Fenomenológica, a mesma que também está presente no Mito de Sophia e no Evangelho de Tomé. Mas Sophia nem Tomé se resumem a isso, pois é apenas uma parte da coisa toda.
Querer resumir Gnose a "revolta contra a realidade" ou "angústia existencial" é basicamente chamar Fílon de Alexandria, apóstolo Paulo, Jesus Cristo e Padres da Igreja de gnósticos. Para nós, gnósticos, não há problema nisso. O problema são esses caçadores de heresias contemporâneos não perceberem que estão acusando os outros de serem o que eles mesmos afirmam que são sem perceberem.
Outra coisa, um autor que cometeu muitos erros em seus livros, Hans Jonas, que escreveu um livro fraco cheio de erros chamado A Religião Gnóstica, por não ter tido contato com a Biblioteca de Nag Hammadi enquanto escrevia seus livros, tentou resumir em uma fórmula simplificada e boba o que seriam os gnósticos, e que resume bem o erro de se perceber gnose como fenomenologia. Para ele, gnose é a resposta a três questões existenciais: de onde viemos? onde estamos? para onde vamos? De fato o gnosticismo tenta responder a essas questões mas perceber elas como a essência ou a definição do que é gnose é no mínimo estranho dadas as recentes descobertas dos textos.
Outra coisa, um autor que cometeu muitos erros em seus livros, Hans Jonas, que escreveu um livro fraco cheio de erros chamado A Religião Gnóstica, por não ter tido contato com a Biblioteca de Nag Hammadi enquanto escrevia seus livros, tentou resumir em uma fórmula simplificada e boba o que seriam os gnósticos, e que resume bem o erro de se perceber gnose como fenomenologia. Para ele, gnose é a resposta a três questões existenciais: de onde viemos? onde estamos? para onde vamos? De fato o gnosticismo tenta responder a essas questões mas perceber elas como a essência ou a definição do que é gnose é no mínimo estranho dadas as recentes descobertas dos textos.
Ora, eu só fui descobrir que existia uma coisa chamada de gnosticismo quando fui ler os Padres da Igreja, espantado que fiquei com a semelhança das doutrinas de Platão com os textos bíblicos. Mas algumas pessoas estão chocadas, aterrorizadas, atemorizadas porque não sei quantos filósofos de youtube sem o fundamental completo e padres afeminados que se dizem conservadores estão alardeando o perigo, o perigo terrível do gnosticismo infiltrado na mídia, nas igrejas, nos filmes, nas novelas, nas músicas, na política, na economia e etc. Cômico, hilário! Divertidíssimo. Pois enquanto ninguém sabia o que era gnosticismo não havia perigo, de fato. Mas eles alardearam tanto contra a suposta conspiração gnóstica para destruir as bases da civilização através de ideologias políticas que as pessoas foram buscar saber: que é essa tal de gnose que eles tanto falam que temos que temer, e fugir, e expulsar? O efeito foi o contrário. A manipulação deles contra nós não só é burra mas ineficaz, pois eles nem sabem do que falam muito menos controlam a realidade como o deus deles Yaldabaoth tenta fazer. Alardearam tanto que muitos tem percebido que lhes foi negado o DIREITO de ler os textos apócrifos. DIREITO ao conhecimento, que eles tanto negaram por tantos séculos. E agora vem descobrindo que as coisas não são como os pretensos heresiologistas modernos pensam, muito pelo contrário.
G - GNOSE COMO EXPERIÊNCIA DIRETA DE DEUS OU DO MUNDO ESPIRITUAL (PERCEPÇÃO MÍSTICA ou UNIÃO MÍSTICA)
G - GNOSE COMO EXPERIÊNCIA DIRETA DE DEUS OU DO MUNDO ESPIRITUAL (PERCEPÇÃO MÍSTICA ou UNIÃO MÍSTICA)
Exemplo da influência do Gnosticismo sobre determinadas seitas, filósofos e teologias muçulmanas está a Gnose como Percepção Mística. Nesse sentido quer se dizer a Gnose na seara das revelações, visões e iluminações espirituais, ou seja, as experiências místicas. Esse tipo de cultivo já existia na Apocalíptica judaica, retratada nos textos apocalípticos de viagem a outros mundos, como já falamos na postagem sobre A Fé Gnóstica Parte 6.
Na filosofia de Suhrawardi, que já citamos aqui na postagem Maniqueísmo e Budismo Esotérico Parte 1 https://gnosedesi.blogspot.com/2018/11/maniqueismo-e-budismo-esoterico-parte-1.html, encontramos de forma sistematizada o misticismo gnóstico das experiências diretas com a Divindade. Shahab Al-Din Yahia ibn Habash Suhrawardi é um importante filósofo do Sufismo, misticismo islâmico. Nasceu no Irã em 1154 mas viveu também no Azerbaijão, Iraque e Síria, morrendo em 1191 acusado de heresia por ensinar doutrinas esotéricas. Pretendeu restaurar uma suposta verdadeira tradição filosófica persa anterior ao Zoroastrismo e presente na obra de Platão e de Hermes Trismegisto. Na verdade, sua filosofia trata-se de um Gnosticismo com forte inspiração Zoroastriana e notória semelhança com o Maniqueísmo.
Surauardi ensina que existem basicamente três tipos de Universo:
1 - existe o mundo físico-sensível que engloba tanto nosso mundo terrestre (governado pelas almas humanas) quanto o universo sideral (governado pelas almas das esferas); trata-se do mundo sensível, o mundo do fenômeno ou Molk.
2 - existe o mundo supra-sensível da alma ou dos anjos-alma, o Malakut, no qual se encontram as cidades místicas e que começa "na superfície convexa na nona esfera"
Na filosofia de Suhrawardi, que já citamos aqui na postagem Maniqueísmo e Budismo Esotérico Parte 1 https://gnosedesi.blogspot.com/2018/11/maniqueismo-e-budismo-esoterico-parte-1.html, encontramos de forma sistematizada o misticismo gnóstico das experiências diretas com a Divindade. Shahab Al-Din Yahia ibn Habash Suhrawardi é um importante filósofo do Sufismo, misticismo islâmico. Nasceu no Irã em 1154 mas viveu também no Azerbaijão, Iraque e Síria, morrendo em 1191 acusado de heresia por ensinar doutrinas esotéricas. Pretendeu restaurar uma suposta verdadeira tradição filosófica persa anterior ao Zoroastrismo e presente na obra de Platão e de Hermes Trismegisto. Na verdade, sua filosofia trata-se de um Gnosticismo com forte inspiração Zoroastriana e notória semelhança com o Maniqueísmo.
Surauardi ensina que existem basicamente três tipos de Universo:
1 - existe o mundo físico-sensível que engloba tanto nosso mundo terrestre (governado pelas almas humanas) quanto o universo sideral (governado pelas almas das esferas); trata-se do mundo sensível, o mundo do fenômeno ou Molk.
2 - existe o mundo supra-sensível da alma ou dos anjos-alma, o Malakut, no qual se encontram as cidades místicas e que começa "na superfície convexa na nona esfera"
3 - finalmente existe o universo das puras inteligências arcangélicas.
A estes três universos correspondem três órgãos de conhecimento: os sentidos, a imaginação e o intelecto. Essa tríade corresponde à tríade antropológica de Corpo, Alma e Espírito - tríade que regula o triplo crescimento do homem que se estende desde este mundo até as ressurreições em outros mundos. Assim, entre o mundo sensível e o mundo da pura inteligência existe um estágio intermediário, um universo verdadeiramente real, do ponto de vista ontológico, assim como os outros dois. Esse mundo é chamado também de Alam Al-Mithal, o Mundo dos Arquétipos ou da Imagem. Esse mundo requer uma faculdade de percepção própria. Essa faculdade é o poder "imaginativo" que não deve ser confundido com a imaginação humana normalmente chamada de fantasia e que apenas segrega o imaginal. Os sufis vão chamar esse universo de Oitavo Clima. O mundo das percepções sensíveis é o mundo dos Sete Climas. No entanto existe um outro, o Oitavo, que possui extensão, dimensões, figuras, cores, só que não perceptíveis pelos sentidos do mundo sensorial. Esse universo só é acessado por uma percepção imaginativa ou dos "sentidos psicoespirituais" e está dentro do Malakut, sendo seu limiar. Também é chamado de Mothol Mo'Allaqa, mundo das Imagens em Suspenso. A percepção precisa desse mundo depende de experiências espirituais visionárias que, segundo Suhrawardi, deverão merecer toda nossa consideração.
Assim como nas outras acepções, Gnose é também uma experiência espiritual visionária. Essa capacidade de imaginação ativa ou sentido psicoespiritual. Por essa função imaginativa, todos os universos têm a possibilidade de se simbolizarem uns em relação aos outros, além de as mesmas realidades substanciais assumem formas correspondentes, respectivamente, a cada universo. Assim, a Gnose exerce uma função se simbolização; ela faz com que determinados mundos se relacionem com estatutos ontológicos heterogêneos.
O gnosticismo, assim, escapa, e sempre escapou, do dualismo simplista, pobre e banal do "matéria versus espírito" ou "bem versus mal". Os conhecedores do Oitavo Clima, os gnósticos, escapam às armadilhas conceituais simplistas dos sistemas do mundo sensível.
Um exemplo bastante interessante de busca por uma percepção mística é o ritual descrito por Ireneu em Contra as Heresias a respeito de Marcos, um professor valentiniano que fundou sua própria igreja derivada de Valentim. Antes de expor e tentar ridicularizar a metafísica de Marcos como sendo pura especulação numerológica inspirada em Pitágoras e nos pitagóricos, Ireneu descreve o que seria um tipo de Unção de Profecia, um dom espiritual passado de um mestre para seus discípulos e assim por diante. Ele escreve:
" 13,1 Outro, entre eles, que se gaba de corrigir o mestre, chamado Marcos, expertíssimo na arte mágica com a qual seduzia muitos homens e não poucas mulheres, atraindo-os a si como ao gnóstico e perfeito por excelência, e como detentor da Potencia suprema provinda de lugares invisíveis e indescritíveis, é como que o verdadeiro precursor do Anticristo. Misturando os jogos de Anaxilau com as malícias dos assim chamados magos se faz passar por milagreiro aos olhos daqueles que nunca possuíram discernimento ou então o perderam.
13,2. Fingindo consagrar no cálice uma bebida misturada com vinho e pronunciando longas invocações, a faz aparecer de cor púrpura ou vermelha. Assim, pode-se pensar que a Graça, por causa da sua invocação, depositou naquele cálice o seu sangue, vindo das regiões supernas. Os que assistem desejam provar da bebida para que se derrame também neles a Graça invocada por este mágico. Depois, apresentando aquela mistura de bebida às mulheres, ordena que elas dêem graças, na sua presença. Feito isto, pega num cálice muito maior do que aquele sobre o qual a extraviada deu graças e, transferindo a bebida do cálice menor, sobre o qual foi feita a eucaristia, para aquele bem maior que ele de antemão preparara, pronuncia estas palavras: Aquela que está antes de todas as coisas, impensável e inexprimível Graça, encha a tua pessoa interior, multiplique em ti a sua gnose, semeando o grão de mostarda em terra boa. Aquela infeliz, fora de si de estupor ante estas palavras, julga prodígio o fato de o cálice maior ser enchido pelo menor até derramar. Com esta e outras mágicas semelhantes seduziu e atraiu muitos a segui-lo.
13,3 Ele dá a entender que teria um demônio como assistente que o faz profetizar, a ele e a todas aquelas mulheres que julgar dignas de participar da sua Graça. Dedica-se de modo especial às mulheres, e, entre elas, especialmente às mais nobres, intelectuais e ricas, cujas vestes são enfeitadas de púrpura, que lisonjeia, procurando atraí-las com estas palavras: Quero que participes da minha Graça, porque o Pai de todos vê sempre o teu Anjo diante dele. Mas o lugar da tua grandeza está em nós, por isso devemos formar uma coisa só. Recebe primeiramente de mim e por meu intermédio a Graça. Prepara-te como esposa que espera pelo esposo para seres o que eu sou e eu seja o que tu és. Dá lugar na tua cama nupcial à semente da Luz. Recebe de mim o Esposo, dá-lhe lugar em ti, toma-o e sejas tomada por ele. Eis que a Graça desce em ti: abre a boca e profetiza. A mulher responde: Eu nunca profetizei, nem sei profetizar. Então ele repete algumas invocações que arrebatam a infeliz seduzida e diz: Abre a boca, dize qualquer coisa e profetizarás. E aquela, excitada por estas palavras e sentindo ferver na alma a ilusão de começar a profetizar e o coração pulsar mais forte do que de costume, anima-se e se põe a profetizar todas as tolices que lhe vêm à cabeça, sem sentido e sem hesitar, justamente por ser inflamada por espírito vazio. Alguém, melhor do que nós, disse a propósito dessa gente: audaciosa e impudente é a alma aquecida por vãos vapores. A partir deste momento ela julga ser profetisa e agradece a Marcos por torná-la participante da sua Graça e procura recompensá-lo não somente doando-lhe os seus bens (é daqui que vêm as grandes riquezas deste homem), mas também o seu corpo, desejando unir-se em tudo a ele para formar com ele o Uno."
Primeiro de tudo, é preciso saber que esses relatos são parciais e sem prova alguma. Ireneu expõe de forma pejorativa, violenta e agressiva, acrescentando dados sem nenhum respaldo comprobatório e muita coisa é pura fantasia. Isso fica provado logo em seguida pela exposição metafísica dos Marcosianos que é extremamente complexa e filosófica, caminhando entre platonismo e pitagorismo com pitadas de psicologia esotérica das religiões de mistério. Faz um belo estudo "proto-cabalístico" do cristianismo em que estava inserido. É um legítimo valentiniano. A doutrina é realmente elevada e requintada. Não dá pra imaginar um filósofo de raciocínio tão complexo e altíssimo nível intelectual se rebaixando a práticas de feitiçaria grosseiras que qualquer bruxo de esquina faz. Isso é óbvio que se trata de estigmatização forçada por Ireneu dos rituais teúrgicos que muitos gnósticos praticavam. Mas Ireneu em nenhum momento ridiculariza a Eucaristia proto-católica, na qual se acreditava que o pão e o vinho virariam a carne e sangue de Jesus. Qualquer descrição simples da Santa Ceia como as que existem no Novo Testamento leva a crer que se trata de uma despacho de macumba ou de uma bruxaria barata. Mas sabemos que não é isso, assim como sabemos que a Teurgia também não é.
Assim também é extremamente questionável, pra não dizer impossível, o relato sobre a sedução de mulheres. Mas que homem burro seria esse Marcos, seduzindo mulheres ricas e poderosas em uma sociedade onde qualquer sedutor denunciado ou não teria seu órgão decepado ou seria mesmo assassinado sem qualquer cerimônia. Mas Ireneu chama as mulheres intelectuais e ricas de idiotas por preferirem a gnose de Marcos à sua seita proto-católica de escravos ignorantes, fanáticos e fundamentalistas. Parece ser inveja devido às ricas doações que a Igreja de Marcos recebia, ao invés da seita de Ireneu que só recebia escravos famintos para ele manipular. Mas essa realidade iria mudar com as espertezas do psicopata imperador Constantino que fingiu se converter só para obter apoio da massa ignorante e poder reinar absoluto na riqueza e no luxo enquanto os católicos continuavam escravos e miseráveis.
Mas vamos ao ritual. É espantosa a semelhança dessa unção profética de Marcos com as modernas "unções de profecia" dos protestantes pentecostais. Mas o rito Marcosiano parece ser precedido de orações e invocações fixas, uma liturgia apropriada e fixa estabelecida para a unção de profecia, ao contrário dos shows bagunçados dos pentecostais. Não é com o pentecostalismo que começa esse descarado plágio das doutrinas e práticas gnósticas no protestantismo. Entre os Mórmons a noção de uma Mãe Celestial e da preexistência das almas humanas no céu é um plágio descarado do gnosticismo. Não tenho certeza dessa informação mas parece que Joseph Smith andava muito com maçons e membros de sociedades esotéricas e acabou influenciado por crenças dessas organizações. Não é preciso dizer de onde vem essas crenças. É claro que são gnósticas.
Mesmo o pseudo-êxtase carnal dos pentecostais e sua glossolalia (falar em línguas) parecem adulterações materiais e físicas de práticas de êxtase e união mística do gnosticismo, e que existem também em diversas religiões desde tempos imemoriais.
No entanto, para os gnósticos, o êxtase tem como objetivo libertar a alma humana das amarras do mundo material e permitir sua salvação após a morte. Não se trata de "perder o sentido" ou de "cair no espírito". Não se trata de simples manifestação caprichosa e arrogante de deus, para "aparecer" e dar seu show. Trata-se sim de TRANSCENDER o corpo e a mente, e atingir o que os textos gnósticos chamam de Graça e Silêncio, e que os neoplatônicos chamam de Nous. Plotino fala muito sobre o êxtase místico, e para ele ocorre quando sua mente se concentra nas realidades inteligíveis, no mundo das Ideias de Platão. O pentecostalismo gnóstico não é êxtase carnal artificialmente forçado com ritmos musicais, mas sim Vazio Silencioso da Mente sem pensamentos e desejos, que abre as portas da percepção para outras realidades muito mais reais, transcendentais, não-carnais. O conteúdo que vem dessas realidades e é revelado ao viajante se mostra verdadeiro porque está presente nos conteúdos de místicos das grandes tradições religiosas e espirituais do mundo. A Realidade Última é a mesma para todos.
H - GNOSE EM CARL GUSTAV JUNG
Carl Gustav Jung, amigo de Freud, famoso psicanalista suíço e fundador da Psicologia Analítica ficou encantado com o gnosticismo e percebeu nele o ápice da psicologia humana. Para Jung, nenhuma tradição religiosa conseguiu explicar tão bem a questão do inconsciente coletivo e dos arquétipos ou se propôs a desnudar o problema do Mal.
Em resumo, Jung começa explicando que para entender esse caráter psicológico do gnosticismo é necessário encará-lo, e isso ele diz aos doutores em psicologia, como um delírio psicótico, pois, se usarmos somente a filosofia e a teologia, não chegaremos aos conteúdos psicológicos e sua significância atual. Depois ele diz que as ideias gnósticas não são simples sintomas de uma certa evolução histórica mas formas novas e originais produzidas pelo pensamento criador. E justamente, enquanto tais, elas tiveram importância monumental na evolução da consciência ocidental e, como exemplos claros disso, estão as ideias judaico-gnósticas do Apóstolo Paulo no Novo Testamento e do Evangelho Apócrifo de João que permeiam o imaginário Ocidental desde que surgiram até os dias de hoje. A despeito de ser declarado heresia e sofrer as perseguições e acusações por parte da igreja oficializada, o gnosticismo não desapareceu: ao contrário, continuou a desenvolver-se e em alguns momentos chegou a transformar-se em outras tradições bem diferentes como a Alquimia até o tempo de Goethe sob seu aspecto psicológico e filosófico; e na Cabala, que desde Fílon de Alexandria vem sendo gestada no âmbito do judaísmo ortodoxo a partir das ideias gnósticas. Essas duas tradições, apesar de não constituírem estágios anteriores da psicologia analítica, contêm inesgotável fonte de informação e conhecimento para tal psicologia.
Para Jung, a Gnose é manifestação do inconsciente coletivo e de suas dominantes arquetípicas. Ela é a Verdade escondida que todos tentamos negar mas, no fundo, sabemos ser verdadeira. É o conteúdo recalcado pela igreja e pelas outras grandes instituições opressoras que tem medo de perder poder e prestígio a partir do despertar do ser humano e do uso da imaginação e da criatividade liberta.
Gnose, para Jung, é também o fenômeno de RECEPÇÃO psíquica da figura do Cristo. Citando o Evangelho da Verdade, obra de Valentim, encontrado em Nag Hammadi, Jung explica que, para esse texto, Cristo é, antes de tudo, aquele que traz a Luz, nascido do Pai não só para iluminar o torpor, a obscuridade e a inconsciência dos seres humanos, mas também para reconduzir o indivíduo à sua origem através do autoconhecimento. Para explicar isso, o gnosticismo faz uso da AMPLIFICAÇÃO, que seria o uso maciço de alegorias e símbolos, linguagem que o mundo greco-romano estava muito bem acostumado e, para aquela geração, era bastante inteligível. Mas hoje em dia essa linguagem nos parece absurda, agravando e dificultando o entendimento do que os gnósticos queriam dizer. Os gnósticos queriam tornar acessíveis à consciência os conteúdos difíceis do inconsciente. São especulações de natureza intelectual, filosófica e teosófica; mas ao mesmo tempo, analogias, sinônimos, símbolos recheados de natureza psicológica.
Iniciado com o Gnosticismo, este fenômeno da Recepção, onde a personalidade humana faz uma análise ou "raio x" de si mesma e entra em confronto com a imagem que cada um faz de si mesmo, sofreu perseguição na idade média e moderna mas nunca deixou de cessar. Sob a influência de certas situações psíquicas, em particular nos casos de angústia existencial, essa formas ou imagens arquetípicas podem introduzir-se, espontaneamente, na consciência não só dos doentes mas nos que tem saúde.
Cabe aos gnósticos o mérito de terem levantado o problema da origem do mal. Na opinião de Jean Yves Leloup, tanto Valentim quanto Basílides são grandes teólogos que tentaram superar questionamentos que se encontravam submersos no inevitável afluxo do inconsciente coletivo - fato refletido com bastante nitidez no Evangelho Gnóstico de João (Apócrifo de João) assim como pelo Apóstolo Paulo, o Apocalipse de João e o próprio Jesus Cristo no Novo Testamento ( Parábola do Administrador Infiel, Codex Bezae e acréscimo a Lucas 6:4). No estilo de seu tempo, eles hipostasiavam ideias e percepções em entidades metafísicas. A psicologia não hipostasia mas considera tais ideias como asserções psicológicas sobre fatores inconscientes essenciais, inacessíveis à observação imediata.
Jung também atenta para o fato de que o confronto do homem com seu lado sombrio, que se impõe como inelutável na psicologia moderna, garante a continuidade do processo secular do despertar para a consciência introduzido pelo gnosticismo, além de preparar para consequências análogas, a saber, fenômenos de recepção de natureza semelhante aos fenômenos historicamente conhecidos do gnosticismo, da filosofia hermética e da cabala. Tanto a psicologia moderna quanto as tradições gnósticas antigas e medievais apresentam as mesmas tendências: por um lado identificam a figura do Filho do Homem com a mais profunda interioridade de cada indivíduo; por outro, conferem a ele a dimensão de uma alma do mundo, como o Atman-Purusha indiano.
Para Jung, a Gnose é a descoberta do Cristo Interior ou Self como Presença de Cristo ou Imagem de Deus ou Logos. O Self, ou Cristo, está presente, a priori, em cada um de nós, embora, em geral, torna-se um fato consciente apenas tardiamente na vida da pessoa. O acesso a essa realidade não é feito por doutrina ou mera sugestão: torna-se fato apenas quando isso advém. E isso só ocorre quando são retiradas as projeções de cada um relativas a um Cristo exterior, histórico ou metafísico, criando-se assim as condições para despertar o Cristo interior. Este tema gnóstico está subjacente mesmo nos evangelhos bíblicos. O esquecimento do Filho em nós é uma forma de esquecermos nossa verdadeira identidade, ou nossa realidade de estar em relação - "Filho voltado para o Pai no Espírito"; neste caso, a queda é perda de nossa filiação, a incapacidade para viver nosso ser como relação com a Fonte.
CONCLUSÃO
Com esse estudo fica fácil perceber que Gnose não é algo fácil de definir, pois tem múltiplos significados, todos relacionados entre si mas muito bem caracterizados e delimitados.
Percebe-se que a fragilidade e ridicularidade da tentativa de se criar uma "gnose política" e tentar identificar as doutrinas do gnosticismo com os movimentos políticos modernos, como marxismo, fascismo, anarquismo e etc, tentando juntar tudo que é "revolucionário" no mesmo saco de "gnóstico". É muito ridículo, muito forçado, muito brega até. Perde-se a fé na humanidade quando se vê esse tipo de maluco espalhando as doutrinas de um velho demente como Eric Voegelin que nem acreditava na ressurreição de Cristo e na maioria dos dogmas do cristianismo "tradicional" e ainda acusa tanto catolicismo quanto protestantismo de serem "gnósticos"! Dá para acreditar? É isso que é catolicismo agora? Renegaram mil anos de tradição pra ficar andando com hereges protestantes e outros sectários bizarros para cima e para baixo e, ainda, comungando de suas doutrinas e teorias malucas que blasfemam da sagrada tradição da igreja, da virgem maria e dos santos?
É esse tipo de gente confusa que tem a audácia de sair por aí postando vídeos dizendo que gnosticismo é isso, é aquilo, e mimimi política e mimimi marxismo e mimimi movimento revolucionário. Nenhum desses teve a coragem de estudar o assunto. Quando muito citam mal porcamente um Hans Jonas (que duvido tenham lido) que nem conheceu Nag Hammadi pra poder falar de gnosticismo.
É esse tipo de gente confusa que tem a audácia de sair por aí postando vídeos dizendo que gnosticismo é isso, é aquilo, e mimimi política e mimimi marxismo e mimimi movimento revolucionário. Nenhum desses teve a coragem de estudar o assunto. Quando muito citam mal porcamente um Hans Jonas (que duvido tenham lido) que nem conheceu Nag Hammadi pra poder falar de gnosticismo.
De todas as acepções de Gnose percebidas na história humana a única que pode ser vista comumente e estruturante em todas as outras é exatamente a percepção de que tem algo de errado com esse mundo e que esse algo errado está também dentro de si: o homem percebe que é um estrangeiro, um alheio, um alienígena nesse mundo e que seu lugar não é aqui. Ora, essa doutrina está explícita tanto nos evangelhos canônicos como no Apóstolo Paulo! É por isso que Jean Yves Leloup, como eu, coloca grande parte do Novo Testamento e Paulo como gnósticos, assim como Clemente de Alexandria, Orígenes e os Padres do Deserto! Porque justamente aquilo que mais define o gnóstico está na bíblia. E está desde o Gêneses, quando, no Mito do Jardim do Éden, A Serpente, que dependendo da versão do mito era Jesus Cristo ou Sophia, revela a Adão e Eva que se comerem do fruto "se tornarão maiores que Yaldabaoth". Adão e Eva percebem que há algo de errado com o Jardim, que o criador tem um comportamento estranho e que a Serpente não parece ser tão maligna quanto Yaldabaoth diz. Eles podem ir além daquele mundo falso criado por um falso deus. A ideia gnóstica da alienação, do estrangeiro no mundo, está presente também em algumas das Religiões de Mistério, no Sufismo, em santos medievais como Tereza de Avila, João da Cruz, Hildegarda de Bingen, (essa última se esforçou em encaixar a gnose dentro da ortodoxia católica romana) e muitos outras correntes místicas, espiritualistas e anti-materialistas.
É assim que nem budismo, nem protestantismo nem catolicismo são gnósticos. Com exceção dos ramos budistas derivados do gnosticismo, como o Mahayana e o Vajrayana ou Budismo Esotérico, o budismo teravada não enxerga a realidade última como uma grande Unidade que abarca o Todo. Por outro lado, a Vedanta, o Sankhya e o Yoga hindus são gnósticos pois demonstram estranheza em relação ao mundo e desejo de ir para o mundo de Brahman, de Deus, que é a origem e o fim de todas as coisas. Ainda não tenho um conhecimento mais aprofundado das outras escolas hindus ( Nyaya, Vaisheshika e Mimamsa ) para afirmar se são ou não gnósticas, só tenho realmente conhecimento de Vedanta, Yoga e Sankhya.
O protestantismo, por mais que muitas seitas tenham se organizado de forma congregacional, dado liberdade na liturgia, sacerdócio feminino, ênfase em dons espirituais e etc, não chega a ser gnóstico de maneira alguma pois é materialista por natureza. O "evangélico", o protestante, não é ascético. Ele acredita no mundo material de tal forma que jamais passa pela cabeça dele que é um estrangeiro no mundo, mesmo Jesus, Paulo, João e Pedro dizendo isso no Novo Testamento. O protestante acha que é dono do mundo e ama suas posses, daí que a teologia da prosperidade tenha surgido e prosperado nesse meio.
Os católicos também não são, por mais que vários santos sejam de fato gnósticos e disfarçaram muito. A maioria dos católicos não são praticantes e os que praticam são devotos de teologias e dogmas papais e não dos textos bíblicos ou dos textos místicos de seus santos, daí ignoram o gnosticismo aparente no Novo Testamento e nos padres gregos e padres do deserto.
Não é preciso comentar que essa percepção da alienação e exílio não tem nada que ver com qualquer ideologia política, muito menos as modernas. Chega a ser absurdo alguém se propor a fazer essa forçada indução. A ignorância é realmente o principal problema do mundo.

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